segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Saudades da secretária eletrônica - Antonio Prata

 



Meu velho pai sabe das coisas. Eu o chamo de "velho pai" não porque seja realmente velho: é como ele se chama ao falar comigo. Às vezes usa o epíteto num modo semi-irônico, como quem põe um cachimbo na boca pra uma foto. Outras vezes é mais a sério —acende o cachimbo. Na semana passada, por exemplo, me escreveu a uma e meia da manhã pedindo para lhe mandar um x-salada: "Alimente seu velho pai". Meu velho pai não usa Uber Eats, iFood, Rappi ou qualquer uma "dessas coisas".

Meu velho pai tá de saco cheio "dessas coisas". Outro dia ele me ligou. "Recebeu minha mensagem?". "Por onde?". Silêncio. "PQP! Não aguento mais essas coisas" —e começou a reclamar da dificuldade de nos comunicarmos por tantos canais: "É WhatsApp, SMS, e-mail, DM no Facebook, no Instagram, no Twitter...". "Qual era a mensagem, pai?". "Aí é que tá. Eu tive uma ideia muito boa no meio da noite e te escrevi pra não esquecer, agora não lembro nem da ideia e nem por onde escrevi".

Segundo meu velho pai, a razão de ele e tantos outros estarmos desmemoriados é "dessas coisas": aplicativos e plataformas e dispositivos jorrando uma quantidade infinita de informação que de bom grado entuchamos retina abaixo, cada tela um daqueles funis de milho pra transformar fígado de ganso em patê. (Talvez o plano do Zuckerberg e seus comparsas seja esse: transformar nossos cérebros em patê para depois comê-los com cream-crackers-low-carb-glúten-free-ESG-sem-pegadas-de-carbono. A hipótese é absurda, mas não mais que o furdunço global que estamos vivendo).


Meu velho pai tá injuriado com o furdunço global que estamos vivendo e tem uma proposta bem razoável para minorá-lo. "Cinco anos sem inventarem nada. Nada. Todo mundo fica com o celular que tem, com o Android que tem, o IOS que tem, com os aplicativos que tem e os canais de televisão que tem. Quando a gente aprender a usar tudo, assistir a todas as séries, ler todos os livros, ouvir todos os podcasts, vê se precisa inventar mais alguma coisa ou para por aí mesmo".

Concordo. A humanidade precisa de um novo Adobe reader a cada semana pra quê, exatamente?! De que forma PhDs em física podem "otimizar" um troço que é basicamente um xerox eletrônico?

Na faculdade eu penava pra entender o que o Marx queria dizer com aquele papo de "a infraestrutura produz a superestrutura". Mais tarde entendi e era simples e verdadeiro. A nossa maneira de agir molda a nossa maneira de pensar. Um pescador no século 19 se relaciona com o tempo, a comida, o sexo e as unhas dos pés de formas completamente diferentes do que um programador de vinte e dois anos, hoje, no Vale do Silício. É evidente que existe uma ligação direta entre a placa do meu celular e a minha placa para bruxismo. Quando meus dedos aflitos param de digitar, passam o turno pros dentes.

O supracitado alemão resumiu o que parecia ser o fim dos tempos com a frase "tudo o que é sólido desmancha no ar". O que diria sobre nossa época em que o próprio ar se desmancha, inundado por dióxido de carbono, metano, óxido nitroso e sei lá mais o que?

Nessa gincana do capiroto fica todo mundo perdido, confuso, exausto e resolve entregar a alma ao primeiro imbecil que prometa o retorno a um passado mais simples. Ah, o chão firme da homofobia! A segurança do azul e rosa! A burrice cristalina do terraplanismo!

"Tinha que ser geral", sugere meu velho pai, "com Biden, Merkel, China, ONU, com tudo: cinco anos sem inventarem nada. Nada. PQP: que saudades da secretária eletrônica."




segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Epifania de elevador - Gilbeto Amendola

 


Ouço uma voz pedindo: “segura, segura...”

Obedeço.

A garota acelera o passo com duas sacolas de supermercado nas mãos. Abro a porta do elevador e espero ela entrar. “Pode subir também”, diz. 

São quase dois anos sem dividir o elevador com ninguém. Uma coisa tão trivial, mas que estava fora da minha rotina desde o início da pandemia. Meu cérebro processa dados rápidos como “eu estou vacinado”, “ela deve estar vacinada”, “estamos de máscara” e “já passamos um dia sem nenhum registro de morte por covid em São Paulo”.

Obedeço, outra vez.

“Por favor, aperta o oitavo pra mim”, pede. 

Pressiono o botão e ensaio um boa tarde. Ela é mais rápida do que eu. E me conta que precisou ir ao mercado porque nem água tinha para beber em casa. 

Me dou conta que esqueci do meu próprio andar e aperto o botão de um número que já passou. “Te desconcentrei”, ri. 

E naquela risada, abafada pela máscara, tenho uma epifania. 

Será possível identificar e isolar o momento em que a cordinha da paixão é puxada? Ou o segundo exato daquele clique romântico? Será que faz algum barulhinho? Será que o corpo manda algum sinal? E se o elevador parasse agora e eu ficasse preso neste sentimento? E se ela não tiver os dois dentes da frente? Sei lá... estamos de máscara.

Tanto tempo sem me interessar por ninguém. Aliás, tanto tempo sem conhecer ninguém novo. E então, assim de repente, me vejo caidinho pela mulher que carrega duas sacolas de supermercado no elevador.

Esse pode ser o meu momento How I Met Your Mother, a cena que eu vou descrever para os nossos filhos daqui a uns 10 anos. Pode ser o dia em que minha vida mudou para sempre. 

Respiro. Preciso manter a calma. Deve ser carência. Não é possível. E nem faz sentido. 

Qual assunto faria com que essa garota se interessasse por mim? Acho que a gente não pode errar na primeira impressão quando existe alguma fagulha sexual no ar. Será que ainda sei falar de alguma outra coisa que não seja a pandemia?

E se...

O elevador chegou ao oitavo andar. Atrapalhado, saio para segurar a porta. Já sei onde ela mora. Mas ainda não nos apresentamos formalmente. “Se precisar de alguma coisa, moro no segundo andar, no 24, e...”

Outra porta se abre, desta vez a do apartamento dela. De lá, saiu um sujeito de óculos e cabelos encaracolados. “Que bom que você chegou amor. Não aguentava mais de sede..”"

Ela acelera os passos até o sujeito de óculos. Eles trocam um beijinho rápido. Ela me agradece. Ele também. Entro no elevador. E aperto todos os andares de uma só vez. 

Um brinde às inimigas - Manuela Cantuária

  Duas amigas em uma mesa de bar. Uma delas ergue seu copo. "Um brinde às inimigas, que elas tenham saúde em dobro para aplaudir nosso ...