terça-feira, 19 de abril de 2022

Quiproquó - Gilberto Amendola

A frase que eu usava saindo da boca dela. As mesmas pausas. A ênfase na sílaba

 errada. E aquela palavra que eu sempre repetia: quiproquó.

Tem mais humor quando é ela quem diz – isso não posso negar. O meu quiproquó não tem tanta cor. Acho um quiproquó meio sem energia. 

O dela é um quiproquó pueril. Sexy. Lascivo. Imagino corpos sobrepostos em um quiproquó erótico.

Diferente do meu, que é vulgar e italianado. O meu é um quiproquó de corpos sobrepostos como o espólio de uma guerra perdida.

Amor é linguagem, fluidez de sintaxes e construções.

Língua e quiproquó.

O dela, o quiproquó dela, ficaria bonito em qualquer idioma. Não precisaria de legenda. 

Quando ela foi embora, e foi pra sempre, esqueceu de deixar pra trás o verbo, a camisa do verbo, o humor do verbo e o emprego do verbo.

Foi com ela o tal do verbo. Lá ficou. Vez ou outra, quando tenho coragem, me ouço. Me ouço no discurso, no tom, no som, no vento que passa entre os dentes, por entre o diastema dela. Diastema, que baita palavra!

Quando digo diastema penso em um antibiótico amargo. Na boca dela, o diastema é um tipo de brigadeiro.

Diastema e quiproquó na boca dela.

Vocabulário é uma coisa que entra na gente por osmose. Não posso recriminá-la. 

Mas claro, gostaria de ao menos ver minha influência reconhecida. 

Não seria preciso fazer grande estardalhaço (quiproquó). Bastaria, ao meu juízo, uma discreta nota de roda pé com a seguinte sentença: “sim, isso eu peguei de você”.

E pegou de mim porque, sei lá, em algum multiverso desses da loucura você também gostou de mim. 

Penso em reclamar, mas calo. Calo com as palavras que ela usa até gastar. Palavras que vão perder o viço antes mesmo que eu possa me apropriar delas novamente.

Seria preciso me desalfabetizar. Desaprender o bê-a-bá da velha convivência.

O amor educa até os caducos. Maluco?

Não há nada para ser feito com o que feito está. O “mundo gira e a Lusitana roda” – conhece essa, meu bem?

Eu mesmo roubei umas coisas. Umas gírias. Uns hiatos. Umas interjeições tímidas e recatadas. Agora sou eu mas era dela. Foi algo que eu comprei sem precisar.

Ela também não precisa daquilo que levou e, de certo, usa só por distração. Usa sem notar que é meu. Nem gosto dela. É só um jeito de falar. Um jeito de falar quiproquó.


Amor é linguagem, fluidez de sintaxes e construções.' Foto: Pixabay/@ThorstenF



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