segunda-feira, 1 de agosto de 2022

O povo das coberturas - Luis Fernando Verissimo

 

Vai-se para uma cobertura atrás de um quintal

Amigo nosso, que acabei de inventar, mudou-se de um apartamento no quarto andar para um apartamento de cobertura. E nos contou que descobriu outra civilização: o povo das coberturas.

Começara investigando as coberturas próximas à sua, num raio que permitia o abano e a identificação fisionômica. Havia quatro à sua volta e ele estabeleceu contato com três. A quarta era de uma mulher de idade indefinível que molhava suas plantas de biquíni e desprezava os seus acenos matinais.

Todas as coberturas próximas tinham plantas, duas tinham pequenas piscinas. Uma tinha o que parecia ser uma coleção de esculturas eróticas. Ele está convencido de que, como um arqueólogo ao contrário, tropeçara numa civilização desconhecida no céu. O povo das coberturas é diferente. Ele só não sabe se é a diferença que o faz procurar as coberturas ou as coberturas que o torna diferente.

Ele encheu o terraço da sua cobertura com plantas, o que serviu para aproximá-lo da mulher de biquíni, com quem ele agora troca saudações entusiasmadas todas as manhãs. Agitam os braços, fazem grandes gestos de agradecimento ao sol e à chuva e desenvolveram uma sólida identificação comunitária pela mímica, de pomar a pomar.

Nosso amigo acredita que é a vegetação que faz a diferença entre o povo das coberturas e o dos outros andares. O povo das coberturas distancia-se o máximo possível do chão atrás de uma paradoxal compulsão agrícola. Em vez da fascinação milenar do jardim suspenso, o que ele tem, no fundo, é uma nostalgia da casa.

A cobertura é o térreo invertido e, portanto, uma espécie de exaltação do térreo. Ao contrário do que se pensa, vai-se para uma cobertura por humildade, pela mais rasteira das virtudes. Vai-se atrás de um quintal.

Nosso amigo conta que está à beira de uma revelação. Suspeita que todas as coberturas da cidade formam uma rede semafórica, uma silenciosa conspiração de sinais trocados acima da percepção comum e do controle das autoridades. Ele já captou luzes piscando numa cobertura e respondida da outra num código desconhecido. E acha que ainda não foi incluído na rede porque talvez duvidem das suas credenciais. Podem ter concluído, observando-o através de suas lunetas (todas as coberturas têm lunetas), que a dele é uma irreversível alma de quarto andar.

Ele tem passado as noites em claro, tentando decifrar o código e saber o que eles dizem. Não tem dúvida de que existe um intercâmbio clandestino entre os tetos da cidade e não descansará enquanto não descobrir o que combinam. Ou o incluírem no mistério.










Comprando uma britadeira - Antonio Prata

 Quando dei por mim estava petrificado, na Leroy Merlin, diante de uma britadeira. Dez mil reais. Parcelando em doze, calculei, daria uns 800 por mês. É caro? É. Mas rola? Rola. Por que não?

O que eu faria com uma britadeira? Quebraria coisas, óbvio. Que coisas? Não sei. Mas tive certeza de que a vida, com seu infinito manancial de oportunidades, me apresentaria situações "britadeiráveis". E, convenhamos, mesmo que não apresentasse, a gente sempre pode achar umas brechas.

Meu amigo Márcio, por exemplo. Ele atira de arco e flecha. Quando comprou um arco, ele pensava em caçar faisões? Jacus? Imaginava se defender de um ataque apache? Não. Ele queria, com o arco, o mesmo que eu com a britadeira. Todo fim de semana ele vai a um clube e atira nuns alvos. Por que eu não poderia achar os alvos pra minha britadeira? Seria uma britadeira, digamos, para uso recreativo. Seria o meu caiaque. O meu drone. A minha pipa.

Antes dessa racionalização, contudo, diante da britadeira, tentei me convencer de sua utilidade. Que casa não tem uma parede, uma mureta, uma pia, que seja, que não possa ser derrubada? E mesmo que não haja. Não temos amigos? Família? Será que nenhuma pessoa no meu ciclo de amizades precisa quebrar um piso? Uma laje?

Caso não houvesse nenhuma utilidade possível, cheguei a me imaginar no crime. Como um pichador. Sairia de casa à noite, britadeira no porta-malas. Iria, sei lá, pra Vila Nova Cachoeirinha. Pra Jundiaí. Angatuba. Quebraria uma calçada, derrubaria uma estátua e voltaria a milhão no carro, fugindo. Numa vibe mais civilizatória, quem sabe não me ofereceria como voluntário em demolições? (Galo de Luta: vamos derrubar o nefasto Borba Gato?).

Não foi a primeira vez que senti este comichão. A Leroy Merlin mexe em algo muito profundo "do meu eu". Algo de "homem branco hétero cis" do século 20. (Desculpa. Eu sou). Casa & Construção também tem esse poder.


Dez anos atrás, fui morar na Granja Viana. Fiquei cinco minutos diante de um machado. Era que nem de desenho animado. Pica pau. Cabo de madeira, lâmina vermelha com a parte afiada metálica. Tentei me convencer: moro no campo.

Um dia, uma árvore vai cair no meio da rua. Alguém perguntará: "quem tem um machado?!". E eu apareceria. Cortaria a árvore. Sairia como herói. Não me convenci. Eu não seria sequer capaz de usar o machado. Talvez matasse ou morresse no processo.

Dez mil reais. Dividido em doze... O machado era bem mais barato. Assim como cem metros de corda. Uma peixeira. Um carrinho de mão. Outro dia, voltando de uma festa, passei diante da Leroy. Movido pela empolgação pós quarentena e pelos eflúvios do álcool, mudei o destino do Uber. Entrei. Um ombrelone: quem não quer? Um carrinho de mão: vai saber quando se precisa? Tijolos, cimento, areia: é sempre bom estar prevenido. Cordas. Cem metros de cordas. Duzentos. Se eu tiver que amarrar a árvore caída e cortada com o machado pra levar no carrinho de mão?

Sim. Sou um homem branco, hétero, cis, frágil e perdido como Tony Soprano ou Walter White. Não peço, de forma alguma, a vossa compaixão. Todo mundo tá mais ferrado do que eu. Eu sei. Mas tem um vazio no peito que, no corredor de "ferragens" da Leroy ou na gôndola de "furadeira e brocas" do Casa & Construção, sinto que pode ser preenchido. Dez mil. Parcelado em doze. Dá?


ilustração: Adams Carvalho









Um brinde às inimigas - Manuela Cantuária

  Duas amigas em uma mesa de bar. Uma delas ergue seu copo. "Um brinde às inimigas, que elas tenham saúde em dobro para aplaudir nosso ...