segunda-feira, 30 de julho de 2018

Pronta para casar - Ruth Manus

Em mais um episódio de “pequenos-grandes desafios da vida cotidiana”, ao chegar em casa, ela disse, com muita sensatez, ao seu marido, que deveriam fazer um peixinho para comer com aqueles legumes grelhados que já estavam prontos na geladeira. 
Ele concordou, surpreso com esse seu breve instante de maturidade e, com seus gestos ágeis, já retirou uma dourada do freezer, aqueceu a água, separou as cebolas, o alho, a frigideira antiaderente e todo o arsenal necessário àquela empreitada gastronômica, que para ela parecia uma viagem intergaláctica e para ele era apenas o cotidiano.
Quando ele começava a cozinhar, era quase uma dança. Bonito mesmo de se ver. Os temperos certos se jogavam do armário para as mãos dele, as facas nunca o desobedeciam, os cortes nunca saiam tortos. O azeite aquecia, a cebola começava a perfumar a casa, enquanto ele abria a garrafa de vinho com destreza, sem que nada nem ameaçasse queimar ou passar do ponto.
Olhando para aquela cena tão bela, ela criou coragem e resolveu que deveria atuar também. Ensaiou mentalmente e disse: DEIXA A SOPA COMIGO. Deve-se frisar que a sopa já estava pronta na geladeira, feita pelas doces mãos da empregada que abençoava aquela casa às quartas e sextas. Mas, em resumo, ela estava realmente disposta a peitar o desafio de pegar o tupperware, tirar a tampa azul, servir os pratos e esquentar a sopa no micro-ondas. Uma moça corajosa, deve-se dizer.
Dirigiu-se, então, convicta e decidida, até a geladeira e pegou o recipiente alto e redondo com as suas duas mãos. E em menos de 3 segundos: CA-TA-PLOFT. Quase como em uma crônica de uma morte anunciada, aqueles dois litros de sopa escaparam das mãos da moça e espalharam-se pelo chão da cozinha para o seu mais profundo desespero.
Mas o marido olhou para ela e sorriu devagar. Disse “tudo bem, não há problema”, como quem fala com um filhote de labrador que estourou a bola nova com uma mordida e lançou aos responsáveis aquele olhar meio triste, meio assustado, sem saber muito bem como deveria proceder na sequência.
Ela, tentando manter sua dignidade de mulher adulta que não tem nenhuma vocação para ser mulher adulta, disse “deixe que eu limpo isso pelo menos, não se preocupe, cuide do peixe que eu ajeito aqui”. Agachada e triste, recolhia as folhas geladas de espinafre com as mãos e passava o pano de chão na sopa amarela, enquanto o jovem homem seguia com seu espetáculo na frigideira.
Levantou-se e percebeu que a barra do seu elegante casaco cinza claro também tinha decidido ajudar a limpar o chão da cozinha. Era uma belíssima faixa amarela na barra do casaco. Suspirou, se perguntando quando finalmente chegaria aquela fase da vida em que ela não se consideraria uma vitoriosa no fim do dia pelo simples fato de não ter feito muitas besteiras.
Todavia, sentia pelo menos que uma função na vida ela tinha: a de ajudar diariamente quebrar o dogma machista do “pronta para casar”. Vinha verificando que nasceu pronta apenas e tão somente para fazer tudo errado no que tange às tarefas domésticas. Não as menosprezava, de forma alguma, mas simplesmente não se dava minimamente bem com elas, por mais que se esforçasse. Sua área de domínio era a do entretenimento, das pesquisas acadêmicas e das piadas de papagaio. E olha que até vinha dando certo. 
Ele a aceitava assim, mesmo com suas mãos de alface e seus olhos de cão arrependido. Talvez seja porque, no fim das contas, ela compensasse alguma coisa com sua alegria de labrador e seus discursos dadaístas. Que Deus conserve essa nova geração de homens e mulheres, que podem se dedicar aos seus verdadeiros talentos sem medo daqueles rótulos antigos.
Em tempo: a dourada estava um verdadeiro espetáculo. Não houve sopa nenhuma para atrapalhar sua performance arrebatadora.

Segunda-feira - Luis Fernando Verissimo

As estatísticas provam, brasileiro não transa nas segundas-feiras. Segunda é o dia da semana com o maior índice de TV ligadas no País. Não há nada na tradição judaico-cristã que proíba o sexo às segundas, como há com outros tipos de comidas. Simplesmente se convencionou que segunda-feira não é dia para isso. Ou, mais especificamente, aquilo. 
*
Os conselheiros matrimoniais conhecem casos em que o tabu foi desrespeitado.
– Ele quis me forçar a fazer sexo com ele, doutor.
– Bem, como ele é seu marido, não creio que “forçar” seja o termo adequado...
– Era segunda-feira, doutor! 
– TARADO!
*
Há algo nas segundas-feiras que desperta nas pessoas a ideia de abstinência. Remorso, talvez. A velha ética do trabalho nos compelindo à autoflagelação pelo pecado de ternos folgado por dois dias. Já são anedotas as histórias de pessoas que começam dietas – ou abandonam o cigarro, param de jogar e fazem outra tentativa de ler Grande Sertão: Veredas – todas as segundas-feiras.
Geralmente a virtude não dura até quarta-feira, mas a compulsão existe. 
Você tem até o fim da noite de domingo para fazer tudo que pretende abandonar na segunda-feira, o que só aumenta seu remorso. Para não falar na ressaca.
*
A lei que transferiria para a segunda-feira todos os feriados nacionais (o projeto existe, juro) seria o primeiro de um plano mais amplo, que é o de abolir a segunda-feira da consciência nacional, depois da semana inglesa, a semana brasileira. Como levaria algum tempo para a gente se acostumar com a nova semana, as segundas-feiras passariam a ser uma espécie de zona cinzenta entre a folga e a rotina, um amortecedor nessa curiosa divisão das nossas vidas entre dias úteis e inúteis. A segunda seria um dia para reflexão, para a nação reencontrar sua cabeça e para você se reconciliar com seus pecados.
*
E tudo começaria de novo, na primeira hora de terça-feira. 

Em busca de um narrador - Cristovão Tezza

Vânia Medeiros/Folhapress



Nas saborosas “Confissões de um Jovem Romancista”, escritas por Umberto Eco (ed. Record; trad. de Clóvis Marques) nos seus jovens 77 anos (mas romancista há apenas 28 anos, ressalva ele), o autor do improvável best-seller “O Nome da Rosa” diz que se considera “um acadêmico por profissão e um romancista apenas amador”.
Digo “improvável” porque o célebre romance de 1980 se tornou um dos livros mais vendidos do mundo apesar da profusão de citações em latim, da reverência acadêmica e de um certo olhar iluminista sobre a Idade Média, tudo exigindo um razoável investimento da inteligência do leitor. 
O que, pouco depois, deixaria de ser a norma, quando a literatura de massa jogou-se preferencialmente nas cordas da fantasia mística e do irracionalismo dominante.
A relação declarada de Eco entre o acadêmico (entendido como um professor de universidade, com uma carreira oficial e regular) e o ficcionista é uma combinação típica que se tornou forte dos anos 1970 em diante. 
Especialmente entre nós, ela determinou o ideário estético de prestígio, em boa parte a partir do renascimento europeu dos estudos do clássico “formalismo russo”, que revolucionou a teoria literária nas primeiras décadas do século 20. 
O próprio Eco foi um soldado fiel dos diagramas semióticos aplicados à narrativa, que à época soavam como o mapa do tesouro do sentido final da arte. 
O mesmo acontece hoje, mas em outra direção: agora, por influência da poderosa emergência das correntes político-teóricas derivadas dos chamados estudos culturais identitários, a instância acadêmica determina a faixa do ideário ideológico aceitável, que passa oficialmente a ser a régua de valor. 
Não há nada de especialmente errado nisso: desde Platão, instituições culturais costumam ser entidades conservadoras do que descobrem ou inventam, ainda que a criação artística, por natureza, viva preferencialmente em outro departamento.
Lembro que, nos anos 1970, se alguém sugerisse cursos de escrita criativa para formação de escritores, eu soltava o verbo contra o absurdo, brandindo minhas bandeiras: o orgulho da própria performance, a crença na verdade da minha voz interior, a liberdade inegociável de criação, o horror instintivo ao sistema e ao Estado —em suma, o culto do desajuste era o meu mantra. 
Felizmente era um desajuste mais de emoções do que de cabeça, imagino, ou não estaria aqui hoje: como quase todo mundo, fui me transformando com o tempo.
Lembrei desse fio da memória ao ler numa semana dois livros díspares de autores quase que obscenamente jovens para o padrão natural da literatura, uma arte de alma vetusta: ambos têm menos de 30 anos.
O primeiro é “De Espaços Abandonados”, de Luisa Geisler (ed. Alfaguara), que conta a história de uma jovem à procura da mãe bipolar, desaparecida. Aos fragmentos, acompanhamos um grupo de brasileiros e brasileiras sobrevivendo em subempregos na Irlanda contemporânea.
São flashes de uma oralidade vivíssima, compostos sob a arquitetura de um programa literário (Resolva os seus problemas de escrita!): apresentam-se 366 perguntas alegrinhas (“Você gostaria de ser famoso?”, “Você tem uma estação do ano favorita?”, “Você acredita em boatos?”), com respostas narrativas autônomas, frequentemente densas, sem relação visível com as questões. 
O segundo é “Identidades”, de Felipe Franco Munhoz (ed. Nós), uma recriação singular do mito de Fausto que se estrutura como uma peça de teatro, fundamentalmente poética (mas sem traços de “prosa poética”, o que teria sido letal), com um notável rigor formal que, precioso, abrange um grande leque de registros da escrita, de notas de rodapé a pautas musicais, e uma pletora de referências tanto da alta literatura como da cultura de massa.
O que há neles em comum? Parece uma pergunta do livro de Luisa Geisler, que tento responder: são dois escritores experientes testando os limites da literatura que dominam; ambos são cabeças temática, linguística e formalmente globalizadas; não vivem mais sob a memória dos anos 1970, que marcou a geração anterior; os cacoetes pós-modernos ainda pesam, mas já soam como resíduos digitais, sob uma inquietação emocional nova e estranha, que é levada a sério; finalmente, não há um “narrador”, mas o leitor pressente que, nos dois casos, a linguagem está à procura dele e de algum centro de valor, este eixo intencionalmente não relativo que, por instinto, faz a literatura.

domingo, 29 de julho de 2018

Demonstrar cientificamente a inutilidade da ciência - Ricardo Araújo Pereira



Luiza Pannunzio/Folhapress

Amigos, temos de falar sobre a ciência. Muito importante, e tal, avanços tecnológicos incríveis. Certo. Mas também não é isso tudo.
Quem estudou outras coisas, como eu, passou a vida a ouvir falar da superioridade das ciências exatas. A complexidade das fórmulas, os laboratórios solenes e cheios de vidrinhos, as batas brancas impecáveis.
Mas calma: é preciso não esquecer que todo o mundo parece inteligente vestido com uma bata branca. Assim é fácil. Difícil é parecer inteligente vestido de palhaço. E algumas descobertas têm sido uma desilusão.
Na última semana, cientistas revelaram que há água em Marte. Que eu tenha dado por isso, já é a terceira vez que revelam. Só na Folha encontrei os textos "Cientista brasileiro confirma existência de água em Marte", de setembro de 2008, "Marte possui água abundante e acessível", de maio de 2002, e "Efeito estufa fez Marte manter água", de novembro de 1997.

Seria importante que os cientistas percebessem a diferença entre a ciência e o rock.
O povo vai a um concerto e pede para tocarem uma música que já ouviu vezes sem conta. Mas os fãs de ciência não gritam "anuncia-me novamente a presença de água no planeta vermelho! Foi um êxito tão grande que quero ouvir de novo".
Tudo bem, Marte tem água. Ouvimos à primeira. E, permitam-me que fale em nome de todos, não ficamos muito impressionados. "Marte tem gim tônica" seria uma descoberta notável. Água, nem tanto.
O nosso planeta, recordo, também tem. Receio até que a descoberta de mares noutros planetas não provoque nos humanos mais do que o pensamento: "Olha que lugar ótimo para vazar lixo", como é costume fazermos aqui.
Sobretudo, há um problema grave de expectativa. Na infância, prometeram-nos criaturas verdes em Marte. Depois a gente cresce e os cientistas não descobrem criaturas verdes mas sim a muito prosaica água. Onde estão as criaturas verdes? Afinal, provavelmente, era musgo. Não era bem a criatura verde extraterrestre que esperávamos. Foi publicidade enganosa.

segunda-feira, 23 de julho de 2018

Dias e dias - Luis Fernando Verissimo

Existe dia de quase tudo. Começou com o Dia das Mães. Um americano, cujo nome me escapa, mas é reverenciado onde quer que se reúnam diretores lojistas, foi o inventor do Dia das Mães. Fez isso pensando na própria mãe, aquela mulher extraordinária que o carregara no ventre durante nove meses sem cobrar um tostão, que o amamentara, que o embalara no seu berço e costurara sua roupa e, quando o descobrira dando banho no cachorro no panelão da sopa, quebrara uma colher de pau na sua cabeça. Sim, a mãe merecia um dia só dela. A ideia foi lançada num “brainstorm” da agência em que ele trabalhava.
– Precisamos criar dois, três, muitos natais. Só ganhamos dinheiro mesmo no Natal.
– Espera aí – disse alguém. – Só houve um Jesus Cristo.
– E os apóstolos? São 12 apóstolos. Podemos comemorar o aniversário de cada um.
– Mas nós não sabemos as datas dos aniversários.
– Melhor. Inventaremos, todos os meses, o aniversário de um apóstolo. Teremos natais o ano inteiro!
A ideia dos apóstolos não agradou. Podia dar confusão com a Igreja. Foi quando ele sugeriu:
– E o que me dizem de um Dia das Mães?
– Gênio! – gritaram todos, em uníssono.
*
O Dia das Mães foi um sucesso instantâneo. Ninguém poderia chamar aquilo de crasso oportunismo comercial. Ser contra o Dia das Mães equivaleria a ser contra a mãe como instituição. A reação seria grande, principalmente entre as mães, que, como se sabe, formam uma irmandade internacional, como a máfia, que também oferece proteção a seus fiéis e castigos aos seus infiéis que podem incluir até chantagem sentimental, muito pior do que mergulhos no rio com pés de cimento.
*
O Dia dos Pais também nasceu nos Estados Unidos, mas custou a pegar devido ao puritanismo que, sabidamente, influenciou a história americana durante anos. Foi só na década de 30 do século passado que os americanos descobriram a relação entre o ato sexual e a procriação. Até então, julgava-se que as mães geravam os filhos sozinhas e que o sexo, como beber e jogar cartas, era apenas uma coisa que os homens gostavam de fazer aos sábados. Instituída a proibição do sexo em todo o território nacional – a chamada Lei No No, uma coloraria da Lei Seca – notou-se uma acentuada queda no número de nascimentos no país, concluindo-se que o homem era importante na multiplicação da espécie. Muitas mulheres não aceitam isso e ainda consideram os homens perfeitamente dispensáveis, a não ser naquelas atividades reconhecidamente masculinas como a de costureiro, cozinheiro, cabeleireiro, decorador de interiores, “drag queen” e estivador. Estabelecido o papel essencial do homem na formação da família, lançaram o Dia do Pai, também chamado por algumas mulheres, com um sorriso secreto, de Dia do Pai Presumível. 

domingo, 22 de julho de 2018

Tempos ultramodernos - Ricardo Araújo Pereira

Luiza Pannunzio/Folhapress


O vilão consegue fugir e entra numa limusine, dirigida por um dos seus fiéis empregados, que além de motorista também é segurança e, em princípio, tem uma cicatriz no rosto. Faz parte do fardamento e imagino que seja elemento importante das entrevistas de emprego.
"De fato, você tem a estatura física pretendida, e vê-se que é uma pessoa malvada, mas sem uma cicatriz sinistra no rosto não podemos empregá-lo nessa organização criminosa."
O mocinho chega logo a seguir, ainda vê o vilão partir, e pega um táxi. O nível de vida do mocinho é sempre bastante inferior ao do vilão, e nem assim ele tem um rebate de consciência sobre as opções de carreira que tomou. É burro, coitado.
A única consolação é que a sorte o vai protegendo, e costuma metê-lo em táxis cujo motorista é um homem bondoso, de certa idade, que já viu muito da vida e entende imediatamente que o mocinho é um mocinho, e por isso, quando o mocinho grita "Siga aquele carro!", ele diz "Oba, vamos lá!", e põe o pé na tábua.
Quando o táxi arranca, quase atropela um polícia, que inclusivamente entorna o café. Mas em vez de registrar os elementos do táxi para cassar a licença ao motorista, ele olha com certa benevolência para o carro, pois suspeita instintivamente que se trata de uma daquelas situações em que um mocinho acabou de entrar num táxi e gritar "Siga aquele carro!".
Isso era antigamente. Agora há menos táxis, porque chamar um Uber é, segundo dizem, mais prático, mais rápido e mais barato. O mocinho deve, então, abrir a app —coisa que parece, imediatamente, indigna de mocinho. Parar um táxi é como pegar um touro, domar uma besta. O mocinho salta para a estrada e dá uma ordem, máquina e homem submetem-se a ela, parte da selva para ao seu comando.
Abrir uma app é uma operação informática. O Uber chega e o mocinho grita: "Siga aquele carro!". O motorista diz: "Como assim? O percurso é predeterminado. Não introduziu o endereço de destino?". O mocinho: "Isso não interessa agora. Siga aquele carro!". Motorista: "Antes de mais nada, a temperatura está boa?". Mocinho: "Sim. Siga aquele carro!". Motorista: "Deseja água?".
E entretanto o vilão teve tempo de chegar ao seu esconderijo subterrâneo, acionar o botão que faz disparar os mísseis e desencadear um holocausto nuclear que vai aniquilar três quartos da população do planeta. Antes de morrer, consumido pelas radiações, o mocinho ainda tem tempo de ouvir: "Essa estação de rádio é do seu agrado?".

Roubando - Fabrício Corsaletti

Romolo

AÇÃO
1
Roubando paisagens de filmes idiotas. Espaços desperdiçados por detetives, adolescentes e caubóis. Rios de Montana. Praias caribenhas. Bares escuros com balcões de zinco. Que misturo à frustração e aos barbitúricos. Antes de me deitar, cheio de planos.
2
Paisagens desprezadas pela ação ou espaços indiferentes à tragédia?
NOIR
Pense nos fumadores de ópio do século 19, deitados feito canoas, navegando no rio da própria imaginação. Pense em panelas fumegantes na noite, em ruas cheirando a frango e especiarias, na fina “garoa que a luz de um poste revela”. Pense em lanternas cor de laranja, em chapéus em forma de quiosque, em ressacas sem analgésico nem chuveiro. Pense num quarto de paredes verde-claras, num corredor que denuncia cada passo, numa senhora que está sempre de olho. Pense em crianças gritando de fome, em gemidos de amantes no meio da tarde e em janelas com vidros sujos de poeira. Pense na lâmina de uma faca, na mão ligeira do inimigo, no sangue que começa a se espalhar. 
SÉRIES
Séries de crime. Noites preenchidas por imagens de corpos mutilados, sangrando. Massa encefálica grudada no azulejo. A cavidade do olho desencaçapado. As legendas não dizem “castrado”, mas “emasculado”. Os detetives não se alimentam, se identificam com o criminoso e esquecem de buscar o filho na escola. Você está obcecado com esse caso! Lembra o que aconteceu da última vez? Entre a delegacia e o lago da desova, um drone capta o pasto verde-escuro, uns bois peludos, uns muros de pedra. Irlanda? País de Gales? Portas vermelhas com aldravas cintilantes. Sinto vontade de entrar em todas essas casas. Passar muitas horas no pub da chantagem. Quebrar as câmeras. Inventar outra história. Celebrar a existência das janelas de vidro, das mesas de madeira e das sobrecapas com forro de lã.

O canto dos cines - Antonio Prata

Adams Carvalho/Folhapress
Minha mãe aponta algo à esquerda do carro e demoro a enxergar, pois meus olhos têm que fazer a transição entre a calçada iluminada pelo sol fino do inverno petropolitano e o interior penumbroso do edifício —à primeira vista, vejo apenas uma tela cinza recortada na parede.
O cenário, enfim, entra em foco. O mezanino continua intacto, colunas ao fundo, um lustre lá no alto, as fileiras de poltronas com os assentos levantados, como se em breve fosse começar a próxima seção do Cine Capitólio, mas sessão nenhuma vai começar, pois na parte de baixo da plateia as poltronas deram lugar aos carros, dezenas deles, por todos os lados: R$ 8,00 a primeira hora, R$ 4,00 as subsequentes, “cartão só débito”. Não sei se o insólito da cena me remete mais a “8 1/2”, a que meus avós assistiram ali, em 1965, ou a “Mad Max”.
Daria um bom livro de fotografia: “Como Morrem os Cinemas”. Retratos da glória e da tumba, no mundo todo, a serem clicados por Sebastião Salgado ou Robert Polidori. Este aqui virou estacionamento. Aquele outro é Igreja Universal. Este é um pet shop. Aquele, supermercado. Agência bancária. Lojas Americanas. Mundoplast —tudo em plástico pra você!
Curioso como, onde fenece um cinema, jamais vicejam bons frutos. Nunca ouvimos “Tá vendo essa cerejeira, aí no parque? Era a bilheteria do Cine Majestic”. “Aqui, onde agora funciona este jardim da infância, era o Cine Lumière”. “Essas piscinas públicas foram cavadas no chão da plateia em que assisti pela primeira vez a ‘Os Fuzis’, do Ruy Guerra”. 
Uma S-10 embica no estacionamento, acende os faróis e antes que desça a rampa ilumina por um instante as poltronas do mezanino: é como se depois de muitos anos um filme estivesse sendo projetado ali dentro. 
Não posso deixar de pensar que nós, na rua, somos esse filme, passando no retângulo da porta da garagem. (De fato, perto de onde agora está a entrada cinzenta da garagem ficava a tela branca do cinema.) O filme é a história das últimas décadas: primeiro o VHS, depois o DVD, então os downloads, o streaming, as telonas dando lugar às telinhas, as plateias aos sofás, os drops de anis às pipocas de micro-ondas.
Não quero ser hipócrita, faço parte das estatísticas. Vou cada vez menos ao cinema, assisto a cada vez mais filmes e séries em casa. Tento me convencer de que está tudo certo, não importa como os filmes são vistos, importa é que sejam vistos, mas há algo de despudorado naquele mezanino pairando sobre os carros, algo que parece transcender o audiovisual. É como o cadáver insepulto de uma época empalado na entrada da época seguinte, a alertar os passantes para as novas leis em vigor. 
Vejo Trump comemorando a vitória da virilidade automobilística sobre a veadagem de Hollywood. Vejo Bolsonaro esbravejando contra a subvenção estatal da arte degenerada. Vejo um pastor neopentecostal encontrar na Bíblia alguma passagem inconteste em que Deus advoga contra os perigos da sétima arte. 
O mais triste de tudo: vejo manobristas engatando a primeira e a ré sob o mesmo teto em que Marcello Mastroianni beijou Claudia Cardinale. E assim termina nossa história, num “fade out” de fuligem e monóxido de carbono.

terça-feira, 17 de julho de 2018

Patetice - Luis Fernando Verissimo

Não se conquista a fama de pateta com pouca coisa. Você tem que merecê-la com comprovados exemplos de patetice. Existe uma graduação, de distraídos a sonsos, cuja categoria máxima é a do pateta reincidente, o pateta irremediável. Por exemplo: eu. Minha mulher diz que meu problema não é falar pouco, é falar pouco e na hora errada. 

Uma vez fomos jantar na casa do embaixador brasileiro em Paris e sentei ao lado do Nelson Freire. E passei todo o jantar falando com o Nelson Freire como se ele fosse o Miguel Proença. O Nelson Freire não acusou a gafe e respondeu educadamente a todas as minhas perguntas sobre o domicílio, a agenda de concertos e a vida pessoal do Proença, sem dúvida recorrendo à ficção. Pelo menos acertei o instrumento que os dois tocam.

Outra vez, também em Paris, encontramos o Gerald Thomas no La Coupole com uma namorada chamada Daniela. Eu disse que já conhecia a moça e perguntei pelo seu pai. A moça estranhou que eu já a conhecesse e a seu pai. Respondeu que o pai ia bem, obrigado. Só quando estávamos na rua, a Lucia me informou que aquela não era a filha do Ziraldo, era outra Daniela. Para minha sorte, ela não respondera que o pai tinha morrido. Foi patetice, sim, mas o Gerald Thomas bem que poderia ser mais original na escolha de namoradas.

Eu fazia parte de uma banda chamada Jazz 6. Tínhamos sido convidados para tocar num evento, mas eu não me lembrara de anotar o endereço. Sabia qual era a zona, mas não sabia nem o número nem o nome da rua. Passei por um prédio com manobristas na frente e decidi: é aqui. Informei ao porteiro que eu era da banda e ele me encaminhou para o elevador de serviço. Entrei no belo apartamento pela cozinha. Ainda não tinha chegado mais ninguém da banda. Eu conhecia o dono do apartamento e logo peguei uma taça de champanhe do mordomo que passeava pela cobertura e entrei na conversa. 

Era um começo de noite com lua cheia, a temperatura na cobertura e do champanhe era perfeita, a conversa era agradável, os canapés eram deliciosos, a vida era bela... mas a banda não chegava. Chamei a organizadora do jantar para um lado e perguntei se a banda iria tocar ali naquela noite, já antecipando que a patetice me preparara outra. Não, disse ela. Eu era um penetra involuntário. Pedi desculpas para o anfitrião e, não sem antes terminar o que restara de champanhe no meu copo, desci. Envergonhado, mas pelo elevador social.

O que quer um homem? - Diana Corso

Bicha, boiola, maricas, frutinha, boneca, fresco, veado, não faltam palavras para os que fogem, mesmo que por detalhes, dos clichês da macheza. É tão vasta a riqueza de nomes para definir esses "desviantes" como é para nomear uma mulher que não seja recatada e do lar. Só isso já nos dá uma pista de que os privilégios masculinos custam caro demais.

Imagine se os homens não precisassem viver provando sua virilidade. Se pudessem libertar-se da frigidez emocional, sentir, chorar. Se não tivessem sua sensualidade restrita ao pênis. Se fizessem o exorcismo da sina da ereção eterna. Seria a libertação de uma cultura que os obriga a viver presos em uma carapaça pesada e inútil.

Na mesma fogueira destinada aos sutiãs, eles jogariam anabolizantes, halteres, viagras, ternos duros e gravatas sufocantes. Os que foram discriminados pela falta de simpatia pela bola iriam incinerar as camisetas do time que nunca conseguiram amar. Nunca houve uma grande queima ritual de sutiãs, é uma referência simbólica. Foi nossa imaginação histórica, que associa mulheres com bruxas, que a recriou.

Tais militantes homens da causa sofreriam o peso da condenação social, como ocorre até hoje com as mulheres que não são virginais e submissas. As que polemizam ainda são vistas como vadias, frígidas, mal-amadas, movidas pela inveja do pênis e recalques variados.

Ao nascer, você recebe um nome e é encaixado em uma das duas categorias. Ao contrário das perguntas que possamos nos fazer sobre como ser, no que acreditar, em nome do que existir, a masculinidade e a feminilidade estão fadadas a ser o paraíso da previsibilidade. Desde nossa certidão de nascimento até o atestado de óbito, vai ser preciso marcar com um x o sexo ao qual pertencemos. Aferramo-nos a essa divisão binária porque duvidar cansa, dá medo.

Estudando história, descobrimos como as certezas científicas e morais sobre as características do homem e da mulher podiam virar até o oposto do que se acreditava antes. Comicamente, continuaram sendo apresentadas como verdades eternas, naturais e universais.

Quantos meninos foram rejeitados pela família ou desprezados pelo pai? Quantos foram fisicamente agredidos, até abusados? Quantos tiram a própria vida por isso? Quanta solidão, por medo de ser considerados próximos das mulheres? Quanto ódio para nunca serem tachados de fracos e submissos?

A guerra dos sexos está na origem da epidemia de feminicídios e cobra sua cota de vidas dos dois lados das trincheiras. A violência masculina faz vítimas em suas próprias hostes.

Eles passam dizendo que não sabem o que uma mulher quer, as acusam de eternas insatisfeitas. É que, com suas lutas, elas aprenderam a colocar isso em questão. Sonho com o dia em que também um homem possa duvidar do que, afinal, ele quer.

domingo, 15 de julho de 2018

Todo ruivo é burro - Antonio Prata

Adams Carvalho/Folhapress

Em conversas com leitores pelos SESCs, escolas e Bienais da vida, algumas perguntas são obrigatórias. Entre elas: “Você se preocupa com a repercussão das suas crônicas nas redes sociais?”. 
Digo que não muito, pois quem se dá ao trabalho de ir até o Twitter ou Facebook para elogiar ou esculhambar um texto são os 5% que adoraram e os 5% que detestaram. Se você olhar só para os dois extremos vai se perder dos 90% silenciosos que são a maioria dos seus leitores. 


Tem muita gente que escreve pra agradar os 5% que aplaudem ou, como também é muito comum, para alfinetar os 5% que criticam. Esses últimos acham que se conseguiram enfurecer um monte de gente, devem ter tocado num ponto nevrálgico da contemporaneidade. Bobagem. Enfurecer é facílimo. Basta escrever, digamos, que todo ruivo é burro e pronto: todos os ruivos do Brasil ficarão revoltados. Com razão.
A reação à provocação é semelhante à suscitada por um condômino que resolve pregar quadros às duas e dezessete da manhã. Naquela madrugada, durante várias horas, o interfone dele ficará em primeiro entre os mais acessados do prédio. Ohhhh! Sucesso! Termino a resposta aos leitores dizendo que, por isso tudo, não me importo muito com a repercussão do meu trabalho nas mídias sociais. Muito maduro. Muito equilibrado. Muito mentiroso.
Acordo domingo e a primeira coisa que eu faço antes de sair da cama é xeretar Facebook e Twitter atrás de possíveis menções à minha crônica. Abro o Face e já clico direto no meu nome, lá no alto, pra ver se tem posts em que fui tagueado. 
No Twitter vou correndo pro sininho. Dia bom, mas bom mesmo, é quando de manhã o sininho do Twitter já mostra “20+”. É claro que se tratam dos 5% que adoraram ou dos 5% que detestaram, mas não importa, ali eu não estou tentando ser inteligente ou sensato pro público do SESC, da Bienal, pros alunos de uma escola, estou deitado na cama, o lençol cobrindo a minha vaidade.
Dia ruim, mas ruim mesmo, é quando termino de fazer o tour narcísico, procurando meu rosto refletido no laguinho do iPhone, minha mulher pergunta “A crônica fez sucesso?” e eu respondo “Nada, hoje só a Neviani”. 
Faz pelo menos cinco anos que toda a crônica que eu escrevo, sem uma única exceção, é divulgada bem cedinho, todo domingo, via Twitter e Facebook, por esta minha companheira incansável, cujo rosto nunca vi, cuja mão jamais apertei, porém mais de uma vez me salvou de voltar do tour digital sem um único share para chamar de meu. 
Semana passada, depois de anos de ingratidão, resolvi entrar na página da Helena Neviani para agradecê-la. E qual não foi a minha perplexidade ao descobrir que ela dá share em praticamente todos os colunistas do Brasil? Helena Neviani não é a presidenta do meu fã clube, um anjo da guarda dedicado a me proteger do fracasso, é um hub jornalístico, uma Estação Sé do periodismo nacional. E eu achando que era comigo, que quando os 5% de elogios falhavam eu podia contar com este 0,00001%, que, dando seu share lá de Ribeirão Preto (vi no perfil), me dizia, “Adorei, Antonio! Siga em frente! Não desista!”. 
Muito triste. Mais triste ainda é suspeitar que a partir de agora, com a Helena Neviani enfurecida por meu texto —feito um ruivo chamado de burro—, eu não poderei mais contar nem mesmo com seu apoio nos domingos de solidão. Melhor eu começar a acreditar no que digo por aí.

sábado, 14 de julho de 2018

O Brasil francês - Marcelo Rubens Paiva


Nós, escritores, comemoramos a invasão francesa no Brasil, de Lévi-Strauss, dos fundadores da USP, dos existencialistas (Sartre, Simone de Beauvoir e Camus estiveram por aqui) à Nouvelle Vague. Nós, escritores, lamentamos que os franceses, nas duas vezes que nos invadiram, tenham sido repelidos por luso-brasileiros que já escravizavam índios por essa terra varonil. 
Teriam mais visibilidade nossa ciência, artes plásticas, teatro, cinema e literatura se escrevêssemos ou falássemos em francês, com um sotaque tupinambá charmoso. Mas, se não fossem repelidos, o Brésil certamente não seria o Brasil. Olhando de relance outras experiências de colonização francesa no Caribe, na África e Indonésia, historiadores afirmam que seria pior.
Na verdade, os franceses vieram sem muita convicção em duas grandes levas. Em 1555, protestantes em fuga, sob o comando de Villegaignon, entraram em “Rivière de Genève” e fundaram a França Antártica. 
Aliaram-se a tupinambás, tupiniquins e goitacases, à Confederação dos Tamoios, construíram fortes, namoraram e passearam pelas praias paradisíacas do litoral carioca. A farra durou seis anos. Foram expulsos sem piedade em 1567. 
O rei da França, Francisco I, revoltara-se contra o Tratado de Tordesilhas, que dividia a América em duas partes: “Com os diabos! O rei da Espanha e de Portugal dividiram entre si toda a América. Eu quero conhecer a cláusula do testamento de Adão que me exclui da repartição do mundo”. 
Em 1600, viviam por aqui perto de três milhões de índios na costa, 30 mil estavam já escravizados por 20 mil portugueses espalhados em umas 20 vilas, que produziam o lucrativo açúcar em 230 engenhos. 
Apesar de expulsos, navios continuaram a fazer viagens exploratórias e negócios ente o nosso litoral e a França. Até se depararem com o abandonado e perfumado Maranhão. Em 1612, o ocuparam oficialmente, numa invasão patrocinada pelo rei Henrique V e Catarina de Médici. Chamaram de França Equinocial. O projeto era colonizar todo o norte do País.
Aliaram-se de novo aos tupinambás. Fundaram a cidade de São Luís, em homenagem ao herdeiro do trono, Luís XIII. Construíram casas e um forte espetacular, com a ajuda dos índios. Exploraram o pau-brasil e outras tinturas, açúcar, algodão e tabaco (petum). 
A jornada de três a quatro meses pelo mar valia a pena. Só com o comércio do pau-brasil, lucravam 500%.
Novamente foram expulsos. A experiência do Maranhão durou três anos. Reclamaram da falta de apoio da Corte, cujo rei a essa altura preferia não criar problemas com os ibéricos que viraram aliados; o insaciável Luís XIV casou-se inclusive com a herdeira do trono espanhol, a infanta Maria Tereza.
Holandeses, ingleses e portugueses eram mais efetivos nas suas colônias e se impunham a ferro e fogo. Os mesmos luso-pernambucanos que expulsaram os franceses do Maranhão viram seu Estado ser ocupado por holandeses e Recife em 1630.
Em 1711, piratas franceses tomaram o Rio. Mas aí não era política de Estado, e sim uma pilhagem lucrativa: cruzados, sacos de açúcar e bois.
A colonização do Maranhão foi bem documentada, já que os capitães La Touche e Razilly trouxeram, além de mineralogistas, botânicos, artesãos e militares, dois franciscanos, homens letrados, que escreveram cartas e editaram livros em Paris (relatados por Maurice Pianzola em Os Papagaios Amarelos). 
Vieram em princípio 500 franceses amontoados e em três navios. Nenhuma mulher entre eles. A viagem era demorada, com escala em Fernando de Noronha. Numa linha reta, chegavam a Mucuripe (Fortaleza). 
Então, aguardavam o vento certo para navegarem ao Maranhão, que, às vezes, demorava 15 dias para soprar até o Cabo da Tartaruga (Jericoacoara), cruzando dunas de areia, manguezais entrelaçados, evitando bancos de areia, rochas à beira d’água, que desencorajavam os portugueses.
Para eles, alianças eram mais eficazes do que a guerra. Aprenderam rapidamente a língua nativa. Mandaram seis índios para dançarem no Louvre vestidos à francesa. Foi um acontecimento. Todos foram ver aqueles homens... peculiares. Três morreram e três foram batizados e se casaram com francesas. Um voltou.
Caravela à vista, tupinambás os esperavam nas praias com frutas, bolinhos de mandioca, peixes secos, carnes de caça, cerâmicas e papagaios. Os europeus traziam linho, velas, arcabuzes, mosquetes e espelhos. 
Chegavam e logo tiravam as roupas de lã para vestirem sarja cinzenta. Os índios carregavam suas bagagens, faziam um banquete com toda espécie de carne da caça e geleias. Ofereciam suas mulheres: filhas, primas. 
Preferiam os franceses, a quem chamavam de Mairs, aos portugueses, os Peros, que com caçadas humanas, fugas, perseguições e castigos os escravizavam para plantar, colher e moer a cana. Tupinambás não tinham escravos no sentido europeu da palavra, mas prisioneiros de guerra.
Os franceses não os escravizavam. Trocavam a madeira colhida por tesouras, facas, pentes, contas de vidro, machados, foices, alfinetes, roupas usadas, chapéus, espadas, brincos, apitos, anéis de cobre, anzóis e sinos. Os próprios índios embarcavam as toras nos navios. Alguns franceses partiam carregados de “arabotan”, o pau-brasil. Outros se casavam com as índias, batizavam-nas, tinham filhos. 
E se viessem de vez? Não teríamos a vinda de uma família real, que mudaria o curso da nossa História. Respingariam as ideias da Revolução, “Liberté, Égalité, Fraternité”? A independência seria um fiasco, como a do Haiti, bem-sucedida, como a do Canadá, tardia, como a das colônias africanas, ou com guerra civil, como a da Argélia? A escravidão teria sido a norma econômica?

Direito à Preguiça – 2 textos de João Pereira Coutinho


                                  Restos de Nada - Direito à Preguiça


Onde esta o meu direito
Que sucumbiu com o tempo?
Onde está, onde está?


Arrancaram das páginas
Falsificaram minha história
Inventaram minha vida
E o meu direito?
O meu direito a preguiça?

Eu sei que arrancaram das páginas escritas
O meu direito, o meu direito a preguiça

Nesse lugar colocaram uns tais livros sagrados
Para nos enganar e nos escravizar
Mas sei que somos capazes de construir a história
Com as páginas escritas do meu direito, o meu direito a preguiça

Devaneios sobre a ociosidade (Folha de SP - 01/10/2013)

1. Ironia: a única coisa que tolero em Karl Marx é, bem vistas as coisas, o genro. O nome do cavalheiro é Paul Lafargue e o seu "Direito à Preguiça" é texto que guardo junto à cama. Para ler e reler quando a ociosidade me ataca. Que nos diz Lafargue?

O óbvio: haverá coisa mais triste do que uma existência inteiramente dedicada ao trabalho? Sobretudo a um trabalho que nos escraviza e desumaniza?

Por isso Lafargue defende: mais importante do que os "direitos do homem" são os "direitos à preguiça". Que um dia, escreve ele, serão respeitados por uma civilização tecnologicamente avançada. Trabalharemos três horas, não mais. As máquinas farão o resto por nós.

Sorrio sempre quando leio esse pedaço de otimismo. Lafargue escrevia no século 19. O que diria ele se visitasse a Europa do século 21?

Em Portugal, por exemplo, a crise econômica levou a mudanças na jornada de trabalho. O país vai trabalhar agora, em média, 40 horas semanais. Uma hora a menos que na Alemanha, que lidera o ranking com 41.

Os lusos não serão caso único. Espanha, que trabalha em média 37 horas, prepara-se também para imitar o exemplo germânico. Como? Abolindo almoços longos. Abolindo a "siesta" depois do almoço. Abolindo jantares tardios. Abolindo a possibilidade dos nativos se deitarem tarde e de acordarem tarde. Em suma, abolindo Espanha.

Uma comissão parlamentar prepara-se para estudar todos esses "abusos" --os "abusos" que eu mais invejava em "nuestros hermanos"-- de forma a produzir uma legislação laboral que transforme os espanhóis em alemães.

Meu Deus: haverá maior crime do que transformar um povo, qualquer povo, à imagem e semelhança da Alemanha?

Amigos liberais, que olham com ternura para as minhas idiossincrasias conservadoras, dizem-me que não há alternativa: a Europa tem que trabalhar mais para produzir mais e ser mais competitiva a nível global.

Curiosamente, eu não contesto a lógica do raciocínio. Apenas o que esse raciocínio diz sobre a nossa patética civilização.

Sim, o progresso tecnológico cumpriu-se. Não se cumpriu a libertação humana que Lafargue imaginava. Com diferentes trajes e cenários, continuamos as bestas de carga iguais às que era possível contemplar em plena Revolução Industrial.


O Direito à Preguiça Paul Lafargue


2. Gosto de viver em cidades porque gosto de caminhar em cidades. Também aqui sou o anti-Rousseau por excelência. No seu "Devaneios do Caminhante Solitário", o filósofo confessa que existem poucos prazeres comparáveis a uma caminhada pelo campo. Subscrevo tudo, exceto o campo.

Cidades. Carros que passam. Esse é o meu filme. E, por falar em filmes, haverá caminhada mais bela do que no filme "Paris", de Cédric Klapisch, que talvez explique as minhas paixões pela vadiagem urbana?

O filme tem duas histórias paralelas. A primeira é a de um professor (o sempre magistral Fabrice Luchini) que se apaixona por uma aluna e, sem surpresas, é abandonado por ela. Um solitário angustiado que gosta de caminhar pelas ruas de Paris sem nunca se aperceber desse fato redentor: o fato de estar vivo e de poder caminhar por Paris.

Pierre é o segundo personagem da segunda história. Doente, gravemente doente, ele regressa para a casa da irmã (Julliete Binoche, "mon amour") por não ter onde ficar até a hora de um transplante salvador.

A irmã acolhe-o. E, no final, quando a hora chega, eles despedem-se por imposição de Pierre e o táxi parte pelas ruas de Paris. A caminho do hospital.

É esse o momento em que o professor e Pierre se encontram. O primeiro, caminhante meditativo, perdido como sempre nas suas tristezas mundanas. E o segundo, que olha para ele através do vidro do carro, invejando o destino daquele pobre diabo. Invejando o luxo que é caminhar por Paris --sem hora, sem rumo. Sem cirurgia marcada.

Não sei quantas vezes penso nessa sequência quando caminho por Lisboa com o peso dos meus pequenos dramas. Mas também reparo que há carros que passam por mim. E rostos que olham para mim. Não sei o que dizem. Não sei em que pensam.


Mas suspeito que talvez um dia alguém passará por aquele pobre diabo, invejando a sorte que ele tem por simplesmente caminhar pela cidade.

Resenha: Os devaneios do caminhante solitário - Jean-Jacques Rousseau
http://docslide.com.br/documents/os-devaneios-do-caminhante-solitario.html

 Nós, os escravos  (Folha de SP - 14/07/2015)


Faço compras no supermercado. Encho o tanque do automóvel. Compro um livro, um filme, um CD. Vou almoçar, pago a conta, saio. E então reparo que não encontrei um único ser humano em todo o processo. Só máquinas. Eu, o meu cartão de crédito –e uma máquina. Então penso: será que Paul Lafargue (1842 – 1911) tinha razão?
Lafargue é pouco lido hoje em dia. Mas, na família Marx, ele é o único que leio com prazer e respeito. Genro do famoso Karl, Lafargue escreveu "O Direito à Preguiça" em finais do século 19. Para deixar uma mensagem otimista: a humanidade deixará o trabalho para trás porque o progresso tecnológico vai libertar os homens da condenação da jornada.
A mensagem de Lafargue é uma espécie de profecia bíblica do avesso: quando Adão e Eva foram expulsos do paraíso, Deus condenou o par desobediente a ganhar a vida com o suor do rosto. As máquinas, escreveu Lafargue, permitirão que os homens regressem ao paraíso, deixando as canseiras da labuta para os brinquedos da tecnologia.
Não sei quantas vezes li o opúsculo de Lafargue. Umas dez. Umas cem. Sempre à espera do dia em que a máquina libertaria os homens para o lazer.
Esse dia pode estar mais próximo do que imaginamos. Derek Thompson, na revista "The Atlantic", revela alguns números: em 2013, a Universidade de Oxford previu que as máquinas, daqui a 20 anos, farão metade dos trabalhos nos Estados Unidos da América. Essa previsão, como todas as previsões, tem um valor relativo: se a história ensina alguma coisa é que por cada trabalho destruído haverá sempre um trabalho inventado. Melhor: inventado e imprevisto pelo horizonte estreito do nosso presente.
Mas existem sinais de alguns limites: o número de empregos disponíveis (e tradicionais) começou a escassear nas últimas gerações, sobretudo para homens e jovens graduados. Porque a tecnologia faz mais e os homens têm cada vez menos para fazer.
O meu coração hedonista rejubila com a notícia, partindo do pressuposto de que as máquinas também irão gerar recursos capazes de sustentar a minha nostalgia pela vadiagem.
Mas depois, como uma Cassandra moderna, Derek Thompson relembra o "paradoxo do trabalho" que define a nossa miserável condição: toda gente amaldiçoa as horas passadas no escritório; mas, ao mesmo tempo, toda gente amaldiçoa as horas passadas em casa. Sem trabalhar, a maioria perde um "sentido" para a vida que não consegue encontrar em mais nada.
E não me refiro a situações dramáticas de desemprego, que jogam em outro campeonato. Falo de gente que enriqueceu, ou se aposentou, e que em teoria poderia festejar a liberdade com algumas garrafas de ociosidade.
Puro engano. Um mundo onde as máquinas trabalham e os homens têm tempo livre (e remunerado) soa mais a distopia do que a utopia. Será que a infame frase "o trabalho liberta" esconde uma verdade profunda?
Admito que sim. Mas também admito que o "paradoxo do trabalho" é o resultado de uma sociedade enlouquecida pelo próprio trabalho.
Quando todas as áreas da vida estão invadidas por prazos a respeitar, e-mails para responder, fins de semana para arruinar, filhos para ignorar, vida pessoal para adiar –enfim, sobra pouco espaço para descobrir o que gostamos de fazer quando não estamos a fazer nada.
No seu ensaio sobre a preguiça, Lafargue afirmava que os nossos antepassados greco-latinos sabiam cultivar o ócio porque tinham tempo; e tinham tempo porque, escusado será dizer, havia escravos obrigados a trabalhar por eles.
Hoje, não temos tempo nem escravos porque somos nós os escravos das nossas vidas. E quando nos vemos livres das correntes, nem sabemos o que fazer sem elas.
Como me dizia um amigo psiquiatra tempos atrás, ele nunca sai de férias no verão porque é no verão que os casos mais graves lhe aparecem no consultório. "O tempo livre é uma das principais causas de depressão", disse-me ele. Perante isto, que fazer?
No artigo, Derek Thompson levanta o véu: o nosso sistema de ensino, e sobretudo o ensino universitário, transformou-se numa espécie de fábrica para produzir trabalhadores.
Mas talvez não fosse inútil que, no meio da matemática ou do português, houvesse um curso especial para ensinar aos escravos de amanhã os versos mais citados e menos praticados do meu conterrâneo Fernando Pessoa: "Ai que prazer / Não cumprir um dever, / Ter um livro para ler / E não o fazer!".

segunda-feira, 9 de julho de 2018

A literatura e as estrelas - Mario Vargas Llosa

O ponto mais alto de La Palma (nas Ilhas Canárias) fica a cerca de 2.400 metros no Roque de los Muchachos, um terreno rochoso que a distância e com alguma imaginação se parece com figuras humanas. Aqui se respira um ar tão puro como o de Arequipa, a terra onde nasci, e é muito belo contemplar lá aos nossos pés, um tapete de nuvens que se estende como um mar em todas as direções até o mais remoto horizonte. Mas o mais pitoresco do lugar talvez sejam uns corvos sociáveis que posam graciosos para as fotos de turistas em troca de um punhado de comida.
Aparentemente, esse pedaço de terra tem a atmosfera mais diáfana na Europa e talvez no mundo o que explica a existência do Observatório, composto por enormes telescópios noturnos e solares construídos neste topo por vários países e, que desde meados dos anos 80 do último século, atraem para cá astrônomos de todo o planeta. Eles são seres estranhos que dormem de dia e trabalham à noite, e, como vampiros, eles operam nas sombras e a luz que os guia não é deste mundo, mas de lá de cima, bem alto, eu quero dizer a que foi emitida pelos astros há milhões de anos, que navegam (ou navegavam antes de desaparecer) pelo universo infinito.
Se a beleza dessa ilha, uma das menores do arquipélago das Canárias, com seus bosques, praias, montanhas e parques naturais é grande durante o dia, o verdadeiro milagre ocorre quando cai a escuridão, e o céu povoado por uma miríade infinita de estrelas, constelações, planetas, luzes que piscam se apagam, como no Aleph borgiano, e se tem a tremenda percepção de que há, acima de sua cabeça, o universo infinito. A coisa é ainda mais espetacular quando, com a ajuda das lentes dos telescópios, se começa a navegar pelos espaços siderais e se aproximar dessas bolas de fogo e, por exemplo, tem-se a sensação de ser um astronauta que percorre o céu rugoso da Lua, incluindo crateras gigantes, o trabalho de meteoritos que foram bombardeando ao longo dos milhões de anos de existência desse aglomerado de planetas.
Acho que nos dois dias que passei lá aprendi mais coisas do que em todas as outras viagens que fiz na vida. Por exemplo, nada é tão semelhante à literatura quanto a astronomia, porque em ambas a imaginação é tão importante quanto o conhecimento e, sem ela, este não progrediria. Os astrônomos que estão no Observatório e, especialmente, seu diretor, professor Rafael Rebolo López, armados de paciência e sabedoria, dão eloquentes respostas a todas as minhas perguntas, que sempre suscitam novas questões e, assim, a conversa salta a frágil fronteira que nesta disciplina separa (e em geral confunde) a física da metafísica.
Não é impressionante e paralisante trabalhar em um domínio que englobe o desmedido infinito, o tempo sem tempo que é a eternidade? Sim talvez. Mas, para evitar a paralisia surgiu a teoria do Big Bang, que coloca um ponto de partida – uma explosão de matéria que ocorreu há mais de 13 bilhões de anos e continua na sua expansão eterna pelo universo sem prazo para acabar – a essa eternidade e, embora ambos os conceitos sejam incompatíveis, permite que os cientistas trabalhem com menos incerteza. E se a teoria do Big Bang for ‘popperianamente’ “considerada falsa” a qualquer momento? Surgirá outra que corrigirá o que foi alcançado até agora e permitirá o avanço através de uma rota diferente. Não é essa a história de todas as ciências, sem exceção?
Os astrônomos chegaram a encontrar vida, ou sintomas da vida, em algum outro astro do universo? Não, em nenhum. Mas isso não permite afirmar definitivamente que só a Terra tem semelhante privilégio, entre outras razões porque os cientistas encontraram sim, em astros espalhadas em diferentes partes do espaço, quase todos os elementos necessários para a vida. Assim, tal descoberta – ter parentes em algum canto perdido do universo – poderia acontecer em algum momento no futuro. E para ver se esses humanoides venusianos ou marcianos se assemelham aos da ficção científica ou são mais originais do que aqueles inventados pela fantasia literária!
Quais são as chances de que o pequeno planeta Terra desapareça a partir do impacto de um meteorito gigante que seria milhares de vezes maior do que aquele caiu na Sibéria há mais ou menos um século, devastando um vasto território? Muitas, se se levar em conta que muito frequentemente se registram “acidentes” no espaço sideral, ou seja, hecatombes gigantescas que resultam de desvios de órbitas, ou a falta de órbitas nas trajetórias de certas formações rebeldes; e poucas, se for considerado o que ainda não aconteceu na longa história registrada do astro terreno. Mas, é claro, como hipótese, poderia acontecer amanhã e reduzir a nada tudo o que existe ao nosso redor há alguns milhões de anos. Vistas da perspectiva das estrelas, quão estúpidas e mínimas parecem as guerras e toda a violência da qual está impregnada a história da humanidade.
Eu pergunto ao grupo que me cerca que porcentagem de astrônomos são crentes e, depois de trocar ideias, eles dizem que provavelmente uns 20%; os outros são agnósticos ou ateus. Um desses amigos é rápido em fazer a diferença: “Eu sou crente”. Ele acrescenta: “E me sinto perfeitamente à vontade para conciliar minha religião com tudo o que a ciência descobre ou descarta”.
É verdade o que ele diz, sem dúvida, e também deve ser para essa quinta parte de astrônomos cuja fé resiste a esse cotejo cotidiano a que estão sujeitas as suas crenças religiosas com revelações, que não sei se devo chamá-las de estupendas ou terríveis, que lhes fazem as estrelas. Mas eu entendo melhor os outros quatro quintos dos cientistas que trabalham diariamente imersos em dúvidas e hesitações sobre as ideias propagadas pelas religiões sobre o ser supremo que teria criado todas aquelas constelações e tudo o que existe. Porque pequeninos se tornam os deuses que os seres humanos cultuavam ou adoravam confrontados com esse esmagador espetáculo ‘mil-e-uma-noitesco’ de bilhões e bilhões de estrelas semeadas ao longo de uma área sem fronteiras, que gravitam e se sustentam mutuamente, lançando luz ou recebendo-a, e que pobres as explicações das religiões inventadas para essas perguntas inexplicáveis: como tudo isso foi possível? Poderia ser puro acaso, conjunções e constituições misteriosas como coincidências, que, de repente, naquele universo gélido fizeram brotar a vida aqui neste pequeno planeta sem luz própria que é nosso? É mais ou menos convincente que não foi o acaso, mas um ser superior, dotado de infinita sabedoria, e que, talvez entediado com sua solidão eterna, criou essa maravilha tenebrosa que é a história da humanidade? As melhores respostas – as mais belas e imaginativas – para essas questões, podem não estar nas estrelas ou na religião, mas na literatura.
(TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO) 

Um brinde às inimigas - Manuela Cantuária

  Duas amigas em uma mesa de bar. Uma delas ergue seu copo. "Um brinde às inimigas, que elas tenham saúde em dobro para aplaudir nosso ...