Restos de Nada - Direito à Preguiça
Onde esta o meu direito
Que sucumbiu com o tempo?
Onde está, onde está?
Arrancaram das páginas
Falsificaram minha história
Inventaram minha vida
E o meu direito?
O meu direito a preguiça?
Eu sei que arrancaram das páginas escritas
O meu direito, o meu direito a preguiça
Nesse lugar colocaram uns tais livros sagrados
Para nos enganar e nos escravizar
Mas sei que somos capazes de construir a história
Com as páginas escritas do meu direito, o meu direito a preguiça
|
Devaneios sobre a ociosidade (Folha de SP - 01/10/2013)
1. Ironia: a única
coisa que tolero em Karl Marx é, bem vistas as coisas, o genro. O nome do
cavalheiro é Paul Lafargue e o seu "Direito à Preguiça" é texto que
guardo junto à cama. Para ler e reler quando a ociosidade me ataca. Que nos diz
Lafargue?
O óbvio: haverá coisa
mais triste do que uma existência inteiramente dedicada ao trabalho? Sobretudo
a um trabalho que nos escraviza e desumaniza?
Por isso Lafargue
defende: mais importante do que os "direitos do homem" são os
"direitos à preguiça". Que um dia, escreve ele, serão respeitados por
uma civilização tecnologicamente avançada. Trabalharemos três horas, não mais.
As máquinas farão o resto por nós.
Sorrio sempre quando
leio esse pedaço de otimismo. Lafargue escrevia no século 19. O que diria ele
se visitasse a Europa do século 21?
Em Portugal, por
exemplo, a crise econômica levou a mudanças na jornada de trabalho. O país vai
trabalhar agora, em média, 40 horas semanais. Uma hora a menos que na Alemanha,
que lidera o ranking com 41.
Os lusos não serão
caso único. Espanha, que trabalha em média 37 horas, prepara-se também para
imitar o exemplo germânico. Como? Abolindo almoços longos. Abolindo a
"siesta" depois do almoço. Abolindo jantares tardios. Abolindo a
possibilidade dos nativos se deitarem tarde e de acordarem tarde. Em suma,
abolindo Espanha.
Uma comissão
parlamentar prepara-se para estudar todos esses "abusos" --os
"abusos" que eu mais invejava em "nuestros hermanos"-- de
forma a produzir uma legislação laboral que transforme os espanhóis em alemães.
Meu Deus: haverá
maior crime do que transformar um povo, qualquer povo, à imagem e semelhança da
Alemanha?
Amigos liberais, que
olham com ternura para as minhas idiossincrasias conservadoras, dizem-me que
não há alternativa: a Europa tem que trabalhar mais para produzir mais e ser
mais competitiva a nível global.
Curiosamente, eu não
contesto a lógica do raciocínio. Apenas o que esse raciocínio diz sobre a nossa
patética civilização.
Sim, o progresso
tecnológico cumpriu-se. Não se cumpriu a libertação humana que Lafargue
imaginava. Com diferentes trajes e cenários, continuamos as bestas de carga
iguais às que era possível contemplar em plena Revolução Industrial.
O Direito à Preguiça
Paul Lafargue
2. Gosto de viver em cidades
porque gosto de caminhar em cidades. Também aqui sou o anti-Rousseau por
excelência. No seu "Devaneios do Caminhante Solitário", o filósofo
confessa que existem poucos prazeres comparáveis a uma caminhada pelo campo.
Subscrevo tudo, exceto o campo.
Cidades. Carros que
passam. Esse é o meu filme. E, por falar em filmes, haverá caminhada mais bela
do que no filme "Paris", de Cédric Klapisch, que talvez explique as
minhas paixões pela vadiagem urbana?
O filme tem duas
histórias paralelas. A primeira é a de um professor (o sempre magistral Fabrice
Luchini) que se apaixona por uma aluna e, sem surpresas, é abandonado por ela.
Um solitário angustiado que gosta de caminhar pelas ruas de Paris sem nunca se
aperceber desse fato redentor: o fato de estar vivo e de poder caminhar por
Paris.
Pierre é o segundo
personagem da segunda história. Doente, gravemente doente, ele regressa para a
casa da irmã (Julliete Binoche, "mon amour") por não ter onde ficar
até a hora de um transplante salvador.
A irmã acolhe-o. E,
no final, quando a hora chega, eles despedem-se por imposição de Pierre e o
táxi parte pelas ruas de Paris. A caminho do hospital.
É esse o momento em
que o professor e Pierre se encontram. O primeiro, caminhante meditativo,
perdido como sempre nas suas tristezas mundanas. E o segundo, que olha para ele
através do vidro do carro, invejando o destino daquele pobre diabo. Invejando o
luxo que é caminhar por Paris --sem hora, sem rumo. Sem cirurgia marcada.
Não sei quantas vezes
penso nessa sequência quando caminho por Lisboa com o peso dos meus pequenos
dramas. Mas também reparo que há carros que passam por mim. E rostos que olham
para mim. Não sei o que dizem. Não sei em que pensam.
Mas suspeito que
talvez um dia alguém passará por aquele pobre diabo, invejando a sorte que ele
tem por simplesmente caminhar pela cidade.
Resenha: Os devaneios do caminhante solitário - Jean-Jacques
Rousseau
http://docslide.com.br/documents/os-devaneios-do-caminhante-solitario.html
Nós, os escravos (Folha de SP - 14/07/2015)
Faço compras no supermercado. Encho o tanque do automóvel. Compro um livro, um filme, um CD. Vou almoçar, pago a conta, saio. E então reparo que não encontrei um único ser humano em todo o processo. Só máquinas. Eu, o meu cartão de crédito –e uma máquina. Então penso: será que Paul Lafargue (1842 – 1911) tinha razão?
Lafargue é pouco lido hoje em dia. Mas, na família Marx, ele é o único que leio com prazer e respeito. Genro do famoso Karl, Lafargue escreveu "O Direito à Preguiça" em finais do século 19. Para deixar uma mensagem otimista: a humanidade deixará o trabalho para trás porque o progresso tecnológico vai libertar os homens da condenação da jornada.
A mensagem de Lafargue é uma espécie de profecia bíblica do avesso: quando Adão e Eva foram expulsos do paraíso, Deus condenou o par desobediente a ganhar a vida com o suor do rosto. As máquinas, escreveu Lafargue, permitirão que os homens regressem ao paraíso, deixando as canseiras da labuta para os brinquedos da tecnologia.
Não sei quantas vezes li o opúsculo de Lafargue. Umas dez. Umas cem. Sempre à espera do dia em que a máquina libertaria os homens para o lazer.
Esse dia pode estar mais próximo do que imaginamos. Derek Thompson, na revista "The Atlantic", revela alguns números: em 2013, a Universidade de Oxford previu que as máquinas, daqui a 20 anos, farão metade dos trabalhos nos Estados Unidos da América. Essa previsão, como todas as previsões, tem um valor relativo: se a história ensina alguma coisa é que por cada trabalho destruído haverá sempre um trabalho inventado. Melhor: inventado e imprevisto pelo horizonte estreito do nosso presente.
Mas existem sinais de alguns limites: o número de empregos disponíveis (e tradicionais) começou a escassear nas últimas gerações, sobretudo para homens e jovens graduados. Porque a tecnologia faz mais e os homens têm cada vez menos para fazer.
O meu coração hedonista rejubila com a notícia, partindo do pressuposto de que as máquinas também irão gerar recursos capazes de sustentar a minha nostalgia pela vadiagem.
Mas depois, como uma Cassandra moderna, Derek Thompson relembra o "paradoxo do trabalho" que define a nossa miserável condição: toda gente amaldiçoa as horas passadas no escritório; mas, ao mesmo tempo, toda gente amaldiçoa as horas passadas em casa. Sem trabalhar, a maioria perde um "sentido" para a vida que não consegue encontrar em mais nada.
E não me refiro a situações dramáticas de desemprego, que jogam em outro campeonato. Falo de gente que enriqueceu, ou se aposentou, e que em teoria poderia festejar a liberdade com algumas garrafas de ociosidade.
Puro engano. Um mundo onde as máquinas trabalham e os homens têm tempo livre (e remunerado) soa mais a distopia do que a utopia. Será que a infame frase "o trabalho liberta" esconde uma verdade profunda?
Admito que sim. Mas também admito que o "paradoxo do trabalho" é o resultado de uma sociedade enlouquecida pelo próprio trabalho.
Quando todas as áreas da vida estão invadidas por prazos a respeitar, e-mails para responder, fins de semana para arruinar, filhos para ignorar, vida pessoal para adiar –enfim, sobra pouco espaço para descobrir o que gostamos de fazer quando não estamos a fazer nada.
No seu ensaio sobre a preguiça, Lafargue afirmava que os nossos antepassados greco-latinos sabiam cultivar o ócio porque tinham tempo; e tinham tempo porque, escusado será dizer, havia escravos obrigados a trabalhar por eles.
Hoje, não temos tempo nem escravos porque somos nós os escravos das nossas vidas. E quando nos vemos livres das correntes, nem sabemos o que fazer sem elas.
Como me dizia um amigo psiquiatra tempos atrás, ele nunca sai de férias no verão porque é no verão que os casos mais graves lhe aparecem no consultório. "O tempo livre é uma das principais causas de depressão", disse-me ele. Perante isto, que fazer?
No artigo, Derek Thompson levanta o véu: o nosso sistema de ensino, e sobretudo o ensino universitário, transformou-se numa espécie de fábrica para produzir trabalhadores.
Mas talvez não fosse inútil que, no meio da matemática ou do português, houvesse um curso especial para ensinar aos escravos de amanhã os versos mais citados e menos praticados do meu conterrâneo Fernando Pessoa: "Ai que prazer / Não cumprir um dever, / Ter um livro para ler / E não o fazer!".
Nenhum comentário:
Postar um comentário