domingo, 31 de dezembro de 2017

A dura rotina de um escritor - Marcelo Rubens Paiva

Esquerdomacho, virei um neste ano – em que me chamaram também de racista, antissemita, e quase fui processado e condenado a pagar uma indenização a Gilmar Mendes, o magistrado mais impopular da história da República, por prejuízos à sua honra, condenação da qual Monica Iozzi não escapou. Que ano...
Meu primeiro livro, Feliz Ano Velho, precisa ser revisto periodicamente. Termos, apelidos e expressões que eram usuais numa década tornaram-se ofensivos na seguinte. O livro não é reescrito, mas enxugado. Daqui a anos, talvez sobrem apenas algumas páginas, e terei que mudar o título, por ser ofensivo a alguém.
Não me queixo. Me pergunto como foi possível usarmos anteriormente termos e expressões que eram ofensivos, e só depois de décadas percebermos.
Centenas de mulheres, no ano retrasado, durante a Flip, numa praça lotada no centro de Paraty, fizeram coro: “Machista!” Eu mediava um bate-papo ao ar livre entre Maria Ribeiro, Xico Sá e Gregório Duvivier, no primeiro dia da feira.
Estava feliz e confortável entre ídolos. Especialmente ao lado de Maria, amiga há quase 30 anos, com quem ri, trabalhei e acabara de dirigir uma peça de teatro complicadíssima, viajei, convivi, ciceroneei, testemunhei sua evolução no palco e descobri: tornara-se uma das maiores atrizes de sua geração. 
Íntimos, temos uma quantidade enorme de private jokes. Costumamos nos provocar até ao vivo. Ela me cutucava, eu devolvia com mais sarcasmo, e ela com mais ainda. 
O público, fã de Maria, não nos entendia. Quis se manifestar. Olhei para trás, procurando os olhos dos organizadores. Não, a plateia não poderia se manifestar, nem microfone tinha para isso, e eu tinha sido alertado à conhecida prática dos debates da Flip.
Foi quando começaram: “Machista!” A mais exaltada gritava: “Eu odeio machistas, me dá este microfone!” Joguei o microfone para ela e fiquei repensando a minha vida. Eu não podia ir embora. Estávamos rodeados, o palco, tomado. Fui chamado de machista o resto da noite. Olhei para o céu. Só falta começar a chover agora. Começou a chover. 
Mais tarde, a GloboNews nos procurou. Queria repercutir a polêmica que tivemos num debate ao vivo para centenas de pessoas. Sorrimos. Eu e Maria afinamos o discurso e dissemos que não rolou nada demais. Fui para a pousada, fiz o check-out e parti de madrugada. Perdi o resto da Flip 2015.
A peça E Aí, Comeu? foi escrita para indicar a decadência do discurso masculino, da piadinha de bar, do papinho malicioso e desrespeitoso praticado por caras da minha geração. A maior parte do público entendeu. Virou uma sensação. Costumávamos fazer debates depois da peça sobre a necessidade de o homem repensar o discurso e rever seu papel.
Psicanalistas, psicólogos, acadêmicos e estudantes a citavam. Ganhou prêmio de melhor texto. Hoje, sou chamado de esquerdomacho por causa de uma peça intitulada E Aí, Comeu? por gente que não a viu.
Uma década da minha literatura é questionada. Tudo porque minha editora, a genial Isa Pessoa, me encomendava livros em que eu falaria de mulheres. Dizia que eu entendia da alma feminina, e as leitoras amariam ler a minha visão sobre elas.
Foram quatro: Malu de BicicletaO Homem Que Conhecia as Mulheres, A Segunda Vez Que Te Conheci e As Verdades Que Ela Não Diz.
Flaubert, Tolstoi, Machado de Assis e Truman Capote fizeram a fama escrevendo sobre mulheres e a opressão que sofrem. Com a predominância do lugar de fala, Madame Bovary, Anna Karenina, Dom Casmurro ou Quincas Borba e Bonequinha de Luxojamais deveriam ter sido editados. E Chico Buarque jamais afinado um violão e abandonado o curso de arquitetura da FAU.
Eu me vejo obrigado a, rotineiramente, fazer retratações. Chegará um dia em que farei mais retratações ou darei explicações detalhadas do que quis dizer do que continuar aliado ao ineditismo.
A compreensão de texto é um déficit no Brasil. A cegueira ideológica impede o entendimento de sutilezas, entrelinhas, ironias. Para um autor, ter que anunciar “é uma piada” é uma tortura.
Senti saudades do tempo em que me chamavam apenas de analfabeto, subescritor, e diziam que quem escrevia meus livros era uma comissão da editora. Professores de cursinho, assim como escritores, juravam em público que meus livros eram na verdade escritos por Caio Fernando Abreu. Manifestação de um preconceito a qual estou habituado.
Ser escritor, hoje, é um ser didático. É, antes de tudo, um forte. Dá vontade de largar tudo. 

Afrodisíacos - Luis Fernando Verissimo

Existe uma vasta literatura sobre afrodisíacos - quase toda ela em francês, claro.
*
Mme. de Maineton mandava fazer costeletas de vitela com anchovas, basílico doce, cravo, coentro e conhaque para animar o Luis XIV. Não se sabe o resultado que elas produziam no rei mas o prato “Côtelettes de Veau à la Maintenon” é famoso até hoje, um exemplo de efeito colateral histórico. Já Mme. Du Barry fazia fé em suflês de gengibre para manter o interesse de seu amante real, Luis XV. Dizia que ele nunca desandava. O suflê, não o rei.
Alcachofras eram consideradas afrodisíacas. E o escritor Hector Dirssot preparava-se para noites de loucura na alcova comendo enguias com trufas, enroladas em papel amanteigado, assadas na brasa e servidas sobre um ragu de siri apimentado, e que só tinham o efeito desejado se acompanhadas por um bom vinho Sauternes. Não se conhece qualquer depoimento de uma parceira do escritor sobre a eficiência da receita. Pela sua descrição, desconfia-se que muitas vezes Dirssot recorria ao prato não para assegurar o sexo mas para substituí-lo.
As trufas brancas da região do Piemonte já foram consideradas infalíveis, e ficavam ainda mais estimulantes se preparadas com fígado de ganso e um pouco de vinho branco. Brillat-Savarin escreveu que uma determinada senhora francesa quase sucumbiu ao assédio de um jovem gourmet que lhe propunha servir aves com trufas de Perigueux em troca de amor, e sua admiração era menos pela sólida virtude da dama do que pela sua resistência, decididamente inexplicável. Brillat-Savarin insinua que o pretendente insistiu e a dama resistiu até ele oferecer trufas de Perigueux inteiras assadas na cinza, porque aí também já seria desumano.
*
Todas estas receitas – tiradas, por sinal, de um livro de George Lang chamado Compêndio de bobagens e trivia culinárias – ficavam melhores e mais poderosas se acompanhadas de um “Vin de Gentiane”, ou vinho de genciana, assim preparado: rale-se uma raiz de genciana e deixe-a de molho no Conhaque por um dia. Acrescente-se vinho Bordeaux, filtre-se tudo por uma peneira fina e deixe-se num receptáculo lacrado por oito dias. Não abrir perto das crianças.
*
– Você já ouviu falar de vinho de genciana?
– Não. Por que?
– Eu estava lendo que parece que genciana é afrodisíaco.
– Eu nem sei o que é isso.
– Afrodisíaco?
– Não. Genciana.
– Nem eu. Vamos ver no dicionário?
– Deixa ver. Ge, ge, ge... “Genioso”, “genista”, “genital”...
– Quando você era pequeno, não procurava nome feio no dicionário?
– Procurava! Me lembro quando eu descobri que no dicionário tinha “bunda”. Foi uma sensação. 
– Como a gente era boba, né? 
– “Genitália”...” genitivo”... Espera aí, estou olhando na página errada. “Genciana”... “genciana”... Está aqui! “Genciana”. Hmm... “Planta da família das gencianáceas...”
– Qual é a família?
– Gencianáceas. Por que, você conhece?
– Não, não. Foi a maneira como você disse. Achei...
– O que?
– Bonitinho. 
– “Gencianáceas”...
– Me beija!
*
Hoje, com a química, toda esta literatura ficou ainda mais antiga. Trufas, enguias, ostras, raiz de genciana, tudo foi substituído por pílulas. É verdade que alguns dos recursos a que o homem recorria no passado, como chifre de rinoceronte pulverizado, não fazem falta. Mas a humanidade perdeu alguma coisa quando perdeu o risco de morrer de congestão durante o ato sexual, depois de se empanturrar para garantir que ele seria bom. Diminuiu-se a nossa aventura sobre a Terra. E fico pensando naquele ragu de siri...

O leão e o rato – Fábula de Millôr Fernandes


Depois que o Leão desistiu de comer o rato porque o rato estava com espinho no pé (ou por desprezo, mas dá no mesmo), e, posteriormente, o rato, tendo encontrado o Leão envolvido numa rede de caça, roeu a rede e salvou o Leão (por gratidão ou mineirice, já que tinha que continuar a viver na mesma floresta), os dois, rato e Leão, passaram a andar sempre juntos, para estranheza dos outros habitantes da floresta (e das fábulas). E como os tempos são tão duros nas florestas quanto nas cidades, e como a poluição já devastou até mesmo as mais virgens das matas, eis que os dois se encontraram, em certo momento, sem ter comido durante vários dias. Disse o Leão:
– Nem um boi. Nem ao menos um paca. Nem sequer uma lebre. Nem mesmo uma borboleta, como hors-d’oeuvres de uma futura refeição.
Caiu estatelado no chão, irado ao mais fundo de sua alma leonina. E, do chão onde estava, lançou um olhar ao rato que o fez estremecer até a medula. “A amizade resistiria à fome?” – pensou ele. E, sem ousar responder à própria pergunta, esgueirou-se pé ante pé e sumiu da frente do amigo (?) faminto.
Sumiu durante muito tempo. Quando voltou, o Leão passeava em círculos, deitando fogo pelas narinas, com ódio da humanidade. Mas o rato vinha com algo capaz de aplacar a fome do ditador das selvas: um enorme pedaço de queijo Gorgonzola que ninguém jamais poderá explicar onde conseguiu (fábulas!). O Leão, ao ver o queijo, embora não fosse animal queijífero, lambeu os beiços e exclamou:
– Maravilhoso, amigo, maravilhoso! Você é uma das sete maravilhas! Comamos, comamos! Mas, antes, vamos repartir o queijo com equanimidade. E como tenho receio de não resistir à minha natural prepotência, e sendo ao mesmo tempo um democrata nato e confirmado, deixo a você a tarefa ingrata de controlar o queijo com seus próprios e famélicos instintos. Vamos, divida você, meu irmão! A parte do rato para o rato; para O Leão, a parte do Leão.
A expressão ainda não existia naquela época, mas o rato percebeu que ela passaria a ter uma validade que os tempos não mais apagariam. E dividiu o queijo como o Leão queria: uma parte do rato, outra parte do Leão. Isto é: deu o queijo todo ao Leão e ficou apenas com os buracos. O Leão segurou com as patas o queijo todo e abocanhou um pedaço enorme, não sem antes elogiar o rato pelo seu alto critério:
– Muito bem, meu amigo. Isso é que se chama partilha. Isso é que se chama justiça. Quando eu voltar ao poder, entregarei sempre a você a partilha dos meus bens que me couberem no litígio com os súbditos.
Você é um verdadeiro e egrégio meritíssimo! Não vai se arrepender!
E o ratinho, morto de fome, riu o riso menos amarelo que podia, e ainda lambeu o ar para o Leão pensar que lambia os buracos do queijo, E enquanto lambia o ar, gritava, no mais forte que podiam seus fracos pulmões:
– Longa vida ao Rei Leão! Longa vida ao Rei Leão!
MORAL : Os ratos são iguaizinhos aos homens.

sábado, 23 de dezembro de 2017

Avanços tecnológicos servirão para nos fazer trabalhar cada vez mais - Drauzio Varella

Líbero//Editoria de Arte/Folhapress


De boas intenções o inferno e os fins de ano estão cheios.
De minha parte, costumo tomar decisões radicais que tornarão meus dias mais tranquilos e me permitirão conviver mais tempo com a família e os amigos, fazer as refeições na hora certa, dormir pelo menos seis horas por noite, atender menos doentes, passar menos horas em aeroportos e em viagens de ida e volta no mesmo dia para cidades a milhares de quilômetros de distância.
Houve um tempo em que colocava minha mulher a par desses bons propósitos. Anos atrás deixei de fazê-lo, menos pelo receio de faltar com a palavra empenhada, do que pela vergonha diante do descrédito visível no sorriso dela.
Nos anos 1960, assisti a uma mesa redonda na faculdade de medicina, em que um grupo de professores da USP discutiu um tema candente naquela época: "O trabalho no ano 2000".
Como os debatedores previam avanços tecnológicos e máquinas que fariam a maior parte do trabalho humano, a preocupação era o que fazer com o tempo ocioso dos trabalhadores do século 21, para combater a sensação de inutilidade que os levaria aos transtornos psiquiátricos e ao alcoolismo.
Não demorei para constatar o equívoco dessas e de outras previsões sobre o milênio que estamos vivendo. Aconteceu o oposto: a evolução da tecnologia só nos trouxe mais trabalho. Cada invenção incorporada tornou mais escassas nossas horas de lazer.
No fim dos anos 1980, durante um estágio hospitalar nos Estados Unidos vi um aparelho de fax.
Fiquei maravilhado.
Um relatório médico enviado de Los Angeles chegava em Nova York num passe de mágica. Assim que pude, comprei um aparelho e instalei-o em casa.
Em poucas semanas, a sala foi invadida por rolos de papel que jorravam da máquina feito cachoeira, com os resultados de exames encaminhados pelos laboratórios de análises. Fui obrigado a acordar mais cedo para dar conta deles.
Depois, vieram o computador, a internet e o e-mail, invenções inacreditáveis que aposentaram as máquinas de escrever, revolucionaram o acesso às informações e condenaram o fax à obsolescência. Mas quem poderia imaginar que o e-mail se tornaria o flagelo estressante da vida atual?
Então, Lúcifer, o anjo decaído que a tudo assiste em sua tarefa cotidiana de atazanar mulheres e homens, inventou o celular.
Era do tamanho de um sapato 45, mas fiquei maravilhado outra vez. Adeus ao bipe e ao bolso cheio de moedas para ir atrás dos telefones públicos quando ele tocava.
O sucesso da invenção animou a indústria a produzir modelos cada vez compactos, de modo a facilitar o transporte para todos os cantos, junto ao corpo do usuário.
Então, Satanás que a tudo continuava a assistir, criou uma armadilha mais maligna do que o próprio inferno: a tela do celular.
Achei o máximo, agora tinha o mundo em minhas mãos: WhatsApp, Facebook, YouTube, Instagram e o diabo que o carregue.
Inadvertido, caí nas garras do Cão. A pessoa me manda um e-mail e transfere para mim o problema dela. Como não há necessidade de chegar até um computador para responder, em dez minutos ela me envia um WhatsApp: "Você não viu meu e-mail?". Inútil fingir que não recebi a mensagem, ela verá os dois risquinhos na tela.
Aí, um desocupado me inclui num grupo. Para não magoar os demais participantes, fico sem graça de sair. Resultado: meus dias são povoados por gatinhos cafonas dando bom dia, paisagens idílicas musicadas, pensamentos dignos dos calendários Seicho-No-Ie, piadas cretinas, maledicências e boatos absurdos apregoados como verdade universal.
Essa balbúrdia cibernética acelera e estressa o dia a dia, mas aumenta a eficiência no trabalho.
Por essa razão, é fácil prever que os próximos avanços tecnológicos servirão para nos fazer trabalhar mais, cada vez mais, numa espiral enlouquecida que nos roubará o resto do lazer que ainda desfrutamos.
Em compensação, dirá você, caríssimo leitor, hoje somos muito mais competentes.
É verdade.
Eu seria incapaz de cumprir a metade dos compromissos que assumi.
Teria deixado de fazer trabalhos e vivido momentos que me trouxeram realização pessoal, alegria e felicidade. Apesar dos pesares, viva o futuro. 


Miséria de vida - Sergio Augusto

Ninguém viu nem jamais verá um filme intitulado It’s a Miserable Life. Dele só existe e apenas existirá um cartaz, desenhado e recém-postado nas redes sociais por um internauta anônimo. É uma brincadeira com It’s a Wonderful Life (no Brasil, A Felicidade Não se Compra), o melodrama de Frank Capra há décadas ritualisticamente reprisado na TV e em vários cinemas americanos na noite de Natal.
O cartaz é uma réplica paródica do pôster original do filme de Capra, acrescida deste slogan no rodapé: “Christmas is dead, and we killed it” (O Natal morreu, e nós o matamos). Nós quem? Os filósofos Friedrich Nietzsche, Jean-Paul Sartre, Arthur Schopenhauer e Slavoj Zizek. São eles os astros do imaginário filme, “produzido e dirigido por Jean Baudrillard”.

Algum tempo atrás, a gozação não pareceria tão oportuna quanto agora. Nem é preciso seguir com atenção o noticiário para constatar quão miserável ficou a vida neste planeta - notadamente depois da ascensão do Arturo Ui laranja à Casa Branca. 
(Ainda que desconheça quem foi Arturo Ui - uma hitleriana mistura de Al Capone com Ricardo III que, numa peça, Bertolt Brecht fez ascender na Chicago dos anos 1930 - você sabe a quem me refiro.)
Na verdade, quem matou o Natal, vale dizer o espírito natalino, não foi o quarteto de filósofos supracitados, mas a sociedade de consumo, insana, perdulária, egoísta e profundamente anticristã que o pior do capitalismo estimulou. Isso transparece, de forma oblíqua, no filme de Capra. Que, aliás, poderia intitular-se “It’s a Miserable Life” não fosse esse título inadmissível do ponto de vista comercial. E se Capra acreditasse menos na pureza de sentimentos do homem comum. Os humildes podem não herdar a Terra, mas sempre saem como heróis das fábulas do cineasta.
Se não achasse sua vida miserável, George Bailey, o depressivo protagonista interpretado por James Stewart, não começaria o filme tentando suicidar-se nas águas do rio que banha a bucólica Bedford Falls. Nada dera certo para ele. Sonhava com sacudir a poeira da cidade, dotá-la de pontes, arranha-céus, e viajar aos lugares exóticos que namorava nas páginas da National Geographic, em vez de ficar preso ao escritório da pequena financeira paterna. Perdeu a universidade quando o pai morreu e a chance de ir pra guerra por causa de uma deficiência auditiva, indiretamente provocada por um dos irmãos. O altruísmo e a abnegação, não apenas o acaso, quase arruinaram a vida de Bailey.
Demovido do suicídio por um avuncular anjo chamado Clarence, Bailey só se convence da importância de sua existência depois de testemunhar, pelo condão de Clarence, como teria sido o mundo sem a sua presença, sem as suas providenciais intervenções na vida da cidade, dos seus habitantes e de seus familiares.
Sem ele para enfrentar o usurário Henry S. Potter e sua voracidade pecuniária, Bedford Falls jamais seria ou voltaria a ser o pacato lugarejo em que Bailey nasceu e se criou. Agitada por clubes noturnos, cassinos, salões de bilhar, cinemas, luzes néon e prostituição, teria até outro nome, Pottersville, mantendo, porém, detalhe importante, a mesma estrutura econômica e os mesmos valores de Bedford Falls - com outras e mais graves distorções.
Bailey, um pequeno banqueiro do bem, que não mede sacrifícios para ajudar a clientela miúda, emprestando-lhe dinheiro a juros baixos e outras benesses, fica chocado com a Pottersville fantasiada pelo anjo. De todo modo, não é mais empolgante a vidinha levada em Bedford Falls. Se Pottersville é ou se transforma num horror urbano, numa caricatura provinciana da “cidade grande”, consumando as concepções de progresso e modernidade do banqueiro do mal (um vilão que idolatra Napoleão e parece saído das páginas de Dickens), Bedford Falls é um tédio só, um lugar sem lazer, modorrento, demasiado sombrio para nos evocar a plácida América de Norman Rockwell.
Embora seus dois roteiristas tenham desenvolvido o script a partir de uma historinha impressa num cartão natalino, daquelas que outro personagem de Capra, o Gary Cooper de O Galante Mr. Deeds, escrevia para dar vazão a seus dotes literários, A Felicidade Não se Compra é muito mais que um filme natalino. Assim como Adorável Vagabundo (Meet John Doe) é menos uma tragicomédia sobre o frustrado suicídio de um maior abandonado na noite de Natal do que um drama sobre as consequências da Grande Depressão.
Alguém observou que A Felicidade Não se Compra é o menos religioso (esqueçam o anjo) e o mais humanista dos filmes de Capra. Seus personagens, apesar de acomodados e otimistas, não esperam por uma intervenção divina, preferem agir por conta própria, enfrentando a vilania de Mr. Potter com as armas da solidariedade e da compaixão. Cinéfilos com conhecimento de economia já organizaram mesas-redondas para discutir a propriedade com que Capra expõe o sistema bancário e suas perversidades e os abusos do mercado imobiliário desregulamentado.
O FBI de Hoover cismou que ali havia uma “mensagem subversiva”. Com a caça às bruxas dando suas primeiras rasantes, um memorando sigiloso de 1947 acusou o filme de “desacreditar os banqueiros”, denúncia que só não prosperou porque um ex-comunista de boas com a falange macarthista depôs a seu favor, salientando que Bailey e seu pai afinal passavam uma imagem positiva dos homens de negócios, não eram sanguessugas de hipotecas.
A Felicidade Não se Compra não precisou da chegada do Natal para ser lembrado pela mídia quando estourou, em 2012, o Caso Abacus. Sediado na Chinatown de Manhattan, o Banco Abacus, instituição familiar criada e dirigida por um imigrante chinês chamado Thomas Sung, notabilizou-se por ajudar a comunidade chinesa com empréstimos e acertos financeiros camaradas. Um alto funcionário do banco fraudou a clientela e quase levou o honesto e generoso Thomas Sung à falência e à prisão. O desenrolar do processo foi tão emocionante quanto o terço final de A Felicidade Não se Compra, e rendeu a Sung o merecido apelido de “o George Bailey de Chinatown”.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Uma mulher se olhando no espelho - David Coimbra

Ela era oriental. Grandes olhos escuros e amendoados. Uns vinte e poucos anos, o negro reluzente dos cabelos se derramando à altura dos ombros, a pele cremosa. Você entende o que é uma pele cremosa? Dessas boas de se tocar.
Há orientais aos cardumes por aqui. Japonesas, chinesas, coreanas, vietnamitas. As vietnamitas trabalham como manicures. Pelo que apurei, praticamente todas as manicures da cidade são vietnamitas. Qual é a razão disso?, aí está algo que alguém algum dia vai ter de me explicar.
Essa menina não se parecia com uma manicure vietnamita. Tinha jeito de ser coreana, talvez estudante de uma das tantas universidades de Boston.
Estávamos no trem.
No trem, o que as pessoas fazem no trem, por aqui, é lidar com seus celulares. Quase todos, senão todos, passam a viagem olhando para o colo e digitando com os polegares.
A habilidade de digitar com os polegares é algo que me fascina. Como conseguem? Meus polegares, positivamente, não dispõem dessa motricidade fina.
Faço questão de deixar o celular no bolso, quando no trem, exatamente para poder observar as pessoas, como fazia agora com a moça oriental. Ela também não manuseava o celular, mas não me via, não olhava para ninguém. Nem olhar para dentro do vagão olhava. Foi o que mais me chamou a atenção: ela olhava pela janela.
Ocorre que o trem tinha penetrado na terra, tinha virado metrô, e não havia nada para ver, além de paredes passando em rápida sucessão. Mas ela não desviava o olhar da janela. Para que olhava?
Só compreendi depois de alguns minutos: ela olhava para ela mesma. Fitava sua própria imagem refletida no vidro, como se estivesse diante de um espelho. Era um olhar de exame intenso. Levantou um pouco o queixo, entreabriu os lábios – era dona de lábios carnudos, principalmente o lábio superior. São especialmente misteriosas as mulheres de lábio superior mais polpudo do que o inferior. Um naco branco de seus dentes frontais apareceu. Ela agora respirava pela boca.
Semicerrou os olhos. Ergueu a mão devagar e levou dois dedos até o rosto. Tocou-se. Acariciou aquela pele cremosa com suavidade, desceu os dedos até a base do queixo e, finalmente, sorveu um gole de ar. Continuou se admirando, virou o rosto de leve para um lado e para outro, para se ver de perfil. Devia estar se achando bonita.
Então, pensou em algo. Acho que em alguém.
Na verdade, tenho certeza de que pensou em alguém, porque, em um segundo, desviou o olhar da janela e deixou os olhos vagando pelo vazio do ar do vagão. Enfim, baixou a cabeça, abriu a bolsa que levava sobre as pernas e de lá tirou o celular. Começou a digitar com os polegares, como faziam os outros passageiros. Suponho que tenha mandado uma mensagem, suponho que tenha sido para um homem, porque seu rosto de repente se iluminou.
O que ela escreveu? Que mensagem enviou? Queria tanto saber. Foi algo definitivo. Porque, em um segundo, ela voltou a se mirar no vidro da janela, e ali havia uma expressão nova. Ali havia um sorriso. Um sorriso mínimo, mas, sem dúvida, de vitória.
Estávamos na minha estação. Eu tinha de desembarcar. Vacilei um segundo, mas por fim desci. Fiquei olhando o trem ir embora, levando com ele uma mulher que não precisa mais do que olhar para si mesma para se sentir feliz.

Dois Jabutis vizinhos em Pinheiros - Ignácio de Loyola Brandão

Para Fofão, vida e sofrimento nunca entendidos
Dois Jabutis, o prêmio da Câmara Brasileira do Livro, moram há um mês em Pinheiros, a cem metros um do outro. Um na Rua Artur de Azevedo, e o outro na João Moura. Um pertence a Paola Carosella pelo livro de gastronomia, Todas as Sextas, que deve estar ali no Arturito, o restaurante. O outro está aqui em casa, em cima da caixa vermelha envernizada que foi do meu avô, e que me rendeu outro Jabuti, há dois anos com o livro Os Olhos Cegos dos Cavalos Loucos. O Jabutizinho de agora veio com meu livro de crônicas Se For Para Chorar Que Seja de Alegria, com que comemorei meus 80 anos. Fomos segundo lugar em nossas categorias, gastronomia e crônicas. 
Segundo, em literatura, não quer dizer vice, não tem o estigma ruim do vice político, longe disso. Os nossos dois prêmios foram conseguidos com sonhos, experiência e duro trabalho. Este ano, houve um detalhe significativo – fundamental – na premiação dos Melhores do Ano. Magda Soares com Alfabetização: A Questão dos Métodos, e Silviano Santiago com o romance Machado têm, respectivamente, 85 e 81 anos. E continuam a trabalhar duro, idealistas sonhadores. 
Falemos de outras coisas agradáveis. Como pode ser agradável o domingo em São Paulo. Saímos para almoçar e nos lembramos do restaurante Basilicata, nascido quando a tradicional padaria do Bixiga fez cem anos. Marcia, Rita e eu ali mergulhamos em um espaguete à carbonara, regado por um Nero Amaro que nos fez bem felizes. Neste estado de espírito e como era uma tarde de sol, decidimos ver a Ocupação Nise da Silveira no Itaú Cultural. Subimos a pé da 13 de Maio à Paulista, por que não? Fantástica Nise, que mudou a forma de tratar os doentes mentais, introduzindo a arte como terapia e lutando bravamente contra o machismo de médicos que ainda faziam lobotomia. Essa mesma Nise que foi presa como comunista (fantasma que assombra os idiotas até hoje). Nos emocionamos às lágrimas ao ver a arte e os textos produzidos pelos “loucos” ou insanos. 

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

É a vida... - Roberto DaMatta

“A vida não piora nem melhora”, falou o professor.
Um aluno invocado fez o teorema:
- Então se melhorar piora e se piorar melhora? 
- É a lei das ironias! Depois da chuva, o sol; e da juventude, a velhice. A redenção exige o pecado e o sim, um sonoro não.
O professor, um sujeito empertigado e consciente do seu papel, tentou um arremate:
- Arthur Schopenhauer dizia que o mundo era tocado pela vontade. Essa pulsão de caráter sensual criou o intelecto que nos salva pela arte. 
*
No Brasil, chamamos essa força de “vida”. “É a vida”, proclamamos com indiferença, ou como sinal de resignação porque podemos lutar contra tudo - sobretudo na chamada “política” tal como ela é concebida por nós (eis um assunto que vale pesquisar) - mas não podemos lutar contra a vida da qual só escapamos cabalmente com a morte. Morte que é parte da “vida” como o que alguns chamam de nada. 
A morte é a paz do não ser; a vida é guerra, gozo e frustração. George Orwell trabalha com ironias (“guerra é paz”), tal como as leis de Murphy (“as coisas podem piorar, você é que não tem imaginação”) e os aforismos do Godot, de um Samuel Beckett contraposto aos otimismos da cultura americana que contemplam o sucesso como um “êxito” - uma feliz saída de um mundo ou condição. Mundo maravilhoso (what a wonderful world...) que, para eles, representa o papel do nosso desconfiado conceito de “vida”. Mais pessimista, mais realista e totalmente certo de que, em geral, “quanto maior o cargo, mais cheio de merda quem o ocupa”, conforme dizia tio Silvio, pronunciando um dos mais verazes axiomas da vida nacional.
*
Recordo a ironia dos meus tios maternos - Marcelino, Silvio e Mario. Cada qual com sua cota de esperança. A irônica esperança de suportar o peso da vida, que nos arrasta sem comiseração ou piedade. Tio Silvio repetia: “Meu sobrinho, há que se beber muito para aguentar os trancos da vida!”. 
Quando meu pai jazia morto, vestido com aquela serenidade invejável e indesejável da morte, um Silvio de olhos tristes me olhou, voltou-se para o morto querido e pronunciou um conceito definitivo: F...! 
Explico para os moralistas de plantão cuja marca é a falta de inteligência simbólica que o “beber” do Sivoca não era o mero álcool ou a fuga para uma fé cega, ideologia caolha, seita ou partido desonesto. Não! Era justamente isso que estou fazendo por uma mistura de compulsão, gosto e empenho: a escrita. A narrativa - a tal “moral da história” - com a qual temos (justo porque humanos somos) a obrigação de aceitar a “vida”. A nossa e a dos outros.

No momento dessa intolerável insegurança do que chamamos de “Brasil”, cujos comandantes de merda - à direita e à esquerda - não deixam que ele encontre rumo. Um rumo que só pode acontecer quando ele for realizado já que sem a liberdade de decidir ou tentar, nada é feito. A vida não tem sentido em si mesma. Ela tem que ser vivida para ser alguma coisa.
*
A ironia é o riso do palhaço consciente de sua máscara num ato muitas vezes ensaiado que parece espontâneo; enquanto nós, fora do palco, tentamos transformar surpresas e desgraças em rotinas, afirmando: é a vida! 
Quando meu tio Mario, o Miroca, dizia que não havia happy end, exceto nos filmes estrelados por Gregory Peck, ele ensinava que o heroísmo humano era o de, apesar de tudo, aguentar-se. Quando jovem, Miroca engoliu cru a doença e a morte dos irmãos numa sequência imerecida por critérios humanos, mas muito justa pelos desígnios divinos. 
Não há contabilidade na vida: ela não é confiável dizia, por seu turno Marcelino, o dom-juan da família que, talvez por isso, se dizia comunista. Tudo deveria ser dividido e ele contribuía namorando senhoras casadas com maridos ciumentos da “classe dominante”. É a vida, dizia
*
A plena aceitação da ironia - afinal, é a vida... - ajuda a contrabalançar o catastrofismo. Hoje, desvendamos a podridão do sistema quando ouvimos a confissão dos batedores de carteira do povo. Foram-se as utopias, mas não as ironias. Dezenas de poderosos viraram sentenciados. Mocinhos são de fato bandidos. Mas continuam poderosos nas prisões transformadas em hotéis.
Eis uma extraordinária ironia. Quando, com um enorme sofrimento e uma densa hipocrisia, prendemos criminosos-correligionários-parentes e amigos; não porque queríamos, mas porque, no poder, eles abusaram dos seus privilégios e era impossível não fazer alguma coisa, as prisões ficaram mais humanas! Têm que estar à altura dos seus prisioneiros poderosos.
Em democracias, todos estão, infelizmente, debaixo da lei. O crime importa mais do que a pessoa e o cargo de quem o cometeu. Quando um cara que mora num palácio é preso, a cadeia tem que virar palácio. 
É a vida...

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Uai - Luis Fernando Verissimo


"Se eu já vi coisa parecida com o que está acontecendo no Brasil, hoje? Olha, já vi, sim senhor. Nós tinha um chiqueiro em casa, e era parecido. Um pouco melhor porque porco não fala, né? Era como é hoje, mas sem os discurso."

"Meu nome é Neuplides. Pior é meu irmão, que nasceu no dia 1º de janeiro e meu pai foi olhar na folhinha que dia era aquele, pra ver que nome dava, e o nome dele ficou Circuncisão de Jesus. Mas em casa a gente chama de Cisão."

"Manga com leite mata, água depois do café entroncha e cachaça com melancia não mata mas o cristão fica uma semana piscando ligeiro e com o pé virado pra dentro. Um tio meu comeu uma rabada de porco com licor de graviola e quando acordou da sesta estava com a cueca pra fora das calças e só falava alemão."

"Não sou padre milagreiro, não. O povo é que pensa, sabe como é brasileiro. Quer dizer, faço meus milagrinhos, mas nada de levantar morto ou fazer corcunda aprumá. Só milagrinho de quermesse. Levito galinha, curo catarreira e transformo lombriga em vagem. Nada de milagrão, desses de aparecer no Fantástico. Quem sou eu? Só milagre municipal."

"Cantuérpia Falcão. Sou tia. Está aqui no meu cartão: ?Profissão: tia?. Acompanho menina em forró e baile no salão da igreja e também fico junto na sala em caso de namoro firme ou noivado. Sou incorruptível, um exemplo para os político. Cobro pouco e se a menina não chegar virgem no casamento, devolvo o dinheiro."

"Vocês conhecem o Cego Aderaldo, o Cego Rupião e o Cego Jovair, todos os três cantadores de primeira, mas aposto que não me conhecem. Vista Cansada Edélsio. Pois é, tá assim de sanfoneiro cego fazendo sucesso, mas eu ninguém convida. Eu tenho culpa de não ser cego? Não adianta dizer que tenho astigmatismo e miopia, eles querem cego, cego. Discriminação, sô!"

"Pra saber como vai ser o seu marido, encha uma bacia grande com água e deixe na rua durante toda a noite de São João. Se cair folha dentro da bacia vai ser moreno, se cair flor vai ser claro, se cair inseto vai ser militar e, se cair homem, leva pra casa, enxuga e fica com ele mesmo, uai."

"Os bonecos são todos meus, sim senhor. Mestre Pontinho, artista popular, seu criado. Este aqui é o Lampião, esta é a Maria Bonita, Corisco, Sarney, Xuxa... Este é mais caro porque é o Padre Cícero e este grupo aqui é a CPI do mensalão. Ou vendo tudo com desconto."

"Mon nom é Jean-Paul e fui eu que descobri a ?lambadá? e levei pra France, e agora estou aqui para transformar outra dance bresilienne em sucess internacional. Me falaram muito de uma tal de ?maracutaiá?, é verdade? ?Maracatuiá? faz muito sucess no Brasil, ahn? Parece que é mais sensual que a ?lambadá? porque se dança com as mãos nos bolsos da outra pessoa, c?est ça?"

"Pra casar, sendo homem tá bom. Eu já disse pra Santo Antônio: ?Antônio, faz o melhor que puder, mas, se só tiver defunteiro ou sapateiro viúvo, não tem importância não, desde que esteja em bom estado. Só não quero tesoureiro de campanha pra não me incomodá?".

Baú geriátrico - Humberto Werneck



Estava eu num papo com estudantes de jornalismo, e lá pelas tantas cometi a imprudência de jogar na roda, sem prévia explicação, como coisa sabida, a palavra “telex”. A estupefação que o enunciado desse empoeirado termo produziu no auditório seria comparável ao que desencadeou, na minha infância, numa roda geriátrica aonde eu fora sapear, uma alusão ao espartilho. 
Antes que você se boquiabra, como fiz eu próprio na primeira vez que ouvi alguém exumar do baú verbal tamanha velharia, volto ao dicionário Houaiss e socializo o verbete: espartilho vem a ser uma “cinta longa e de corte anatômico, que vai dos quadris até abaixo dos seios, feita de tecido resistente e provida de barbatanas de baleia ou lâminas de aço para que não enrugue e com ilhoses de cima a baixo, por onde se passam longos cadarços, puxados para apertar ao máximo o abdome e a cintura, modelando o tronco”.
Barbatanas de baleia, lâminas de aço! Em outras palavras, uma espécie de carapaça na qual, sabe Deus ao custo de quanto esforço, sinhás e sinhazinhas do tempo do Império empacotavam seus corpos, qual linguiças, tornando-os assim ainda mais apetitosos aos olhos & ventas de machos a regurgitar libido. Apetitosos e quase inexpugnáveis: imagino o trabalho que dava ao afogueado parceiro, na intimidade da alcova, remover toda aquela armadura, com o risco de ferir-se nas agressivas barbatanas de baleia e lâminas de aço, operação em meio à qual cavalheiros menos controlados terão visto esvair-se o desejo antes da hora. E quase posso ver o alívio revanchista com que banhas até então reprimidas se projetavam para fora, recuperando antigos territórios e arredondando a silhueta de madame.
Fosse só o espartilho - mas não: houve tempo em que o guarda-roupa feminino não dispensava ainda as tais anquinhas, esquisitice que o mesmo Houaiss descreve como sendo “armação de arame ou almofadas, usada pelas mulheres até meados do século 19 para realçar os quadris e dar mais roda às saias”. Num tempo em que tantos e tantas se casavam no escuro, para só no leito conjugal satisfazerem curiosidades cruciais, é razoável supor que alguns varões, não encontrando sob as anquinhas todo o recheio imaginado, tenham tido ganas de recorrer a um Procon matrimonial.                                                    

Também as damas poderiam decepcionar-se no quesito tamanho, ao constatarem, na hipótese mais publicável, que uma parte substancial daqueles ombros eram, na realidade, enchimentos providenciados por quem talhou o paletó para tornar mais imponente o cavalheiro nele empacotado. Se não alcancei anquinhas e espartilhos, me lembro bem da ironia com que ambos os sexos se referiam aos cavalheiros artificialmente espadaúdos: Tarzan, o Filho do Alfaiate. Por pouco o rótulo não voltou a ser utilizado quando, nos anos 1980, a moda dos ombros com enchimento teve infeliz recaída, conferindo aos marmanjos em certo ar de carta de baralho.                                                                                                
Mas voltemos ao telex, uma dessas palavras que, tendo desaparecido aquilo que designavam, ou simplesmente tendo mudado de nome, são capazes de denunciar a idade de quem as utiliza, tanto quanto o isótopo radiativo carbono 14 dá conta de datar uma ossada de animal pré-histórico. Fecho éclair em vez de zíper. Creme rinse em vez de condicionador. “Discar” no telefone em que todos teclam. Carro de praça. Vitrola. DiscLaser. Anágua. Motoca. Dentifrício. Penico. Escarradeira. Melhor parar por aqui, até porque o propósito era falar do telex.                                                                                        

Ao sair de cena, creio que no final do século passado, esse receptor e transmissor de mensagens tinha um teclado macio, não muito diferente dos atuais computadores. Lento, havia nele um delay entre digitar e as palavras pipocarem no papel: se você ia rápido demais, ao terminar da frase podia suspender os dedos e a geringonça continuava a matraquear, chegando a sugerir aqueles pianos que dispensam pianista. Eram, ainda assim, aparelhos de telex incomparavelmente mais avançados que os anteriores, nos quais, vá a confissão ainda mais geriátrica, cheguei a catar milho.                            

Gerações e gerações gastaram dedos em teclados duros como botas militares. Entre os jornalistas com quem trabalhei, lembro-me de poucos capazes de escrever e transmitir ao mesmo tempo. O Carlinhos Brickmann e quem mais? Para os demais, havia uma primeira fase, na qual o batucar ia perfurando uma fita amarela. Em seguida, no mesmo aparelho, fazia-se uma ligação telefônica, e, uma vez autorizada a transmissão, a máquina se punha a desenrolar, ta-ta-ta-ta-ta, o rolinho com a fita, cujo conteúdo, traduzido em letras (só maiúsculas) e algarismos, ia brotando no telex do destinatário, que automaticamente o imprimia num rolo de papel contínuo com várias cópias em carbono, a última delas tão esmaecida que parecia guardar com a primeira um parentesco de remoto grau.          

Papel-carbono! Mal pronunciei estas palavras e vi acentuar-se no rosto da jovem plateia uma expressão de pasmo, e em mim nascer a dúvida: será que isso ainda existe, ou estarei falando de mais uma antiqualha, só um pouco mais recente que as anquinhas e o espartilho? Esqueçam, disse eu, entregando os pontos: o telex, gente, era um mastodonte mecânico que os antigos usavam para transmitir escritos, e estamos conversados. 

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

As penas amassadas do ganso - David Coimbra


Tempos atrás, fiz uma descoberta inquietante: a peteca de badminton é montada com as penas da asa esquerda do ganso.
Apenas as da asa esquerda; as da direita, não.
Isso porque o ganso tem o hábito de dormir em cima da asa direita. Assim, as penas dessa asa ficam meio amassadas e tornam-se inapropriadas para uma boa peteca de badminton.
Considero essa informação fascinante. Em primeiro lugar, por ser intrigante o fato de os gansos, todos os gansos do mundo, que, suponho, sejam centenas de milhares, todos eles dormirem sempre, todas as noites, sem exceção, sobre a asa direita. Por que será? Preciso ver, um dia, um ganso dormindo assim, de ladinho.
Outro aspecto que me deixa curioso nessa questão é a respeito dos gansos dos quais são retiradas as penas para que sejam montadas as petecas de badminton. Será que eles andam por aí, pelo campo, com uma asa pelada e a outra coberta? Era outra coisa que gostaria de ver.
Finalmente, e é por este motivo que ora escrevo, finalmente, o que de fato me inquieta é isso de que as penas do lado em que o ganso dorme ficam arruinadas para a peteca. É perturbador. Porque significa que faz diferença você dormir para lá ou para cá. Quer dizer: se faz diferença para o ganso, por que não faria para você?
Pois bem. Ocorre que, outro dia, encontrei algo interessante na internet – a internet é repleta de informações interessantes. Por exemplo: você sabia que existe um peixe que dorme durante cinco anos sem comer nada? Que a bioengenharia chinesa está recriando dentes a partir de células extraídas da urina humana? Que camarão recheado com gelatina para dar volume é o novo escândalo alimentar? Que mulheres com nádegas grandes são mais inteligentes e saudáveis do que as com nádegas pequenas?
Pois é.
Mas, desta feita, o que vi na internet foi a confirmação de meus temores: a posição durante o sono pode afetar gravemente a sua saúde. E mais: revela traços importantes da sua personalidade. Não vou descrever o que acontece com quem dorme em cada uma das seis posições listadas no texto. Digo, tão somente, que cada uma tem seu perigo.
O que se deu, depois que li isso?
No escuro do quarto, na hora de dormir, pus-me a pensar. Deitado de lado, fiquei me sentindo um ganso com as penas amassadas, inúteis para petecas. De bruços, lembrava que daquela maneira podia até sufocar, segundo o texto da internet. E, terrível, altura do travesseiro pode prejudicar a coluna. Assim por diante.
Perdi a naturalidade e, com ela, o sono. Então, ali, no leito desarrumado, cheguei à mesma conclusão de Shakespeare: quanto mais consciente me torno, mais medo sinto. Ou seja: a ignorância é uma bênção. É o que ensina o Gênesis com a história de Adão e Eva. É o que ensina a mitologia grega com a história do roubo do fogo por Prometeu.
Quando você sabe, você sofre. Eu sei que ainda estamos longe da paz, eu sei que temos muitos problemas e que eles não se resolverão em pouco tempo, eu sei que não adiantará trocar o governo, eu sei que o Brasil vai penar até nossa democracia amadurecer. Eu sei que as coisas podem dar errado até durante o sono. Maldição. É isso. Saber é uma maldição.

Confissão - Fabrício Corsaletti

Pedro Piccinini


Dias antes de entrar na sala de operação, meu avô pediu pra chamarem um padre, pois queria se confessar. Anos depois minha avó me contou, com embaraço, que a confissão se resumiu a isso:
— Padre, eu fiz de tudo. Só não matei.
Sei que nesse "fiz de tudo" cabem as maiores maldades, mas meu avô devia saber o que estava dizendo. Não o imagino inflacionando seus pecados, se martirizando na hora fatal (aos que lhe desejavam boa sorte, dizia, sem drama, que não sobreviveria a essa segunda operação). Passou boa parte da vida longe dos santos da igreja e mantinha uma distância segura dos santos da sociedade. Era violento e lírico, e dava a impressão de carregar um bom fardo de culpa pra onde quer que fosse.
Quando fiquei próximo dele, isto é, quando cansou de rodar o interior do Mato Grosso e do Pará e parou de me enviar cocares, arcos e flechas de presente, ele já era velho pros meus padrões da época –um velho loiro e forte–, e eu tinha nove, dez anos no máximo. A gente sentava um de frente pro outro em cadeiras de ferro na varanda da casa dele, meu avô acendia um cigarro, depois outro, e me contava histórias da sua infância e adolescência –tocando boiada, correndo a cavalo e apanhando de chicote. Era cego de um olho por ter caído de um burro chucro ou por ter pulado de cabeça na piscina vazia de um hotel, ninguém sabia. Eu achava as duas versões igualmente terríveis e nunca pensei em lhe pedir explicações.
Pelo menos uma vez por semana, durante três ou quatro anos, íamos juntos pra fazenda que ele administrava. Ele passava em casa às cinco horas com um jipe vermelho; eu o esperava na porta; minha mãe perguntava se ele queria entrar pra tomar café, ele agradecia; eu sentava no banco do carona, ele dizia "pronto, peão?" e acelerava. O caminho era de terra; o sol nascia atrás das árvores; as vacas comiam capim fresco; os urubus planavam lá no alto –e não há amanhecer que não me traga de volta um pouco daquelas viagens alegres, sem nostalgia nem arrependimento, cheias de medo e o dobro de coragem.
Minha admiração por ele era tão grande que eu tinha vergonha de viver na cidade, de ser bom aluno, de querer estudar medicina. Me afastar dele pra sair com os amigos no sábado à noite pra beber cerveja e arrumar namorada foi um troço difícil, parecia traição. Estranhamente, quando comecei a ler poesia voltei a me sentir conectado com esse avô antiliterário, que acima de tudo era um homem gentil, pelo menos comigo e com a minha mãe, sua nora.
Foi só depois da sua morte que consegui escrever do meu jeito. Não quero fazer psicanálise de boteco, mas lembro que acreditava, e de certa forma ainda acredito, que essa perda estava por trás dos primeiros poemas que tive vontade de publicar.
Um lugar-comum ligado à escrita faz pensar que se escreve pra resgatar o que se perdeu, como quem procura joias no leito de um rio ou retira corpos do fundo do mar. É verdade. Mas o contrário não é mentira: também se escreve pra enterrar os que amamos e seguir em frente –mesmo sabendo que eles não estarão lá.

Invenções - Luis Fernando Verissimo


Fernando Pessoa, como se sabe, não era um poeta português, era vários poetas portugueses. Escrevia sob outros nomes, e a cada poeta inventado, que chamava de heterônimo, dava uma biografia e um estilo diferente. O que pouca gente sabe é que, pelo menos uma vez por ano, Pessoa reservava uma mesa num café de Lisboa para reunir seu plantel, e servia bebidas e pastéis de Belém para todos – que ninguém via, ou só ele via. 
Os frequentadores do bar se espantavam com aquele homem numa grande mesa vazia que falava sozinho enquanto bebia e comia. Não podiam saber que Pessoa conversava com suas criaturas invisíveis, que comentavam a vida e os tempos, e muitas vezes trocavam insultos, pois o único traço comum aos heterônimos – Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Bernardo Soares – era que um não suportava o trabalho do outro. Pessoa não tomava partido nas discussões, apenas recomendava tolerância e paz, enquanto comia todos os pastéis. 
Um dia, no meio de um desentendimento entre os heterônimos sobre o papel da poesia na política, aproximou-se da mesa um homem que Pessoa achou remotamente familiar. Talvez um colega de escola? O homem pediu para sentar-se. Pessoa disse que todas as cadeiras estavam ocupadas, e o homem pegou uma cadeira da mesa ao lado. Anunciou seu nome. Identificou-se como “um poeta menor” e disse que lamentava não ter sido convidado para aquela reunião.
– Mas você não é meu heterônimo – protestou Pessoa.
– Não – disse o homem. – Você é meu heterônimo. 
– O quê?!
– Eu inventei “Fernando Pessoa”, e vi minha criação tornar-se mais conhecida do que eu. “Pessoa” todos conhecem. É o maior poeta de Portugal. Eu, quem conhece?
Pessoa lembrou-se de onde vira aquela cara antes. Numa obscura antologia de poetas provincianos, ilustrando um poema horrível.
Foi Álvaro de Campos quem expressou a perplexidade do grupo, depois de alguns segundos de silêncio atônito diante daquela revelação.
– Quer dizer que nós somos invenções... de uma invenção?!
O homem explicou:
– Eu só inventei “Fernando Pessoa”. Ele inventou vocês por conta própria. Eu, pobre de mim, não teria a capacidade. Mal posso com um heterônimo, que não para de escrever. O que dirá de cinco.
Ricardo Reis virou-se para Pessoa, ou “Pessoa”, e protestou.
– E você, ó Pessoa. Não vai dizer nada? E essa confusão em que nos meteu?
– Eu só estava pensando – disse “Pessoa”, pegando o último pastel – que desta vez não vou ser eu a pagar a conta. 

Heterônimos de Fernando Pessoa

Analisando os vários heterônimos de Fernando Pessoa

Antônio e Luana - Luis Fernando Verissimo


Naquela noite, como em todas as noites, frei Antônio atirou-se na sua cama de pedra coberta com aniagem e palha, e tentou não pensar nela. Tinha dado suas nove voltas no claustro, rezando e tentando não pensar nela. Tinha comido o pão seco e a sopa rala no refeitório, entre os outros freis, tentando não pensar nela. Agora, na cama, a única maneira de não pensar nela era dormir. Mas frei Antônio não conseguia dormir, pensando nela. Ela se chamaria Lua. Ou Luana. Qualquer coisa assim.
*
Dois séculos depois:
Bacana! - disse Luana, quando entrou no quarto. Que era mesmo uma beleza. Tinham aproveitado as celas do velho mosteiro para fazer o hotel. O quarto era pequeno e as paredes de pedra tinham sido mantidas. Mas a decoração era linda e o quarto não era frio, era aconchegante, bem como dizia no prospecto. Aconchegante.
- O que é aquilo? - perguntou Luana.
Acho que era onde os monges dormiam.
Assim, em cima da pedra?
É, Lu. Mas a nossa cama é aquela ali...
O quarto só tinha uma janela alta e estreita, como uma seteira. Naquela noite, depois do amor (“Nunca pensei, fazer isto num mosteiro...”), Luana ficou olhando a luz da lua cheia que entrava pela janela alta e estreita.
*
Frei Antônio olhava a janela alta e estreita por onde entrava a luz da lua cheia. Lua. Ela se chamaria Lua. Teria cabelos loiros. Seria uma Lua loira. Senhor, que a porta se abra agora e entre uma Lua loira. Uma Lua nua. Uma Lua loira e nua. Senhor. Agora, Senhor. Lua e nua e loira... Quando finalmente dormia, frei Antônio não sonhava com ela. Sonhava com o inferno. Sonhava com o fogo do Sol. Às vezes, acordava no meio da noite, suado, e pensava: “As chamas são para você aprender, Antônio. São o seu castigo”. Mas castigo por que, se a Lua não se deitava com ele, se a Lua só existia na sua imaginação? Eu a amo e ela nunca virá. E eu arderei no Inferno só pelo que pensei.
*
Imagina a vida que eles levavam, Túlio.
Quem?
Os monges. Deviam ficar ali, deitados na pedra, coitadinhos...
Pensando em mulher.
Será? Acho que não. Tinham escolhido uma vida sem mulher. Sem sexo.
Falando nisso, chega pra cá, chega.
Não. Para. Como seria o nome dele?
De quem?
Do monge que vivia nesta cela?
Sei lá. Isto aqui deixou de ser mosteiro há uns cem anos...
Luana ficou pensando no último monge que ocupara aquela cela. Como seria ele? Passou a imaginá-lo. Imaginou-se entrando na sua cela e deitando-se com ele. Assim como estava, nua. Ele a expulsaria da sua cama de pedra? Pobrezinho.
*
Frei Antônio sentiu que havia outro corpo com ele na cama. Sentiu seu calor. Mas não abriu os olhos. Não virou a cabeça. Estava sonhando, claro. Tinha medo de abrir os olhos e descobrir que não havia ninguém ali. Tinha medo que o calor fosse embora. Ouviu uma voz de mulher perguntar:
Como é o seu nome?
Antônio. E o seu?
Mas não houve resposta. Frei Antônio abriu os olhos e viu a luz da Lua cheia saindo pela janela, como se fugisse.
*
Antônio...
Ahn?
O quê?
Você disse “Antônio”.
Eu? Tá doido?
Estava sonhando com quem?
Com ninguém.
Chega pra cá, chega.
Ó Túlio. Você só pensa nisso?
É que, sei lá. Este quarto está carregado de sexo. Tem sexo escorrendo pelas paredes. Você não sente?
Não.
Já sei! Vamos fazer amor na cama de pedra.
Não. Na cama dele, não.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

O homem só - Cristovão Tezza

Vânia Medeiros/Editoria de Arte


Pensando nas misteriosas influências que nos fazem ser o que somos, da loteria do DNA à escolha dos caminhos, dos afetos e dos empregos, passando pelos vizinhos, namoradas, família, heróis da infância e da vida adulta, azares e acasos, olho para trás tentando localizar alguns pontos de impacto –os instantes realmente marcantes que parecem mudar o nosso rumo. É uma tarefa impossível, porque somos parte interessada demais. Mas, afinal, somos mesmo feitos de tarefas impossíveis, e aí é que está a graça.

A primeira sensação é a de que fui feito de leituras, o que é obviamente uma mentira, se fosse para dar um peso moral a este primeiro erro de avaliação. A leitura é uma duplicação de um confuso mundo pré-existente, o qual, quando se lê e se escreve, tenta-se retificar e ratificar –chegamos à palavra escrita já cheios de vontades e escolhas, mais como um engenheiro curioso numa quadra de entulhos do que como uma vítima ingênua na escuridão.
O momento histórico é especialmente importante, a barulhada em torno, e isso independe de nós. E a idade pesa –gostamos tanto de ordenação que nos imaginamos formatados em décadas, pessoas de proveta, um ser diferente por decanato. Não se reage do mesmo modo em tempos diferentes (embora muitas pessoas se jactem de ser sempre as mesmas, como quem faz praça da própria estátua). E há, ainda, a insídia da emoção, que nos cega e justifica.
"É cousa demais", como se dizia antigamente. Baixando a bola, fiquemos nas leituras. Como um bom sessentão, tive formação iluminista, o otimismo pós-Segunda Guerra. Tudo pode ser racionalizado, a inteligência é o valor supremo, a clareza e a nitidez são entidades éticas e o mundo só anda para a frente.
Uma mistura de Sherlock Holmes, o herói de Conan Doyle –os sinais do crime estão à vista, basta cabeça fria para revelá-los–, e de Júlio Verne, com a boa crença na ciência e a desconfiança do mal, que existe e deve ser combatido; e os finais são felizes. Cresci na atmosfera laica de um mundo que, enquanto arrastava seu passado sinistro e glorioso, tentava inventar um novo futuro, o que realmente aconteceu, na fratura geral dos anos 1960.
Cria daquele tempo, exatamente ali me reconheço. Como diz a célebre citação de William Faulkner (1897-1962), o passado não está morto; aliás, nem mesmo é passado. Como um louco circular, retorno sempre àquele ponto cego, atrás de uma chave-mestra.
Porque havia duas, incompatíveis: "Cem Anos de Solidão", a "Ilíada" da América Latina inventada por Gabriel García Márquez (1927-2014), nos dizia que a história era um ser vivo, fatal e inexorável como os deuses gregos, e que homens, árvores, nuvens e borboletas giram sob leis poéticas e transcendentes inacessíveis ao gesto humano, e é nesta entrega ao tempo que reside a surda beleza que nos cabe.
A outra chave surgiu inteira deslocada e contraditória, e no entanto me pegou, no instante exato, as variáveis todas conjuminadas num belo e irresistível eclipse total: adolescente, anos 1960, contra os grilhões da família e a hipocrisia da sociedade, e sob influência de um guru barbudo, W. Rio Apa (1925-2016), que, num projeto mais emocional que intelectual, passou boa parte da vida tentando conciliar Nietzsche com Rousseau (o que, pensando bem, é um retrato do presente), mais a sombra do teatro como o caminho possível da libertação pessoal –e eis que me caem nas mãos as peças do norueguês Henrik Ibsen (1828-1906).
Ibsen é um monstro que inventou a dramaturgia moderna. Dos confins da Noruega, criou uma obra que empalideceu automaticamente todo o teatro que se fazia no século 19. Para mim, uma peça foi especial: "Um Inimigo do Povo". Resumindo: um homem descobre que as águas da cidade estão poluídas, mas a cidade depende comercialmente delas para sobreviver.
Na luta por denunciar o crime, acaba ficando contra todos. Ele resiste, e uma frase me bateu na cabeça: o homem mais forte é o homem mais só. Naquele momento, isso era tudo que eu queria ouvir. Até hoje gosto de acreditar que ela me livrou, com um toque quase aristocrático, do rebanho. O que é engraçado para alguém que, como eu, vê numa roda de amigos bebendo cerveja uma das faces mais concretas da felicidade.

Um brinde às inimigas - Manuela Cantuária

  Duas amigas em uma mesa de bar. Uma delas ergue seu copo. "Um brinde às inimigas, que elas tenham saúde em dobro para aplaudir nosso ...