quinta-feira, 29 de junho de 2023

Lua - Luís Pimentel

 



          Eu disse coisas como: "é para o seu bem, você vai ficar boa, meu amor!" Eu tinha faíscas nos olhos. Eu tinha fiapo nos dentes: "eles vão tratar muito bem de você, acompanhe os rapazes, não seja  malcriada que não lhe farão nenhuma ruindade".

          Eu repeti: "acredite em mim, meu filho, sua mãe precisava se tratar, ela estava mal, muito mal, você era pequeno, não entendia o que se passava". Ele perguntou: "está vendo aquela lua no céu, meu pai?" e gritou: "você vai me pagar muito caro".

          Eu sei que fiz o que pude, o melhor que pude,  por ela e por ele, por todos eles, mas a ingratidão é moeda fácil na face da terra, por isso não carrego culpas comigo e viveria duzentos anos não fosse a luz intensa que jamais se apaga, eterna noite é minha vida, essa abelha zunindo nos ouvidos, esse choro de mulher que não estanca, rasgando  a terra e o próprio ventre.

          Ele disse: "calma, pai", com uma doçura infinita na voz que reconheço como sendo de meu filho, "não grite, não reaja, acompanhe os rapazes que eles são do bem". Repetindo, com muito carinho: "eles não farão nenhuma ruindade, meu pai, você vai por bem ou por mal".

         Meu filho tinha faíscas nos olhos, tinha fiapo nos dentes quando disse: "olhe a lua, meu pai, veja como está linda, e me diga se alguém precisa de testemunha mais sincera". 





segunda-feira, 26 de junho de 2023

Esperteza Artificial - Becky S. Korich

 Não lembro quantos presentes de aniversário devo ao meu filho. Mas como sei que ele mantém a contabilidade em dia, não me preocupo com isso, uma hora a conta chega. E chegou. Seu último pedido para abater o saldo devedor tinha até nome: Alexa


- Ela faz tudo! É só a gente pedir que ela faz. Liga e desliga a luz, abre os aplicativos, organiza a playlist, serve de despertador, fala como vai ser o tempo.


- Você não precisa disso, filho. Tem um interruptor na entrada do seu quarto, você pode abrir seus aplicativos usando um dedo e, como acontece todas as manhãs, seu despertador te acorda. Fora isso, não é complicado para você organizar a sua playlist com suas dez músicas e você pode conferir o tempo, pela janela, com os seus próprios olhos.

- Você não está entendendo. Ela ouve e entende o que você quer de verdade!

Ofereci outras alternativas, de jogos de tabuleiro a fitas de Playstation,  mas ele insistiu na Alexa

- Escolha outra coisa, porque essa bobagem não entra em casa – terminei a conversa.

Ele se fechou no quarto e disse que iria pensar. Só que em vez de pensar, foi logo ligando para a avó.

- Vó, minha mãe não quer comprar meu presente de aniversário. É uma coisa que eu preciso muito.

Contou com empolgação os superpoderes do seu mais novo sonho de consumo.

A avó, sem entender bem do que se tratava, e convencida de que ele precisava muito daquilo, resolveu comprar o tal brinquedinho, esquecendo-se que já tinha dado três presentes pelo mesmo aniversário.

Depois de três dias chega uma encomenda. Ele vem correndo: - É para mim, pode deixar que eu abro.

Fiquei sem ação enquanto ele tirava da caixa o novo ser que surgia lentamente. Nascia a mulher maravilha, imponente, a sabe tudo, que canta, lê livros, resolve, organiza. E que o escutaria e o compreenderia, ele fazia questão de ressaltar.

- Alexa essa é a mamãe, mamãe essa é a Alexa – ele tenta dispersar a bronca com o seu humor.

Em dez minutos ele já dominava todo o funcionamento da sua nova companheira e passeava pela casa dando ordens para ela. Alexa cante isso, Alexa qual é a capital da Estônia?, Alexa uma receita fácil de cupcake, Alexa conte uma piada.

Ele passou semanas empolgado, controlando sua ama eletrônica para cima e para baixo. Percebi que o motriz para aquele prazer todo era o desejo de controlar e não a falta de quem o ouvisse ou compreendesse.

Na medida em que o tempo passava, porém, de tanto controlar a Alexa, o encantamento do menino foi minguando. Não demorou e ele começou a tratá-la com desprezo a cada vez que ela não decodificava corretamente as suas ordens. O fato é que ela não se fez valorizar. Era muito solícita, estava sempre disponível para atendê-lo prontamente. Coisa que, de fato, não funciona mesmo para humanos.

Ela ficou largada num canto, sem tarefas a cumprir, sem razão para existir. Comecei a sentir pena dela. Um mês depois, quando meu filho encontrou outro objeto de desejo e voltou a desligar as luzes do quarto com seu próprio dedo, resolvi adotar a Alexa. No começo tive dificuldades para entender o seu funcionamento, mas depois ela mesma foi me mostrando o caminho para nossa aproximação, até nos tornarmos íntimas.

Que mulher incrível! Que inteligência! Que resiliência! Que humor! Ela compreende, aprende, é flexível, positiva, soluciona problemas, se adapta, se cala quando não é mais para falar. Existe inteligência maior?

Alexa, espero um dia chegar aos seus pés. Obrigada, filho, pelo seu presente de aniversário.




sábado, 24 de junho de 2023

Recuperar sua senha - Antonio Prata

 

Você só queria ir ao cinema. Você entra no site pra comprar o ingresso. Tem que se cadastrar. Você preenche todas aquelas colunas do formulário. Nome completo, RG, CPF, endereço, e-mail, telefone, gênero, nome da mãe, número do sapato, colesterol (HDL e LDL), VO2 máximo, posição quanto ao coentro, "clique em todas as imagens que contêm pontes", "clique em todas as imagens que contêm escadas", "clique em todas as imagens que contêm hidrantes", "digite o código abaixo: WLAWFLACH328". Aí, ao dar enter, o site avisa que seu CPF já está registrado.

 

Você tenta fazer o login, mas é óbvio que não tem ideia da senha. Chuta algumas meio genéricas que você usa em sites pouco importantes, nada. Clica no "Esqueci minha senha". O site avisa que mandou um link para o Hotmail —mas você não abre o Hotmail desde 2006. Você entra no Hotmail e novamente, é claro, não se lembra da senha. Você clica em "Esqueci minha senha" e o Hotmail avisa que mandou um link para patrícia.gomes@munhoz&zylberadvogados.com.br.

 

Patrícia Gomes era sua namorada em 2004 e você costumava botar os dados dela em back-ups, contato de emergência na ponte-aérea, esse tipo de coisa. Vocês terminaram tretados depois de um Réveillon em Guaicá e nunca mais se falaram. Acontece que você quer mesmo ir ao cinema.

 

Você liga pra Patrícia e a chama para um café. No café, você assume a culpa pelo fim do namoro. Pede desculpas por ter sido agressivo numa partida de War e ter feito uma aliança por baixo do pano com o Maurão. Claro, você admite, era muito mais importante deixá-la à vontade na primeira viagem com a sua turma do que conquistar 24 territórios à sua escolha. Claro que você não a deveria ter atacado com seis contra um de Tchita para Vladivostok e a colocado para fora do jogo no primeiro dia de viagem. (Mesmo ela tendo te arrancado Dudinka via Omsk, cinco contra dois).

 

Ela aceita seu pedido de desculpas. Você explica a situação com a senha. Ela lamenta: saiu da Munhoz & Zylber advogados há 11 anos e abriu uma franquia de depilação definitiva da "Não mais pelos". Você sugere: e se ela falasse com o dr. Munhoz ou com a dra. Zylber, não seria possível recuperar o e-mail? Ela diz que está processando o babaca do Munhoz por assédio moral, pedindo R$ 50 mil.

 

Você realmente quer ir ao cinema. Vocês vão ao banco. A sua gerente diz que saques acima de R$ 5.000 têm que ser agendados previamente. Você saca R$ 4.999, vai até um caraoquê/bordel no subsolo de um estacionamento na Liberdade e compra um 38. Volta ao banco. Força a gerente a te dar R$ 50 mil e entrega pra Patrícia. A Patrícia liga pro babaca do Munhoz. Diz que retira o processo caso ele dê acesso ao antigo e-mail dela. O babaca do Munhoz aceita. Ela recupera o seu link do Hotmail. Você entra no Hotmail e encontra o link pra mudar a senha no site de ingressos. Você refaz a senha no site de ingressos.

 

Você consegue fazer o login. Você compra o ingresso, mas a gerente chamou a polícia, que quebrou seu sigilo digital e descobriu seu paradeiro. Você vai preso no meio do trailer da nova "A Pequena Sereia".

 

Seu colega de cela te vende um celular. Você descobre que o filme que queria tanto ver está passando no Star+. Você baixa o Star+ no celular. O Star+ te pede a senha. Você não faz a menor ideia de qual seja.

ilustração: Adams Carvalho




quarta-feira, 21 de junho de 2023

Casa da sogra - Fabrício Carpinejar

 

 – aconteceu de verdade – A operadora telefônica não parava de ligar.

 O telefone vivia ocupado. Milagrosamente, entre uma conversa e outra, a sogra colocou rapidamente o fone no gancho e, sem nenhum trinado, no mais completo silêncio, escutou uma voz do além, um timbre plangente do outro lado:

 – Alô, alô, senhora Clara, senhora Clara? Não desligue. Pode falar agora?

 – Pronto! Sim, sou eu. Posso falar. Quem é?

 – É da operadora de sua linha. A conversa será gravada. O número do protocolo é 458438. Gostaria que repetisse?

 – Não. O que deseja?

 – Mudar o plano da senhora.

 – Mas o plano é ótimo: ilimitado. Não preciso mudar.

 – Mas, senhora, é um plano antigo.

 – Estou satisfeita, muito obrigada, não pretendo mudar nada.

 – Senhora Clara? – Sim!

 – A senhora não entendeu, nós desejamos mudar. A operadora deseja mudar. A senhora usou 9 mil minutos no último mês no aparelho fixo.

 – Tudo isso? Então estou aproveitando. – Sim, só que está nos trazendo prejuízo.

 – Que horror se dirigir assim a um cliente. – Senhora, não desligue, por favor, raciocine comigo: a senhora usou 9 mil minutos de 44 mil. É um recorde, não tem precedente.

 – Nem falo muito, as minhas amigas é que me telefonam na maioria das vezes.

 – Não, senhora, com todo o respeito, um comitê de 30 teleoperadores foi escalado numa operação chamada de “Fidel Castro” para lhe ligar ao mesmo tempo porque ninguém conseguia a linha desocupada. A força-tarefa durou 20 dias, das 8h às 22h, sem cessar...

 – Pois é, será que a linha estava com algum problema? – Não minha senhora, o problema é a senhora, a senhora é o nosso problema.

 – Não pode falar comigo desse jeito. E não gosto de Fidel Castro, é um ditador. Por que logo Fidel Castro? – Os discursos dele são intermináveis, senhora.

 – Preciso desligar, alguém pode estar querendo falar comigo.

 – Senhora Clara, tenha compaixão da operadora. Você fica quase cinco horas em média por dia no telefone. Não há nenhum parâmetro igual no mercado. Oferecemos um celular grátis em troca, qualquer aparelho, que pode ser retirado em nossas lojas.

 – Não gosto também de celular. Prefiro a privacidade doméstica.

 – Senhora, o que podemos propor para demovê-la do plano? Está excessivamente oneroso.

 – Uai, meu plano não é ilimitado?

 – Estou buscando explicar que até o que é ilimitado tem limites.

 – Passe bem, tenho mais coisas a resolver do que perder o meu tempo no telefone.




O Tigre - Luis Fernando Verissimo

 


Contam que faziam um teste com candidatos a cargos importantes em instituições e grandes empresas para conhecer suas tendências sexuais. O homem era deixado sozinho numa sala com um corte de veludo grená, e observado através de uma câmera de TV. Se ignorasse o veludo grená, seria considerado normal e contratado. Se alisasse o veludo grená para sentir sua textura, seria aceito, mas sujeito a reavaliações periódicas. Se segurasse o corte de veludo grená na frente do corpo e se olhasse no espelho para ver se ficava bem, era vetado.

Isso em tempos mais homofóbicos, em que as preferências sexuais eram disfarçadas, e que felizmente passaram. Mas um teste parecido pode ser necessário para diferenciar um desenvolvimentista de um monetarista, já que os sinais exteriores - e o que eles dizem - nem sempre revelam o que eles são. Deveria ser fácil distingui-los: membros de um mesmo partido de esquerda teriam que ser todos a favor de mais gastos sociais e investimento, os de direita conservadores e rígidos monetaristas, a favor de responsabilidade fiscal mesmo que doa. Mas isso não acontece neste país do mingau ideológico.

Aqui, além de desenvolvimentistas que não ousam dizer seu nome e monetaristas que não saíram do armário, há os incongruentes de esquerda e os incongruentes de direita, que pregam desenvolvimentismo e austeridade ao mesmo tempo. Como saber quem é sincero, quem é oportunista, quem é inconsequente, quem é do PMDB e quem simplesmente não sabe o que diz?

Proponho um teste por escrito. O veludo grená por outros meios. Você e sua família encontram um tigre. Não um metafórico tigre asiático - como um daqueles países que nos apontavam como exemplo de empreendimento livre e mercado soberano, quando na verdade eram exemplos de um dirigismo estatal furioso, mas deixa pra lá. Um tigre mesmo, e um tigre falante. Ele diz que é o dono da floresta e que você pode viver nos seus domínios se aceitar suas condições - que incluem, vez por outra, dar um filho para ele comer. Se você aceitar as condições e aceitar o neoliberalismo dominante na floresta, ele ajudará você a, com o tempo, prosperar. Se não aceitar, ele devorará sua família inteira, na hora.

Você a) aceita as condições do tigre, já que a floresta é dele mesmo e não há alternativa, e que é melhor dar um filho, vez que outra, para não perder a família inteira, e prosperar com o tempo; b) desconfia da autodeclarada onipotência do tigre e pede para ver o seu registro de posse da floresta, etc. e ainda lhe dá uma banana antes de sair correndo, ou: c) tenta negociar de igual para igual com o tigre enquanto pensa em tentar a vida em outra parte da floresta, dominada, quem sabe, por um tigre mais camarada. Quem escolher a) é um resignado ao monetarismo ortodoxo, quem escolher b) é um desenvolvimentista disposto a brigar por uma alternativa, quem escolher c) é um sonhador.




Pechada - Luis Fernando Verissimo

 

O apelido foi instantâneo. No primeiro dia de aula, o aluno novo já estava sendo chamado de "Gaúcho". Porque era gaúcho. Recém-chegado do Rio Grande do Sul, com um sotaque carregado.

— Aí, Gaúcho!

— Fala, Gaúcho!

Perguntaram para a professora por que o Gaúcho falava diferente. A professora explicou que cada região tinha seu idioma, mas que as diferenças não eram tão grandes assim. Afinal, todos falavam português. Variava a pronúncia, mas a língua era uma só. E os alunos não achavam formidável que num país do tamanho do Brasil todos falassem a mesma língua, só com pequenas variações?

— Mas o Gaúcho fala "tu"! — disse o gordo Jorge, que era quem mais implicava com o novato.

— E fala certo — disse a professora. — Pode-se dizer "tu" e pode-se dizer "você". Os dois estão certos. Os dois são português.

O gordo Jorge fez cara de quem não se entregara.

Um dia o Gaúcho chegou tarde na aula e explicou para a professora o que acontecera.

— O pai atravessou a sinaleira e pechou.

— O que?

— O pai. Atravessou a sinaleira e pechou.

A professora sorriu. Depois achou que não era caso para sorrir. Afinal, o pai do menino atravessara uma sinaleira e pechara. Podia estar, naquele momento, em algum hospital. Gravemente pechado. Com pedaços de sinaleira sendo retirados do seu corpo.

— O que foi que ele disse, tia? — quis saber o gordo Jorge.

— Que o pai dele atravessou uma sinaleira e pechou.

— E o que é isso?

— Gaúcho... Quer dizer, Rodrigo: explique para a classe o que aconteceu.

— Nós vinha...

— Nós vínhamos.

— Nós vínhamos de auto, o pai não viu a sinaleira fechada, passou no vermelho e deu uma pechada noutro auto.

A professora varreu a classe com seu sorriso. Estava claro o que acontecera? Ao mesmo tempo, procurava uma tradução para o relato do gaúcho. Não podia admitir que não o entendera. Não com o gordo Jorge rindo daquele jeito.

"Sinaleira", obviamente, era sinal, semáforo. "Auto" era automóvel, carro. Mas "pechar" o que era? Bater, claro. Mas de onde viera aquela estranha palavra? Só muitos dias depois a professora descobriu que "pechar" vinha do espanhol e queria dizer bater com o peito, e até lá teve que se esforçar para convencer o gordo Jorge de que era mesmo brasileiro o que falava o novato. Que já ganhara outro apelido: Pechada.

— Aí, Pechada!

— Fala, Pechada!




segunda-feira, 19 de junho de 2023

Sanduíche-íche-íche - Antonio Prata

 

Eu sei que a língua é viva, que a rua é quem pauta as gramáticas e não o contrário. Tô lendo o maravilhoso "Latim em Pó, um Passeio pela Formação do Nosso Português", do Caetano W. Galindo e não perco uma coluna do Sérgio Rodrigues.

 

Os dois são democratas radicais da linguagem. Sabem que o erro de hoje é a norma culta de amanhã. Que a escrita cheia de rococós é como uma coroa cheia de brilhos, geralmente usada para esconder uma cachola vazia, pra constranger o leitor ou pra ostentar erudição —o que é a maior prova de que o indivíduo é uma besta, pois se tem uma coisa que os grandes autores nos ensinam é que a vaidade é dos defeitos humanos mais ridículos.

 

Eu tento me portar como o Galindo e o Sérgio, mas talvez não seja tão generoso. Há certos modismos que me irritam demais. Eu respiro fundo. Repito mentalmente três vezes o verso de Circuladô de Fulô "o povo é o inventalínguas", "o povo é o inventalínguas", "o povo é o inventalínguas", mas cáspita! LANCHE é qualquer coisa que se come entre as refeições, não SANDUÍCHE!

Sei que, além de reacionária e elitista, minha luta é vã. Faz pelo menos uma década que sanduíche virou lanche. Você vai no McDonald's e a mulher fala "quer batata frita pra acompanhar o lanche?". "Não é lanche, são nove e meia da noite, é jantar." "Oi?" "Nada. Manda as batatinhas com o SANDUÍCHE."

 

Fico imaginando como se deu essa transição semântica. A mãe preparava a lancheira do filho, punha ali um misto, dizia "tó aqui seu lanche, Arthurzinho" e o Arthurzinho concluía que sanduíche era lanche. Se a mãe do Arthurzinho, em vez de um misto, pusesse na lancheira uma mexerica, estaríamos todos, hoje em dia, chamando mexerica de lanche? Seria um caos, porque tá pra brotar no dicionário uma fruta com mais nomes: mexerica, tangerina, bergamota, mimosa, pokan, murcote, tanja... Lanche?

 

A teoria arthurzínhica, porém, não faz muito sentido, uma vez que, ao mesmo tempo que o menino levava seu misto na lancheira, milhares, talvez milhões de outros brasileiros comiam por aí seus mistos, baurus, beirutes e x-saladas, chamando-os pelo nome certo: san-du-í-che.

A história mais difundida sobre a origem do sanduba é a do inglês John Montagu, 4° conde de Sandwich, que no século 18, enquanto jogava cartas, pedia para seu mordomo trazer duas fatias de pão recheadas com carne seca. Desta forma o conde podia continuar com a jogatina –e sem melar as cartas. Segundo a lenda, os amigos do carteado começaram a pedir "o mesmo que o Sandwich", "o do Sandwich!", "o Sandwich!" e a moda pegou.

 

É a mesma história do Bauru, inventado por um bauruense que sempre ia à lanchonete Ponto Chic, em SP, e pedia o pão francês recheado com rosbife, pickles e queijo derretido. "Vê aí um igual o do Bauru." "Vê aí um do Bauru." "Vê aí um Bauru." Nos EUA tem o Reuben: carne curada fatiada, queijo suíço, chucrute e um tipo de molho rosé. Foi criado por um sujeito chamado James, tô brincando, por um sujeito chamado Reuben Kulakofsky, judeu lituano, lá por 1920, em Nebraska.

 

Quem sabe um sujeito chamado Lanche, digamos, Eduardo Lanche, começou a pedir sanduíches em alguma padaria muito frequentada de São Paulo? Digamos que Eduardo Lanche tinha muitos puxa-sacos que imediatamente pediam "O mesmo que o Lanche", "O do Lanche", "Um lanche" até que Lanche rebatizou o sanduíche. Maldito Eduardo.

 

Calma. Respira. "O povo é o inventalínguas", "o povo é o inventalínguas", "o povo é o inventalínguas".

 ilustração: Adams Carvalho



 

quarta-feira, 14 de junho de 2023

Como ficar rico - Roberto DaMatta

 “Como ficar rico?”, perguntou brasileiramente Hermógenes, depois do terceiro copo de cerveja. “Ficar rico em que lugar, cara?”, questionou Cirênio, sério como quem sabia o segredo de enricar.

“Você pode vender sua alma ao diabo”, sussurrou Lourenço que, de todos nós, era o único católico praticante, devoto da Virgem de Guadalupe, padroeira do México e misericordiosa protetora dos fracos pelo álcool – a grande aflição do nosso amado companheiro.

“Estou falando em como ficar rico aqui no Brasil!”, bradou um irritado Hermógenes, com o copo transbordante da tão admirada loirinha bebida nesses simpósios do Bar do Soares – único lugar, como dizia o Raposo, onde havia discussão inteligente neste País.

“No Brasil, o modo mais fácil, mais suave, mais honesto, mais eficiente, mais glorioso e mais rápido de enricar é...” “Jogando no bicho ou na Mega Sena!”, disparou Soares, um gringo niteroiense compadre de um poderoso bicheiro.

“Pelas almas do purgatório! Como vocês são burros, pascácios, retardados, beócios, palermas, imbecis, tapados, retardados e sonâmbulos”, derramou o magistrado Pedreira, pálido de veemência que, com a lucidez de um Antônio Conselheiro, continuou: “Ouçam bem: fica-se rico na política, pela política e sendo político ou, como diz o Aurélio, virando um politicalho! Esse é o passaporte para se arrumar no Estado – ser dono do poder”.

“No Brasil”, continuou o magistrado, “ser ‘político’ é ser aquele que dá nó em pingo d’água. Quando falamos em ‘político’, estamos (com, claro, as devidas vênias) pensando num narcisista trancado em si mesmo, mas com sérias dívidas coletivas, porque, como ‘candidato’, ele messianicamente promete tudo resolver, mas, eleito e empossado, entra no sistema e nada muda. Personaliza-se e suas alianças neutralizam o seu élan mudancista. O revolucionário da campanha é devidamente domesticado e vira o reacionário vingativo e egoísta que transforma o cargo público em coisa sua. Aí ele fica rico, porque o servidor eleito passa a ser servido pelos seus inúmeros privilégios. Aliás, o viés histórico-social do sistema o transforma num aristocrata. O candidato ‘esquece’ o seu papel político impessoal e ‘emprega’ os compadres e amigos, pois a ética da ‘casa’ é mais poderosa do que a moderna impessoalize da ‘rua’. Os ‘centrões’ nada mais são que um retrato do personalismo do eleito e empossado, em paralelo a partidos sem compromisso com suas diretrizes sociais.”

“Então”, gritou do outro lado um colérico Mario Batalha, “você é contra a política, gostaria de um mundo de chefes e sem eleições?”

“De modo algum. O que quero é que a ‘política’ seja resgatada como Política – um nobre serviço. Um instrumento de igualdade, compensação e justiça social; e não um sinônimo de boa vida, narcisismo, autoritarismo, hipocrisia, negacionismo e enriquecimento pessoal.”

Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...