domingo, 24 de abril de 2022

Costela no escapamento da moto - Antonio Prata

 


Eu tenho um novo ídolo. Não sei o nome dele, a idade, onde mora nem o que pensa sobre blocos de Carnaval, o VAR ou a descriminalização da maconha. Só sei que aparece no YouTube sempre que eu teclo "costela no escapamento da moto" --e eu tenho teclado "costela no escapamento da moto" sempre, ultimamente. É meu cigarro, minha cachaça, meu cafezinho.

 

Ó o que o cara faz: embrulha uma costela de boi em bastante alumínio. Com arames e um alicate, prende a costela ao escapamento de uma moto e sai de Cananeia, litoral de São Paulo, em direção à Itapetininga, interior. Segundo meu Google Maps, são 217 km, ou 3h37. Se eu fosse opinar, diria que uma costela precisa de pelo menos 400 km para assar direito. Rio x São Paulo seria o ideal, mas a costela do figura era pequena, vai quê?

 

Meu ídolo chega em Itapetininga e vai abrir o embrulho. Família e amigos o cercam, apreensivos, naquela tensão que eu chamaria de gastrossuspense. Quem nunca sofreu, ao abrir um alumínio com carne, peixe, porco ou legumes, as dores do gastrossuspense? Ao puxar a bandeja de um Airfrier? Ao destampar a panela de barro de uma moqueca? Ao abrir uma lata de leite condensado colocada na pressão?

 

O auge do meu gastrossuspense foi durante a quarentena, em São Francisco Xavier. Eu e dois amigos pegamos uma panela gigante. Jogamos lá dentro batata-doce, mandioquinha, abóbora japonesa, cebolas, alho, repolho, pimentão, tomates, abobrinha, berinjela. Uma picanha, paio, linguiça portuguesa, linguiças frescas de diferentes tipos, uma costela de porco. Temperamos com todas as ervas que tínhamos a mão: muito cheiro verde, tomilho, alecrim, manjericão, manjerona, cominho, pimenta-do-reino, sal e azeite.

 

O jardim da casa de São Francisco tinha um buraco no chão, feito para fogueiras. Enchemos de lenha e deixamos queimar por umas duas horas, até que o círculo parecesse a entrada principal do inferno. Pusemos o caldeirão sobre as brasas, tampamos, fechamos o buraco com ripas de madeira, folhas de bananeira e lacramos com um monte de lama, tirada com enxada da beira do rio. (Sim, estou me exibindo como um Putin cavalgando sem camisa, mas a nossa masculinidade não era tóxica, era orgânica e inofensivamente patética, pela distância entre nossas panças branquelas respingadas de lama e, digamos, um Rambo com os peitorais riscados por carvão).

 

Pois bem, esperamos quatro horas, saboreando cada gotinha de adrenalina e cortisol do gastrossuspense. Tiramos o panelão com auxílio de conchas, panos e alavancas. Abrimos e... Tava cru, infelizmente. Tivemos que finalizar no fogão. Mas isso é outra história. Eu queria era falar da costela no escapamento.

 

Lá em Itapetininga, o figura abre o alumínio. Num primeiro momento, todos acham que a costela tá crua. Mas o cara corta um pedacinho e prova. Sorri. Dá pra ver a tensão desaparecer do ombro de cada um ali. Eu, já praticamente um membro da família, também me alegro, em casa –todas as vezes. Conseguimos.

 

Imagino um super-herói. Ele erra pelo mundo em sua motoca, roupa de couro e capacete, cheio de embrulhos laminados no escapamento. Quando percebe uns amigos famintos, bebendo no bar, um coração partido num ponto de ônibus, um casal lariquento na madrugada, surge: o cheiro precede o ronco do motor. Sem jamais tirar o capacete, ele saca um alicate do bolso, corta os arames e serve o banquete de carnes, tubérculos e legumes. Depois some no horizonte, deixando só um rastro de fumaça e uns esvoaçantes pedacinhos de papel alumínio a brilhar sob as luzes dos postes.

 

 

Ilustração: Adams Carvalho



terça-feira, 19 de abril de 2022

Quiproquó - Gilberto Amendola

A frase que eu usava saindo da boca dela. As mesmas pausas. A ênfase na sílaba

 errada. E aquela palavra que eu sempre repetia: quiproquó.

Tem mais humor quando é ela quem diz – isso não posso negar. O meu quiproquó não tem tanta cor. Acho um quiproquó meio sem energia. 

O dela é um quiproquó pueril. Sexy. Lascivo. Imagino corpos sobrepostos em um quiproquó erótico.

Diferente do meu, que é vulgar e italianado. O meu é um quiproquó de corpos sobrepostos como o espólio de uma guerra perdida.

Amor é linguagem, fluidez de sintaxes e construções.

Língua e quiproquó.

O dela, o quiproquó dela, ficaria bonito em qualquer idioma. Não precisaria de legenda. 

Quando ela foi embora, e foi pra sempre, esqueceu de deixar pra trás o verbo, a camisa do verbo, o humor do verbo e o emprego do verbo.

Foi com ela o tal do verbo. Lá ficou. Vez ou outra, quando tenho coragem, me ouço. Me ouço no discurso, no tom, no som, no vento que passa entre os dentes, por entre o diastema dela. Diastema, que baita palavra!

Quando digo diastema penso em um antibiótico amargo. Na boca dela, o diastema é um tipo de brigadeiro.

Diastema e quiproquó na boca dela.

Vocabulário é uma coisa que entra na gente por osmose. Não posso recriminá-la. 

Mas claro, gostaria de ao menos ver minha influência reconhecida. 

Não seria preciso fazer grande estardalhaço (quiproquó). Bastaria, ao meu juízo, uma discreta nota de roda pé com a seguinte sentença: “sim, isso eu peguei de você”.

E pegou de mim porque, sei lá, em algum multiverso desses da loucura você também gostou de mim. 

Penso em reclamar, mas calo. Calo com as palavras que ela usa até gastar. Palavras que vão perder o viço antes mesmo que eu possa me apropriar delas novamente.

Seria preciso me desalfabetizar. Desaprender o bê-a-bá da velha convivência.

O amor educa até os caducos. Maluco?

Não há nada para ser feito com o que feito está. O “mundo gira e a Lusitana roda” – conhece essa, meu bem?

Eu mesmo roubei umas coisas. Umas gírias. Uns hiatos. Umas interjeições tímidas e recatadas. Agora sou eu mas era dela. Foi algo que eu comprei sem precisar.

Ela também não precisa daquilo que levou e, de certo, usa só por distração. Usa sem notar que é meu. Nem gosto dela. É só um jeito de falar. Um jeito de falar quiproquó.


Amor é linguagem, fluidez de sintaxes e construções.' Foto: Pixabay/@ThorstenF



segunda-feira, 11 de abril de 2022

Meus brasileiros preferidos - Gilberto Amendola

 


O vovô da banquinha do Jogo do Bicho. O barbeiro português. O eleitor arrependido. O vira-lata manco e banguela. A garota de programa do oitavo andar. O Zé Louquinho da minha rua. O porteiro gente fina e torcedor do Campinense. O bêbado que começa cedo. O bêbado que é o último a ir embora. A dona de muitos gatos. O nerd fã de Star Wars. O cover do Elvis. A cantora de igreja. O amolador de facas comunista. A enfermeira que casou com o paciente de 90 anos. As crianças que tocam a campainha e saem correndo.

 

Quem não quer deixar de usar máscara. O professor aposentado que faz palavras cruzadas embaixo da árvore. O desempregado que faz bolão da Mega Sena. O ex-lutador de boxe que vive com uma foto da esposa falecida no bolso da calça. A ciclista que usa um capacete com as cores da bandeira francesa. O manobrista que nunca tirou habilitação. A amiga que manda nudes. O amigo que entende de drinques. O papagaio que canta o Hino da Bandeira. A tiazinha que lê a mão sem cobrar um tostão. O presidente do fã-clube de um cantor ruim. A coruja que dormiu em cima da placa de proibido estacionar. O inventor de traquitanas inúteis.

 

O vizinho que empresta a senha do Wi-Fi. A jornalista de moda que passeia com o cachorro de pijama e chinelinho. O vendedor de bolhas de sabão que nunca acertou fazer uma bolha de sabão. O torcedor do Juventus que categorizou 659 maneiras de xingar o juiz. O padre que largou a batina e se casou com uma dançarina de boate. O porteiro de boate que troca o dia pela noite. O tocador de tuba que nunca mais conseguiu afinar seu instrumento. O adolescente cheio de espinhas que sonha com a Scarlett Johansson. O marido traído que voltou para a mulher. A bibliotecária que faz curso de pompoarismo por correspondência. O velhinho que conta sempre a mesma história. A organizadora de rifas.

 

O vizinho que ouve Leonard Cohen no último volume. A solteirona que ainda suspira por um amor platônico da adolescência. A malabarista de farol que se apaixonou por um agente de trânsito. A velha turca que faz doces de pistache e nozes. O mudo que escreve discursos para futuros presidentes. O cego que viu a luz. O sujeito que garante ter sido abduzido por alienígenas. O cobrador de ônibus que conhece os passageiros pelo nome. A ex-participante de reality show que foi viver sozinha no deserto. O poeta que nunca publicou um livro, mas guarda todos os seus versos na cabeça. O atleta olímpico que perdeu sua medalha no aeroporto. Quem se dedica a avistar passarinhos. O resto. O resto não me interessa.


terça-feira, 5 de abril de 2022

Como calcular o tempo de uma vida? - Gilberto Amendola

 



Como calcular o tempo de uma vida?

Desconta-se o tempo do cafezinho e as intervenções desnecessárias acerca do clima.

Subtraia a mensagem de WhatsApp respondida por educação. A escolha das figurinhas ou emojis também entram nessa conta.

Idas ao banheiro, claro. Idas demoradas ao banheiro. Leituras de banheiro ou banhos sem consciência ambiental.

Intervalos para o cigarro. Conversas entrecortadas pela fumaça. 

Horários eleitorais gratuitos – não importa o partido. Discursos inflamados.

O trabalho, sempre o trabalho. O trabalho e suas horas mortas.

As digressões sobre a morte de algum famoso.

O pôr do sol ou o cair da tarde. O barquinho que vai sabe-se lá para onde.

A ioga ou a esteira. As horas na academia também precisam ser descontadas.

Comentários sem nenhuma base sobre guerra ou pandemia. O tempo que se perde negando a ciência.

Consultas ao saldo de conta corrente via aplicativo de banco – quando eles estão funcionando (ou não).

Respostas negativas ao serviço de telemarketing da operadora de celular. E as dezenas de tentativas de cancelamento de algum serviço. Falar com robô é tempo perdido.

As ponderações sobre o número de estrelas que um motorista de aplicativo merece. A conversa política/eleitoral com taxistas.

Séries que perderam o sentido depois da primeira ou segunda temporada.

A espera do delivery de pizza. Reclamar com o delivery da pizza que não chega também leva tempo.

Leitura de textão em redes social e/ou problematizações subsequentes (tretas e threads). Brigas em rede social.

Explicação de piadas. A contextualização de piadas. A irritação causada pela falta de interpretação de texto.

A ansiedade que antecede o resultado do exame. Qualquer exame.

A expectativa das férias. As próprias férias. A frustração com o fim das férias. 

A expectativa do sexo, o sexo em si e o depois do sexo. Todo o sexo mais ou menos bom também entra na conta.

O tempo que demora para um e-mail ser respondido.

As horas de sono e de insônia. O tempo que perdemos tentando decifrar sonhos que não querem ser decifrados.

E o tempo que, sob efeito de alguma coisa um pouco mais forte, você se achou ótimo. Ninguém é ótimo sempre.

Faz a conta. 

Quanto é que sobra? 


Pôr do sol sobre a cidade de Ascalão, em Israel. Foto: Amir Cohen / Reuters



Um brinde às inimigas - Manuela Cantuária

  Duas amigas em uma mesa de bar. Uma delas ergue seu copo. "Um brinde às inimigas, que elas tenham saúde em dobro para aplaudir nosso ...