quarta-feira, 30 de maio de 2018

Apolpando - Antonio Prata

Eu gosto de goiaba, mas não gosto de comer goiaba. Ela tem uns caroços que não são grandes, mas são duros: você deve mastigar com cuidado, só até seus dentes tocarem um caroço, então para --é como se nunca pudesse fruir plenamente das potencialidades da goiaba.
Eu gostava da Alice, mas não gostava de namorar a Alice. Ela tinha umas implicâncias que não eram grandes, mas eram pétreas: eu tinha que me aproximar com cuidado, só até roçar em suas defesas --era como se eu nunca pudesse fruir plenamente das potencialidades da Alice.
Quando terminamos, pensei: nossa, que mulher incrível seria Alice sem caroços!
*
Uma noite, muito tempo depois de terminarmos, Alice apareceu aqui em casa. Com outras palavras, disse que eu só era capaz de me relacionar com maçãs: pessoas homogêneas, medíocres, com quem você pode conviver sem se preocupar com a casca, os caroços, segurando pelo cabinho, sem melar as mãos.
Acho que ela via a si própria como uma espécie de romã.
*
A banana é uma das frutas mais saborosas que existem e é, sem dúvida, a mais fácil de comer. O que joga por terra a falácia de que as pessoas interessantes ou inteligentes ou talentosas devem ser antipáticas, cheias de caroços ou difíceis de descascar. (Pena que, naquela noite, não pensei nisso.)
*
Chega de Alice. Falemos de coisas boas.
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A manga é a picanha do reino vegetal. Se o mundo fosse justo, seria a manga, não a maçã, o paradigma da fruta; "pomme", em francês, seria manga; a serpente ofereceria manga a Adão e Eva (ah, o sexo que perdemos!*); Steve Jobs teria ficado rico pondo suas manguinhas de fora; Newton teria tirado a famosa soneca à sombra de uma mangueira.
Não: se uma manga caísse na cabeça de Newton, ele a teria comido e mandado a física pras cucuias --que gravidade resiste a este Sol da Terra?
*
Nunca achei a menor graça na Audrey Hepburn --uma uva, diriam muitos: não discordarei, mas prefiro as mangas; ah, Scarlett Johansson!
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Outro dia, meu pai veio me visitar e trouxe uma caixa de caquis, lá de Sorocaba. Eu os lavei, botei numa tigela na varanda e comemos um por um, num silêncio reverencial, nos olhando de vez em quando. Enquanto comia, eu pensava: Deus do céu, como caqui é bom! Caqui é maravilhoso! O que tenho feito eu desta curta vida, tão afastado dos caquis?!
Meus amigos e amigas e parentes queridos são como os caquis: nunca os encontro. Quando os encontro, relembro como é prazeroso vê-los, mas depois que vão embora me esqueço da revelação. Por que não os vejo sempre, toda semana, todos os dias desta curta vida?
Já sei: devem ficar escondidos de mim, guardados numa caixa, lá em Sorocaba.

*Ver "A Verdadeira História do Paraíso", de Millôr Fernandes (Editora Desiderata).


terça-feira, 29 de maio de 2018

Humberto Werneck - Crônicas sobre Cinema

Haja sacos!

O cronista já foi menos antipático, dirá você ao se dar conta de que o assunto, desta vez, é pipoca no cinema, e mais, que a opinião do camarada, nesse particular, está longe de ser positiva. Ele gostaria que ainda assim você o acompanhasse até a última linha deste arrazoado, com a disposição de quem, esgotadas as pipocas, considera a possibilidade de encarar, lá no fundo do pacote, os piruás, ou que outro nome tenham esses grãos de milho que, mesmo submetidos a temperaturas abrasadoras, resistiram à pressão para explodirem em flores brancas comestíveis.
Seja dito que o cronista, tanto quanto você, adora pipoca, e que eventualmente as come às baciadas, chegando mesmo, numa devoração desvairada, a proporcionar aos circunstantes um espetáculo digno do mais indecoroso Pantagruel. Nunca o fez, porém, numa sala de cinema, ambiente onde sua abstenção pipocal se escora em numerosas razões, sendo a gordura do petisco apenas uma delas. Acha ele que nenhum guardanapo dá conta de eliminar integralmente os traços de manteiga - ou de óleo ordinário, nunca se sabe - que a pipoca fatalmente deixa na polpa dos dedos, resquícios untuosos que alguns (jamais você, é claro), em sub-reptícia esfregação, não hesitam em transferir para o braço da poltrona, e até para as bordas acolchoadas do assento sobre o qual, na sessão seguinte, outras nádegas haverão de se acomodar.
Há também, prossegue o antipático, a questão do cheiro, aquele mesmo que, no saguão do cinema, atiçou apetites, e que, na sala de projeções, veio a compor uma espécie de trilha olfativa do filme, ainda quando este tenha como tema as privações alimentares de um faquir. Comedores ou não, no escurinho estamos todos condenados ao odor gordurento da pipoca.
Fosse apenas isso, o cheiro - mas não: há também, ainda mais incomodativo, o inconveniente acústico, não só dos sacos de papel sendo escarafunchados por dedos gulosos, como também dos maxilares a triturar o que de lá os dedos extraíram. Talvez haja um pouco de nostalgia da parte de quem, em outros tempos, habituou-se à trilha sonora adicional, mais palatável, gerada pelos pares de enamorados cujos beijos, por vezes, de tão fogosos, chegavam a sugerir salva-vidas engalfinhados em procedimentos de mútua respiração boca a boca.
Nada contra, apressa-se o cronista em posicionar-se. Ele apenas lamenta que ao smack-smack dos casais se sobreponha o crunch-crunch dos mastigadores de pipoca - ruído quase sempre desencadeado, no início da sessão, pelo plec metálico de latinhas de refrigerante sendo desvirginadas em todo canto da sala. E, mais adiante, pelo fragor de pacotes, agora vazios, sendo reduzidos a bolas de papel, as quais serão em seguida, nem tão discretamente assim, postas a rolar sob a poltrona em frente.
Desconfia o cronista que os donos das salas não estarão gostando nada deste papo, de vez que, segundo informações confiáveis, a venda de pipoca em cinema chega a ombrear com a renda da bilheteria, ou mesmo a superá-la. Se assim é, não será impossível que aspirantes a carreiras empresariais estejam a pôr na balança: exibidor de filmes ou pipoqueiro?
Por muito tempo hesitou o escriba em tornar público o desconforto que lhe causa a ruidosa e olorosa comilança em que se transformou a aventura de ir ao cinema. Limita-se, quando muito, a buscar asilo nalgum ponto da sala onde não haja piquenique. Riscou do mapa as salas dos shopping centers, nas quais, a seu ver, em breve será indispensável apresentar, mais que um ingresso, um saco de pipoca. Em dia de pavio especialmente curto e plateia especialmente esfaimada, exasperou-se ele, em meio ao filme: “Gente, pipoca engorda!”. A saraivada de insultos que seu quixotesco protesto suscitou só não foi mais encorpada, supõe, porque incontáveis bocas, de gordos e de magros, estavam ocupadas em mastigar.
Se ele agora se anima a deixar por escrito o que pensa a respeito dessa comezaina, é porque acaba de ler uma crônica em que Carlos Drummond de Andrade, então com 25 anos, protestou - sob pseudônimo, é verdade - contra um fenômeno semelhante, que em 1927 infernizava a vida dos cinéfilos de Belo Horizonte, com o agravante de ser ainda tempo do cinema mudo. “A um ligeiro movimento que fiz”, escreve ‘I.’, “qualquer coisa estalou no chão”. Espalhadas no piso de toda a sala, era impossível não pisar em cascas de amendoim - bolotinhas do assumido agrado do jovem cronista, e às quais se atribuem propriedades afrodisíacas.
“Ora viva o amendoim”, saúda o poeta no verso que fecha O procurador do amor. Até por isso, quem sabe, recomendava ele a seus leitores: “Amigos, comei o vosso amendoim em casa, de pijama, chinelos e quarto fechado”. Das profundezas de sua insignificância, este cronista subscreve o que disse o mestre, apenas trocando por pipoca o amendoim. 

Turma do barulho

Para minha surpresa, foi moderada a chiadeira que causei, duas semanas atrás, ao falar mal do ruidoso hábito de comer pipoca no cinema. Vai ver que bocas e mãos estavam ocupadas na mastigação nalguma sala escura. Em compensação, houve fartura de reclamações contra outros vilões: quem desembrulha bala no melhor do filme, tosse na sala de concerto, ou, mais execrável ainda, faz uso de celular nesses ambientes em que o silêncio deve falar mais alto. De fato, comparada a tais abominações, talvez a começão de pipoca no cinema seja um pecado apenas venial.
Confesso que não havia pensado na importunação sonora que é alguém desembrulhando bala no momento mais delicado de uma sonata ou sinfonia. Também nesse particular, devo estar mal-acostumado com os bons tratos na Sala São Paulo, onde a plateia tem à disposição, de graça, balas que já vêm desembaladas. Ainda assim, há sempre quem leve ao concerto seu farnel de guloseimas.
É este o caso de amiga cujo nome, em nome de preciosa camaradagem, peço licença para não declinar aqui. A querida fulana não põe os pés e ouvidos na Sala São Paulo sem um estoque de balas a seu ver inigualáveis, acondicionadas, porém, no papel mais potencialmente ruidoso que existe no mercado.
Por se tratar de vício incurável, cuidou a jovem senhora de desenvolver técnicas para abrir as embalagens, de modo a não importunar além da conta seus vizinhos de poltrona, procedimentos esses que tomo a liberdade de passar adiante, na esperança de que sejam úteis para outros viciados - e, sobretudo, para quem se sentar ao lado deles.
O segredo, ensina ela, é não desembrulhar aos poucos, mas de uma vez, e somente nas passagens em que os instrumentos mais potentes estejam rugindo em uníssono. Na hora, por exemplo, daquele tchan-tchan-tchan-tchan da Quinta Sinfonia de Beethoven. Ou no momento em que, na Nona do mesmo compositor, as goelas do coro fazem jorrar todos os decibéis de que são capazes. Bem-humorada, a melomaníaca com mel se permite fazer frase: “Quando soam os tímpanos da orquestra, nenhum tímpano humano vai perceber que você está desembrulhando uma bala...”.
Mais preocupante, na opinião da minha amiga, é a questão do celular, que a etiqueta não só de concerto manda deixar desligado. O contrário é merecedor de abominação unânime, com exceção, claro, do pessoal que, por esquecimento ou desídia, não dá trégua ao telefone, ligado a ele como enfermo grave aos aparelhos em leito hospitalar. Para muitos casais - permita-me a divagação -, faz tempo que o celular deixou de ser motivo de desavença, passando a funcionar, ao contrário, como substitutivo da briga conjugal: como brigar, se está cada um monogamicamente atracado a seu telefone?
A menos que eu esteja mal informado, não há toque de celular capaz de harmonizar-se com um diálogo na tela ou um fraseado musical. Ouvi contar a história da moça que se esqueceu de desligar o iPhone, e, quando ele soou, no mais inadequado dos momentos, não viu melhor saída que atirá-lo no colo do vizinho, um total estranho, como quem não tivesse nada a ver com o incidente sonoro. 
E há também, mais grave no concerto do que no cinema, a questão da tosse, sempre fora do programa. “Não dá para tossir com Debussy”, diz aquela amiga das balas. Tão irritante que eu mesmo, nulidade em teoria musical, imaginei compor um 1.º Concerto para Pigarro e Tosse, para o que me bastaria, em determinados ambientes, ligar um gravador. Não é por outro motivo, aliás - o alívio das gargantas -, que a Sala São Paulo oferece balas.
O inconveniente causado pelos tossegosos (acabo de aprender a palavra) foi responsável, ali, alguns anos atrás, por um incidente prenhe de potencial pedagógico: exasperado com a tosse na plateia, o maestro Daniel Barenboim depôs a batuta, sacou um lenço e cobriu a boca, num eloquente pito sem palavras, sendo aplaudido até por quem tossia.
O regente argentino-israelense foi mais sutil que seu colega alemão Kurt Masur, o qual, em circunstância semelhante, à frente da Filarmônica de Nova York, abandonou o palco em pleno terceiro movimento da Quinta Sinfonia de Shostakovich. Com seu lenço, Barenboim foi mais delicado, também, que a violinista coreana Kyung-Wha Chung. Numa sala londrina, a grande dama interrompeu a Sonata em Sol Maior de Mozart para ralhar com os pais de uma criança que tossia: “Tragam-na de volta quando ela estiver mais velha”. Metade da sala aplaudiu, metade vaiou.
E há, por fim, quem perturbe o concerto ou sessão de cinema sem nada fazer, simplesmente por cair no sono. Nem precisa roncar. Vi na internet uma sequência em que o rimbombar da orquestra, rompendo a calmaria, desperta uma senhora, a qual, assustada, dá um berro, desencadeando gargalhadas.
Ao contrário do que se passa com embalagens, celulares e pulmões tonitruantes, não há o que fazer em relação à soneca no espetáculo. Quem sabe poderia a Sala São Paulo oferecer, além das balas, alguma pílula capaz de manter a plateia em estado de vigília? 

Delinquentes fesceninos 

Também entre os cinemas, há aqueles que, depois de velhos, se convertem à religião. Faz sentido. A amplidão da sala se presta à maravilha ao propósito de arrebanhar fiéis. Com palco e poltronas, o pasto espiritual ali está, prontinho, a dispensar grandes investimentos dos empresários da fé. Saem os Irmãos Lumière e entram os irmãos, simplesmente. Mas será que não há, na conversão de cinema em templo, um ingrediente extraimobiliário? Uma determinação até divina, quem sabe, de exorcizar os demônios da concupiscência, responsáveis pela fartura de pecados cometidos naquele escurinho propiciatório - na tela, onde por vezes passam indecências, e sobretudo na plateia, onde nem seria necessária a ficção para inspirar a fricção lasciva de casais arfantes.
Quem nunca viu este filme? Um belo dia, ou melhor, um péssimo dia, o letreiro se apaga e, com ele, o velho cinema. O enredo já rendeu filmes, exatamente - está se lembrando, por exemplo, de A Última Sessão de Cinema? Se bem que no clássico de Peter Bogdanovich, de 1971, o Cine Royal não vira igreja, nem mesmo estacionamento, como também costuma acontecer: apenas acaba, por falta de plateia na ínfima Anarene, Texas.
Qualquer que seja a causa mortis, estamos falando dessa instituição que em toda parte se vai extinguindo, o cinema de rua, desbancada pelo cinema de shopping. Na hipótese menos melancólica, pode uma sala mudar de ramo, mas não de rumo, mantendo-se ligada ao universo do entretenimento e da arte. Mas é raro. Não sei de outro cinema que tenha, como o paulistano Astor, se convertido em livraria, a Cultura, onde, no mesmo plano inclinado, as poltronas cederam lugar a estantes e pontos de leitura. Que me perdoem os pentecostais e os donos de estacionamento, mas salas de cinema, quando desativadas, decaem.
A enésima reprise do assunto vem ao fato de que acaba de completar 70 anos, em Belo Horizonte, o cinema onde vi passar boa parte de minha infância, adolescência e primeira mocidade. O predinho art déco do Pathé lá está, protegido por tombamento, na região que hoje se chama Savassi (na época, este era o nome de uma padaria quase em frente), mas sua última sessão terminou há quase 20 anos. Faltou entre os belo-horizontinos o mesmo ardoroso empenho que em São Paulo assegurou a sobrevivência do Belas Artes. Desde então o ventre oco do Pathé abrigou igreja, feira de roupas, estacionamento. Nada disso vingou, como também não andaram uns projetos para ressuscitar o que, na capital mineira, mais se pareceu com um cinema de arte.
Não são apenas cinematográficas as minhas lembranças do Pathé. Algumas, devo confessar, beiram o crime e a contravenção, e chega a ser espantoso que eu nunca tenha sido apanhado, de madrugada, com a boca na botija - mais exatamente, com a mão nas letras de madeira que compunham o título do filme na fachada.
Com o destemor de adolescentes quando em grupo, numa disputa para ver quem apronta mais, eu e alguns comparsas galgávamos a grade que fechava o hall do Pathé, e cada qual furtava uma letra, com o propósito de presentear a namorada, ou namorada alguma, com a inicial de seu nome. O fundo de meu guarda-roupa escondeu por um bom tempo um estoque de letras, farto o bastante para a hipótese de vir a namorar representantes do alfabeto inteiro.
Se nunca passei disso, havia uns porra-loucas (adjetivo e substantivo então de largo uso) dados a reescrever os títulos na fachada do Pathé. Primeiro, postavam-se no outro lado da avenida Cristóvão Colombo, e dali ficavam a matutar o que se poderia compor com as letras do filme. Em seguida, passavam aos atos. As letras sobrantes eram deixadas sobre a marquise do cinema.
Alguns dos gaiatos voltavam, na manhã seguinte, para saborear, a prudente distância, as gargalhadas de alguns passantes e os queixos caídos da Tradicional Família Mineira. Em qual dos times se incluiria o mais ilustre dos moradores da região, o Dr. Tancredo Neves, dono de uma casa em estilo normando na Praça Diogo Vasconcelos?
Lamento não ter tido a ideia de anotar todas as barbaridades que li na fachada do Pathé. Lembro-me de dois arranjos. Um deles, dos menos trabalhosos, fez As Pupilas do Senhor Reitor resultar em As Putas do Senhor Rei. O outro? Ainda me pergunto como se chama o filme que permitiu a um gaiato convertê-lo em Rola na Garota.
Consultado, o cinéfilo Sérgio Augusto me conta que sua participação em estripulias desse tipo, no Rio de Janeiro, se limitava a mexer nos títulos - abundantes na década de 50, com direito a farta reprise na seguinte - em que entrasse a palavra “céu”, da qual se eliminava uma das vogais. “Éramos uns delinquentes fesceninos, meu destino era mesmo o Pasquim...”, admite o Sérgio Augusto. “Imagine o estupor das senhoras indo às compras de manhã e dando de cara, nas marquises, com títulos de filmes que originalmente se chamavam Céu de Agonia, Céu Amarelo, Sem Barreiras no Céu, E o Céu Mandou Alguém, Até o Céu Tem Limites, Entre o Céu e o Inferno e, talvez imbatível, Tudo Isso e o Céu Também...”

Na contramão da fé

Falei aqui, faz uma semana, de cinemas que se convertem à religião, passando a acolher fiéis onde imperavam cinéfilos - e eis que lá de Minas, sempre atento, o Fernando Dolabela, amigo desde os nossos 11 anos, autoridade mais que nacional em empreendedorismo, veio acudir a minha abrangente ignorância. Nesse movimento, contou ele, há também contramão: igrejas de variados credos que mudam de ramo, cedendo espaço para atividades mais terrenas, eventualmente pecaminosas.
Numa sumária lambiscada na internet, topei com igrejas que foram transformadas em livraria, cervejaria, casa de degustação e venda de vinhos, supermercado, academia de ginástica e até, valha-nos Deus, boates - uma das quais, em Nova York, dando por encerrada ali a busca da Virtude, chafurdou no Pecado, notabilizando-se como antro fervente do sexo, das drogas e, quase à guisa de pretexto, do rock’n’roll. Haja vendilhões de templos!
Em meio a tão diversificada conversão, tomei conhecimento da existência de uma capela transmudada em cinema. Coisa de estrangeiros ímpios? Nada: aconteceu aqui em Búzios, no litoral fluminense, e não consta que tenha havido reclamações quando, há cinco anos, aquela modesta sucursal da casa de Deus deu lugar ao Cine Teatro da Rasa.
Até o momento, só não encontrei (mas pode haver, preciso consultar o Fernando) igreja que tenha mudado de credo, passando de pentecostal a católica, ou vice-versa. Também não consegui saber o que pode ter levado padres e pastores a desistir do ramo religioso; a pura e simples perda de fé, como sucede às vezes no rebanho? Ou, na leitura do balanço, a constatação de que nem sempre templo é dinheiro? Igualmente desconheço se algum dos desistentes, nessa melancólica encruzilhada, chegou a afixar no frontispício uma tabuleta de “vende-se” ou “aluga-se”.
Vamos aos fatos, e comecemos pela tal discoteca nova-iorquina. Até para desestimular apressadinhos, seja dito que não adianta correr, pois a antiga Limelight é hoje, com o mesmo nome, uma academia de ginástica. Na verdade, trata-se apenas do uso mais recente de uma construção erguida - em plena América, mas em estilo gótico... - em meados do século 19.
Desconsagrada no começo dos anos 70, aquele reduto da Igreja Episcopal da Sagrada Comunhão foi um centro de reabilitação de drogados e alcoólatras, antes de se tornar exatamente o contrário disso, na década seguinte, quando se instalou ali a discoteca. 
A farra crepitou até 1996, pois que o promoter da casa matou e esquartejou um dos habitués, traficante de drogas. Reabriu anos mais tarde com o nome de Avalon, para a certa altura virar supermercado, o qual, há dois anos, ufa, cedeu espaço à Limelight Fitness. O que mais está por vir?, pode perguntar-se quem passe por aquele cambiante ponto do distrito de Chelsea.
Bem menos acidentada tem sido a história de outra discoteca, a Paradiso, vicejante entre as paredes do que foi uma igreja de Amsterdam, erguida no século 19. Ali, além de sacolejos na pista, os fiéis frequentadores têm à disposição desfiles de moda, sessões de cinema, palestras científicas e festivais de poesia.
Também na Holanda, o mesmo clima de tranquilidade pode ser desfrutado em duas igrejas desativadas nas quais o livro santo deu lugar ao livro, simplesmente - as livrarias Selexyz, em Maastricht, e Waanders in de Broeren, em Zwolle, acomodadas em edificações dos séculos 13 e 15, respectivamente. Bem parecido com o que se vê, faz alguns anos, em Óbidos, vila portuguesa com pouco mais de 3 mil habitantes, numa construção do século 18 onde há muito já não se rezava missa e hoje é livraria, cujo nome, ao menos, evoca santidade: Santiago.
Se a fé remove montanhas, como parecem crer as empreiteiras, houve quem removesse igreja de uma cidade a outra. Coisa de americano, quem duvidaria? Não foi lá que alguém, na década de 30, teve a ideia de construir um convento nada menos que medieval, The Cloisters, ao norte de Nova York, agora extensão do Metropolitan Museum of Art?
Pois algo ainda mais radical se passaria em anos recentes, quando, viajando de carro em Ohio, um viticultor viu em Shalersville um templo metodista desativado, e se encantou por ele. Com determinação de recém-convertido, não teve dúvida: mandou demolir a construção, do ano de 1892, para reerguê-la, tijolo por tijolo, em sua cidade, Geneva. Dizem que na casa, templo da degustação enológica, espírito divino e espírito de vinho podem perfeitamente harmonizar-se.
No mesmo capítulo etílico, inteirei-me da existência, também nos Estados Unidos, de uma cervejaria, a Church Brew Works, de Pittsburgh, literalmente nascida das cinzas de uma igreja batista incendiada em 1915. “E no oitavo dia... o homem criou a cerveja”, trombeteia o site do estabelecimento. Os proprietários restauraram com esmero as ruínas do antigo templo, que estivera abandonado por 80 anos. Entre outras relíquias, existe ali, intacto, um confessionário, ao que se saiba sem uso específico, e certamente não por falta de matéria-prima espiritual. 

domingo, 27 de maio de 2018

Supérfluo e indispensável - Gregorio Duvivier

ilustração para a coluna de Gregório Duvivier - Catarina Bessel

Desculpa, não tava prestando atenção. Tava aqui pensando em como seria lindo o metrô do Rio. Já pensei onde ficaria cada estação. Precisaria de sete linhas, não mais do que isso. E os bondes, também. Não to falando de VLT, mas de bonde mesmo. Subindo e descendo o morro. Outro dia sonhei com a estação Cosme Velho. Acho que ficar adulto é substituir pornografia por linhas ferroviárias.
Desculpa, não tava prestando atenção. Tava aqui relativizando mentalmente a criminalização de uma palavra por motivos etimológicos. Proibiram mulata porque vem de mula. A etimologia não deveria ser o bastante pra banir palavras. A palavra "baunilha" tem a mesma origem que "vagina", porque ambas têm um formato parecido. A palavra rapaz vem de "rapina" e significa originalmente "ladrão". A palavra não tem carga genética. Ela é o que a gente quiser que ela seja.
Desculpa, não tava prestando atenção, tava aqui pensando que hoje em dia todo o mundo tem barba. Olha à sua volta. Barba, barba, a não ser que você esteja num culto ou no Exército. Na minha infância, todo barbudo era um outsider. Só tinham barba os mendigos e o Enéas. O próprio Lula nunca disse que era de esquerda. Talvez fosse a barba que desse a impressão. Será que soltam ele se ele tirar a barba? Será que percebem finalmente que a discordância era estética, e não ética?
Desculpa, não tava prestando atenção, tava aqui pensando que ator não pode fazer greve. Ninguém se importaria com a nossa greve. Imagina se todos nós abandonássemos o teatro, em protesto contra o abandono do teatro. Não faria sentido. Às vezes tem um louco que propõe: "Vamos interromper todos os espetáculos em cartaz pra que eles percebam que sem cultura eles não vivem!". Só que vivem, sim. Sem cultura "eles" vivem a mesma vida que estavam vivendo antes. A ausência da nossa profissão não mata ninguém. A presença torna a vida de poucos um pouquinho melhor. Mas só.
Desculpa, não tava prestando atenção, tava pensando que é triste isso de ser supérfluo. Ao mesmo tempo, tudo o que faz a vida valer a pena é supérfluo. O gosto da comida, o sexo, o futebol. Que bom ser supérfluo. Tudo o que é indispensável, em contrapartida, é um saco.
Desculpa, não tava prestando atenção, tava aqui pensando que eu não entendo nada de caminhão, e menos ainda de combustível, e menos ainda de PIS e Cofins, e lembrei do Pessoa, "não entendo nada, nunca entenderei nada, à parte isso, apoio em mim todas as greves do mundo".

Discordo - Fernanda Torres

Marta Mello


Fotógrafos de cinema amam a luz do amanhecer e do lusco-fusco do fim de tarde. O périplo do astro rei deixa duas alternativas devastadoras para quem vive do batente da sétima arte: ou bem você acorda, ou se deita às cinco da matina.
A privação do sono, está provado pela ciência, compromete o raciocínio, a fala, a coordenação motora e os bons fluidos do organismo. É como no Exército, tem que ser soldado para aguentar.
Fazia tempo que eu não enfrentava um set de filmagem. Foi um retorno feliz, na série "Sob Pressão", eu andava saudosa. Mas bastou uma semana de noturnas, seguida de cinco diurnas acordando de madrugada, para o gozo do pertencimento arrefecer na dura realidade.
Segunda última, depois de 12 horas de labuta em Cascadura, cheguei zumbi em casa. Receosa de capotar cedo demais, arrastei-me como pude, até a hora de nanar. Eu levantaria às 4h50 no dia seguinte.
Deitada, acertei o alarme, li, já ia fechando os olhinhos, quando entrou uma mensagem no celular. Eu sei, eu não devia, mas chequei o coisa-ruim.
Um grupo ecológico pedia meu engajamento numa enquete oficial do Congresso. Os canalhas estão para aprovar uma lei nefanda, que libera geral o uso de agrotóxicos, era preciso agir urgente.
Falta de sono dá nesses rompantes, decidi me empenhar. Gastei o tempo que eu não tinha preenchendo o formulário: RG, email, CEP, nome completo digitado no dedinho... Aguarda confirmação...
Cadastrada, piscou na tela o SAIBA MAIS. Eu quis saber.
A lei apareceu, obscura, feita para confundir, quanto mais com os neurônios a meio palmo. É pra votar contra ou a favor? Tive vergonha de perguntar.
Retornei à mensagem engajada. A militante escrevera que precisávamos lutar a favor. A favor, ela escreveu. Eu sabia do lobby dos ruralistas, dos perigos de temperar a canja dos meus filhos com Baygon, mas estava escrito na convocação: A FAVOR.
Li e reli a famigerada lei, era pior que hieróglifo. Retornei ao grupo. A lei, o grupo, a lei, o grupo... O a favor falou mais alto. Apertei convicta no CONCORDO.
Não satisfeita, dei um foward em todos os meus contatos, pirei, enlouqueci. Troquei uma noite mínima de descanso pela revolução orgânica. Apaguei a luz algo excitada, havia cumprido um dever cívico. Foi quando o celular desembestou de tanto apito.
Uma enxurrada de mensagens perguntando se era para votar contra ou a favor. Não estava claro para ninguém. Demorou, mas acabou caindo a ficha: o botão certo era o do DISCORDO.
Adeus, sono.
Corri para o site do Congresso, não havia opção arrependimento. O triunfo dos transgênicos, o DDT da merenda, o acefato do tomate, o glifosato da cana, do organoclorado das carnes, a extinção das abelhas, o câncer e a deformidade a pesar nas minhas costas.
Não dava para dormir sem reverter o estrago. Noite alta, céu risonho, meu dedinho a escrever a errata do DISCORDO. Era discordo, é claro que era discordo. Eu discordo, porra!
Discordo das 12 horas de serviço, discordo de ter que pular da cama antes do sol; discordo da bancada da bala, da Bíblia, do boi; discordo do Trump, do Putin, do Temer, da Dilma, do Geddel, do Aécio e do Bolsonaro; discordo do ACM Neto, que mandou cortar 500 árvores para fazer um BRT. Eu discordo do Gilmar, eu discordo da Alerj, das milícias e do narcotráfico.
Se, algum dia, o meu nome for incluído na lista de defensores dos pesticidas, fica aqui a contraprova. EU DISCORDO, EU DISCORDO, EU DISCORDO DE TUDO, EU DISCORDO!

Partir bobamente o pão - Ricardo Araújo Pereira

Luiza Pannunzio/Folhapress



Chega. As pessoas que partem sensatamente o pão têm de deixar de fingir que não desejam infligir sofrimento físico intenso às pessoas que partem bobamente o pão.
Trata-se da grande clivagem da humanidade, bem acima das discordâncias políticas e religiosas. Até agora, as pessoas que partem sensatamente o pão têm-se retraído. Sabemos como é difícil.
Em festas, reuniões familiares, lanches de trabalho, há sempre alguém que se aproxima de um pão e o parte bobamente. E as pessoas decentes engolem a ofensa.
Há apenas um modo de partir sensatamente o pão, assim como há apenas um modo de cumprir a lei: a faca fica perpendicular ao eixo longitudinal do pão e cortam-se fatias paralelas, uniformes, dignas.
Mas pessoas que partem bobamente o pão partem-no bobamente de várias maneiras diferentes. Por exemplo, fazem um corte oblíquo e tiram um triângulo de pão.
"Só quero um bocadinho", dizem. E a polícia não faz nada.
Por isso, as pessoas responsáveis têm depois de voltar a acertar o pão, cortando várias fatias aleijadas, sem côdea a toda a volta, até retomar o rumo certo.
Outras vezes, as pessoas partem bobamente o pão por preguiça. Começam a partir bem mas, a meio, cansam-se e rasgam a fatia. Fica o pão estropiado, com um socalco irregular.
Ou então cortam o pão com uma faca que não é própria para cortar pão. Têm de fazer mais força e acabam esmagando o pão. A côdea de cima fica colada à côdea de baixo.
E há ainda pessoas que ciscam no meio e gracejam: "Só gosto do miolo, ah, ah"¦". Um dia acontece uma desgraça.
A única maneira de impedir que estas situações descambem em tragédia é impor o regime que vigora em minha casa: só eu é que mexo na faca do pão.
É um daqueles casos em que até democratas, fartos de anarquia, sucumbem ao autoritarismo. Mas tem de ser.
Aqui, antes do fatiamento do pão, não há qualquer contato entre a pessoa que deseja pão e o pão.
Sou eu que parto e distribuo.
Para quem estiver atento, é um dos grandes ensinamentos da Bíblia.
Cristo também não deixou os apóstolos mexerem no pão. Abençoou o pão, partiu-o (sensatamente, como é óbvio) e ofereceu-o. Não foi por acaso.
Judas, até aposto, partia bobamente.

Ciclo - Fabrício Corsaletti



Como sei que uma das coisas mais chatas do mundo é ouvir o relato dos sonhos alheios ("um carro passava em cima do meu corpo, mas meu corpo era o asfalto, então não tinha problema, eu levantava, corria atrás do carro, matava o motorista e chegava a tempo no trabalho"), vou pular os eventos extravagantes e dizer simplesmente que foi um sonho de lavar a alma, e a prova é que quando lavei o rosto de manhã acho que o fiz com certo remorso pois tive receio de que a água pudesse apagar o sonho.
Tomei café ainda mexido pelas imagens que iam e vinham noite adentro, se repetindo com pequenas variações —um ciclo de imagens infinitas (eu passaria a vida no interior de qualquer uma delas) que não parava de me surpreender. Pensei em botar tudo num conto, mas escrever é outra forma de falar, e ninguém se interessa pelo prazer dos outros.
(Nunca esqueço a decepção que foi ler o "Livro dos Sonhos", de Jack Kerouac. São textos que não levam a imaginação pra lugar nenhum, ou melhor, que a levam sempre pra um lugar diferente daquele pro qual as frases apontam. Seu único mérito é despertar saudades de "On the Road", a obra-prima de Kerouac, este sim um verdadeiro sonho feito de palavras, que arrasta o leitor pelas cidades americanas como um ímã e o faz querer viajar e viver e se possível viver como quem viaja.)
"Foda-se a literatura", pensei enquanto calçava os tênis, e fui caminhar na praça Buenos Aires. Perambulei entre os canteiros repassando as cenas. A grama clara sob a luz do sol. Bebês e babás e mães de 30 anos. Cachorros mais limpos que alguns dos meus amigos. Uma PM negra conversando com mulheres brancas. Eu ria por dentro e talvez um pouco por fora, e houve um momento em que uma senhora de viseira de tenista me fulminou com um olhar de censura.
Na volta passei na quitanda dos portugueses e comprei uma dúzia de laranjas. Em casa, joguei tudo em cima da pia, lavei uma por uma, deixei a mais bonita no escorredor e guardei o resto numa cesta. Com uma faca, parti em quatro a laranja reservada e chupei os gomos com vontade. Adoro laranjas, mas em geral nem lembro que elas existem.
Depois tive que ir até uma agência bancária e encarar uma fila comprida. A atmosfera de frigorífico me deprimiu um pouco, mas quando voltei pra rua consegui engatar de novo no clima anterior. Desci a Augusta na direção do centro. O vale do Anhangabaú. Mendigos enrolados em cobertores e a multidão ralando por uns trocados. Deitado num banco de concreto com um chapéu de feltro fazendo as vezes de almofada, um vagabundo mazzaropiano coçava com a mão a sola do pé. Imaginei sua história, mas não cheguei a lhe dar um nome.
Às cinco da tarde parei num boteco da Liberdade e bebi shochu, a cachaça japonesa. Fiz dezenas de anotações em guardanapos que na hora me pareceram razoáveis mas que no dia seguinte foram direto pro lixo. O sonho, no entanto, levou mais alguns dias pra desaparecer.

A mostarda vagabunda - Antonio Prata

Adams Carvalho/Folhapress


Levanto o pão do x-salada, aperto o tubo de mostarda e lá de dentro escorre a decepção, gosmenta a algo translúcida, mais pro amarelo esquálido de um pintinho molhado do que pro sol a pino que 
deveria iluminar a folha de alface: poucas coisas me deixam mais triste do que uma 
mostarda vagabunda.
Mentira. Muitas coisas me deixam mais triste do que uma mostarda vagabunda. Um cientista picareta que viaja pelo Brasil, pago por fábricas de tratores e fertilizantes, dizendo a agricultores que o aquecimento global não existe; abrigos públicos onde crianças com deficiência crescem desabrigadas, sem remédios, higiene, lazer; as regras criminosas que a prefeitura estipulou para a concessão dos parques paulistanos, focando só o Ibirapuera e desobrigando a iniciativa privada a fazer qualquer investimento nas áreas da periferia; litros de leite derramados no asfalto por conta da greve dos caminhoneiros (ou das empresas de transporte?); eleições na Venezuela; guerra do tráfico; guerra na Síria —só para citar algumas (poucas) notícias da última semana.
(De uns tempos pra cá, ler o jornal virou um ato de masoquismo. Estou pensando em cancelar as minhas assinaturas e investir o dinheiro num chicotinho. Se é para me autoflagelar, chibatadas são mais eficientes e não ocupam espaço no iPad).
De fato, mostarda vagabunda não mata ninguém. Não derrete as calotas polares. Não causa migrações em massa. Não condena crianças com paralisia a uma vida terrível. Não fará com que uma idosa tropece num buraco no parque Jardim Felicidade e quebre a bacia. Mas ela é uma metonímia, um pequeno exemplo da mesma mesquinharia donde nascem também as grandes tragédias.
Veja, ninguém precisa de mostarda. A mostarda é supérflua. Por isso mesmo não há razão que justifique uma mostarda vagabunda. Um pão vagabundo mata a fome. Fazer um pão insosso e mais barato talvez seja necessário para encher a barriga de milhões. Braços e pernas trabalham com a mesma força movidos à baguete de levain ou à bisnaguinha Seven Boys. Pão é alimento para o corpo. Mostarda é alimento para a alma.
Quem rezaria para um Deus meia-boca? “Ah, sei que tem esse Deus aí que criou a luz, o mar, a terra, o céu, que soprou a vida no nariz de Adão e Eva e “Blackbird” no ouvido dos Beatles, mas prefiro meu deuzinho chinfrim, mesmo, meu deuzinho raquítico que é incapaz de tirar um coelho de uma cartola ou de assoprar “Atirei o pau no gato” no ouvido de um mendigo”. Quem almeja se apaixonar por uma pessoa feia, burra e com micose na unha do dedão? Que criança deseja se tornar um jogador perna de pau? Um cantor fanho? Ninguém. A mostarda só existe para ser saborosa. Se não é saborosa, não tem razão de existir.
Gostaria de escrever uma carta aberta ao digníssimo produtor de mostarda vagabunda repreendendo-o por sua afronta às papilas gustativas do Brasil, mas sei que a culpa não é só dele. Há uma longa cadeia envolvida no processo. Ele faz a mostarda vagabunda. A transportadora distribui (bem, não nestes dias). O supermercado vende. O dono da lanchonete compra. A gente bota no x-salada e a vida, por uns minutos, perde um pouco do sabor.
Bem pouquinho, é verdade, mas é de pouquinho em pouquinho, também, que o chão do parque racha, que as calotas derretem, que as discordâncias se transformam em guerra e que 
o mundo vai para a cucuia.

Celebridade - Luis Fernando Verissimo

Num dia de julho de 1994, eu estava num avião entre Dallas e San José, na Califórnia. A senhora sentada ao meu lado me contou que tinha uma filha que morava no Estado do Kansas. Perguntou se aquilo lá embaixo era o Kansas. Não era. Mesmo se ela pudesse distinguir sua filha da paisagem, não conseguiria vê-la. Depois, a senhora me perguntou se eu sabia por que as áreas cultivadas que víamos do alto eram redondas. Teria alguma coisa a ver com seres extraterrestres? Respondi que se devia ao método de irrigação. Entusiasmado com meu próprio desempenho nas áreas de geografia e técnica agrícola, esperei pela sua próxima pergunta e por mais uma oportunidade para impressioná-la. Infelizmente, não pude responder à pergunta seguinte. Ela tinha me visto entrar no avião com um grupo e perguntou quem éramos nós e o que estávamos fazendo naquele avião. Mesmo que conseguisse explicar que éramos jornalistas brasileiros a caminho da Califórnia para cobrir a Copa do Mundo de futebol, eu não saberia explicar como um país tão cheio de problemas como o nosso podia mandar tanta gente cobrir um evento que ela nem sabia que estava acontecendo na sua terra. Mudei de assunto*
Antes de sairmos do Brasil, eu tinha escrito algumas crônicas sobre o que nos esperava nos Estados Unidos. Escrevi, por exemplo, que o “breakfast” explicava os americanos. Que os americanos eram como eram porque não quebram o jejum, simplesmente, ao acordar. Estraçalham o jejum. Todas as conquistas americanas se deviam ao fato da sua civilização ser a primeira na história a conseguir comer ovos, bacon e panquecas com melado de manhã. Os rifles de repetição tinham ajudado, mas os verdadeiros conquistadores do oeste americano eram os grandes breakfasts. O lema do país, escrevi, poderia muito bem ser “Caloria é destino”. 
*
Mas a nossa chegada na Califórnia coincidiria com uma lição bem mais séria sobre a excepcionalidade americana. Se pouca gente no país sabia que um campeonato daquele estranho esporte chamado “soccer” iria começar dali a dias, como a minha companheira do avião, o fato tornou-se ainda mais insignificante em contraste com a grande notícia do momento: a espetacular perseguição policial do astro do futebol americano e do cinema O.J. Simpson, suspeito de matar sua ex-mulher e o amante. Quando descemos em San José, a televisão mostrava Simpson fugindo em alta velocidade pelas ruas de Los Angeles num utilitário Ford, perseguido pela polícia e sendo aplaudido pelos negros por onde passava. Quem se interessaria por Copa do Mundo com um filme daqueles se desenrolando em tempo real? 
*
Mas nós estávamos lá para cobrir a Copa. A maioria, ocupada em instalar o equipamento para a cobertura e fazer um reconhecimento do local, não se deu conta do que estava acontecendo com a perseguição e a eventual captura de O.J. Simpson – certamente a pessoa mais famosa a ser acusada de um assassinato no mundo desde que levantaram a hipótese de que Jack, o Estripador poderia ser um membro da família real inglesa. Simpson era um herói para os negros, mas não era necessariamente um herói do ressentimento racial. Casara com uma loira e transitava no mundo das celebridades brancas de Hollywood com naturalidade. Mas quando o utilitário Ford com Simpson dentro rodou pelas freeways de Los Angeles perseguido pela polícia, os negros no caminho vibravam à sua passagem e o incentivavam como se ele ainda estivesse num campo de futebol. Tudo, inclusive a tentativa de fuga, indicava que Simpson era culpado, mas o mais importante era que ali estava um afro-americano fazendo a polícia dos brancos correr atrás dele. 
*
O.J. Simpson acabou sendo absolvido, mas pouca gente acredita que ele era inocente dos assassinatos. Talvez tenha matado a ex-mulher e o namorado dela levado pela certeza de que sua celebridade de certa maneira o protegeria e o eximiria de suspeita. A celebridade tornou-se um valor independente nos Estados Unidos, o centro do seu próprio universo moral. Seu valor é definido pela cotação no mercado. Nada é tão rentável nos Estados Unidos quanto a celebridade, e tanto faz a celebridade se dever à invenção de uma nova vacina ou à castração de um marido infiel. Fizeram uma lei que proíbe as pessoas de ganhar dinheiro explorando o próprio crime em livros (“Como desmembrei mamãe”) e reportagens, mas nada impede que outras pessoas envolvidas lucrem com sua proximidade ao crime. Todos os participantes do julgamento de Simpson tornaram-se celebridades, mesmo que por pouco tempo. A promotora chegou a dar palpite sobre quem deveria interpretá-la quando fizessem o filme. E Simpson, o homem que realizara, como atleta e ator, o desejo de tantos com tanta facilidade que podia se imaginar a salvo de qualquer represália, deve ter se sentido um pouco como o Gatsby de Scott Fitzgerald quando descobriu que a promessa americana de um continente aberto para os melhores sonhos de um homem, sem obstáculos de classe ou preconceito, era uma armadilha. A celebridade lhe garantiu uma defesa de primeira classe e a absolvição, mas a celebridade não o suspendeu acima do bem e do mal. E embora ele pensasse que tivesse atravessado a fenda que separa americanos de afro-americanos desde sempre, a celebridade não impediu que seu caso se transformasse, no fim, em negros contra brancos. Como sempre.
*
Minha companheira do avião, para se redimir de conhecer tão pouco o Brasil, disse que gostava muito do Julio Iglesias.

sábado, 26 de maio de 2018

O mestre vive - Sérgio Augusto

Num dos muros da Universidade de Bolonha, na Itália, alguém grafitou a seguinte frase: “Antonio Candido vive”. Em letras lilases. Roberto Vecchi, professor italiano que ensina literatura brasileira naquela universidade, só viu a pichação no início do mês. E sentiu-se orgulhoso, pois desconfia que o pichador seja um de seus alunos; ou “uma aluna, pelo tipo de escrita”, quem sabe a mesma que há dias apareceu na aula com um “Antonio Candido vive” tatuado no gesso de seu braço fraturado.
Volta e meia citado e reverenciado em cursos e palestras sobre literatura brasileira no exterior, Antonio Candido sempre foi muito querido pelos pupilos do prof. Vecchi. “É bonito quando os alunos percebem algo de profundo que vai além da própria aula de quem leciona”, comentou Vecchi num e-mail para Claudiney Ferreira, responsável pelo Ocupação Antonio Candido, evento que o Itaú Cultural inaugurou esta semana em homenagem ao nosso maior crítico literário, cujo centenário se comemora daqui a exatos 60 dias.
O que terá motivado a pichação? Um ano da morte do professor, ocorrida em maio do ano passado, ou seu próximo centenário? É de se supor que alunos e professores de outros departamentos tenham reagido ao grafite com a mesma perplexidade despertada pelo enigmático “Kilroy was here” (Kilroy passou por aqui), pichado à sorrelfa e por mãos misteriosas nos mais disparatados locais, durante a 2.ª Guerra Mundial. 
Nunca se soube ao certo quem foi Kilroy. Já Antonio Candido, não há, no universo literário, quem o desconheça, ao menos de nome e reputação. Vivo ele, sem dúvida, continua, perenizado por seus livros e os cursos universitários que, aqui e lá fora, se inspiram em seus sábios ensinamentos. 
Não tive a sorte nem a honra de privar da amizade do professor, embora compartilhássemos um bocado de amigos comuns, a começar por suas filhas, em especial a designer e editora Ana Luísa Escorel, autora das capas de dois livros meus, e seu genro, o cineasta Eduardo Escorel. A bem dizer, mal conheci o professor pessoalmente. Mas ele, de uma feita, me serviu de porteiro.
Quando a ensaísta Gilda Mello e Souza, mulher de Antonio Candido, lançou O Espírito das Roupas: A Moda no Século 19, em abril de 1987, fui entrevistá-la para a Folha de S. Paulo, num apartamento vizinho ao de Ana Luísa, no bairro carioca do Jardim Botânico. O prédio em que o casal Mello e Souza passava sua habitual temporada no Rio não tinha porteiro à tarde. De modo que, ao chegar, apertei a campainha do interfone, e uma voz masculina atendeu: “Um momento, que vou descer pra abrir a porta”. Em menos de um minuto, a tal voz desceu e me fez entrar. Entre surpreso e embevecido, cumprimentei o professor; pensei em dizer-lhe o quanto o admirava, que aquela era mais uma porta que ele abria para mim, mas fiquei mudo, limitando-me a apreciar sua inabalável elegância. Como era chique Antonio Candido.
Quase 20 anos mais tarde, empenhado em montar uma imaginária equipe de futebol integrada, exclusivamente, por intelectuais botafoguenses, procurei-o para confirmar se em seu coração de fato batia um coração alvinegro. Batia; fruto de uma antiga simpatia pelo bairro onde o clube da estrela solitária nasceu e glorificou-se. E foi assim que o professor acabou fechando o ataque do meu time-cabeça do Botafogo, ao lado de Glauber Rocha, Otto Lara Resende, Luis Fernando Verissimo e Ivan Lessa.
A descoberta da pichação em Bolonha coincidiu com um curso do professor Vecchi sobre o ensaio Esquema de Machado de Assis, que foi um texto originalmente lido na Universidade da Flórida (em Gainesville) e na Universidade do Wisconsin (Madison), há exatos 50 anos, e publicado pela primeira vez na coletânea Vários Escritos (Editora Duas Cidades). 
É um inventário modelar da superioridade e modernidade literárias de Machado e dos equívocos e acertos de seus exegetas. Antonio Candido privilegia, com razão, o estudo de seu antigo mestre Roger Bastide, dos primeiros a espanar a suspeita de que Machado não era autenticamente brasileiro, que olhava o Brasil à distância, mais parecia um ironista francês, cego às entranhas do País e labéus que tais. Bastide o considerava o “mais brasileiro” de nossos escritores, mais até que Euclides da Cunha (“ornamental para inglês ver”), pois Machado, resume Antonio Candido, “dava universalidade ao seu país pela exploração, em nosso contexto, dos temas essenciais.” 
Toda vez que Glauber Rocha nos (ou a mim, ao menos) aborrecia com suas verrinas contra Machado, em conversas, entrevistas e até por escrito (“Machado é uma merda... um escritor reacionário”), eu lhe recomendava a leitura do ensaio de Antonio Candido. Se afinal o leu, não se convenceu. Embora, para espanto de muitos, tenha cogitado filmar Memórias Póstumas de Brás Cubas, dois anos antes de morrer avisou à praça que desistira da empreitada. “Na terceira leitura, tive a confirmação do que já suspeitava: Machado é um escritor reacionário”, desabafou numa carta de 1979, reiterando sua preferência não por Euclides, mas por José de Alencar. 
Não precisei reler Machado para me convencer do contrário. 
De todo modo, apesar de morto, Brás Cubas vive. Como Glauber. E como Antonio Candido. 

sexta-feira, 25 de maio de 2018

Oi, vocês têm H3N2? - Tati Bernardi



O reclame com batidas eletrônicas e um robô em 4D espirrando pixels mexeu demais com aquele senhor. Correu para o shopping. O amontoado de gente, apesar da desculpa “Promoção de Dia das Mães”, só poderia estar na loja pelo mesmo motivo que ele: nada melhor do que uma multidão enclausurada para adquirir o vírus recém-anunciado.
“Oi, vocês têm H3N2”? O vendedor não entendeu e chamou o gerente. O gerente, precisando bater metas nem que fosse enganando maluco, ainda tentou convencê-lo a comprar um fone de ouvido que anula “as vozes”, um carregador “com fio bem comprido” ou uma capinha de celular que imita a caixa do Rivotril.
Cansado de ser enrolado, o senhor se irritou. Falava alto. “Vocês têm ou não H3N2”? Casais se cutucavam, crianças sentavam para assistir, uma vlogueira desconhecida filmou tudo. O segurança, que estava com pigarro catarrento, nem precisou chegar muito perto para acabar com a festa, o senhor já logo entendeu que só tinham o modelo antigo e se acalmou: a nova versão vem com tosse seca.
Desde que um gênio de camiseta preta e calça jeans anunciou a primeira influenza, os fãs nunca mais conseguiram parar. A, B, 1, 2, 3, H, N, porco, ave, asiática, australiana. Até onde a humanidade iria para se sentir parte integrante da própria humanidade?
Pensou que talvez fosse muito velho para exibir uma H3N2, talvez o preço a pagar fosse altíssimo, talvez tivesse que pedir ajudar aos mais jovens. Dane-se, ele estava obcecado e realizaria esse desejo nem que fosse o último.
Leu no jornal que, nos EUA, os mais insalubres acordaram cedo e fizeram fila na porta. Queriam ser os primeiros. Em alguns países da Europa e da Ásia, a novidade também tinha se transformado em uma grande febre.
Quem não tinha condições de adquirir os lançamentos, vinha com aquele papo de “Ah, mas da H2N2 pra H3N2 mudou o quê? Calafrios a um simples toque? Piriri dual chip? Download de golfo com maior velocidade? Não percebe que isso é tudo manipulação dos laboratórios para ganhar mais dinheiro? O carregador da moléstia antiga não serve na nova só pra ferrar com os trouxas!”. Mas o senhor não estava nem aí, o importante era ser um vencedor e, no Brasil, isso obviamente está relacionado a ter o que acabou de vir de fora.
Imagina chegar no trabalho com armazenamentos de influenzas passadas e ver a mesa ao lado vazia? Justo seu melhor amigo (e também maior concorrente) internado, ostentando a última geração? E ele lá, ainda apegado ao surto de H1N1, sem ter com quem conversar, ostracizado pelas pessoas, com o mesmo respeito condescendente que temos pelos coitados que usam celular Samsung?
A esquerda irá acusá-lo de capitalista, a direita dirá que ele nada mais é do que um simpatizante das massas, mas aqui vai seu grande trauma: ter se vacinado em 2010. A aviária tomou toda a cidade naquele ano. Nos restaurantes, andando nas ruas, desatentos para sair com o carro quando o sinal abria, todos estavam com as mãos ocupadas enviando mucos, atendendo tosses, mandando espirros. Ele, saudável, se sentia pelado ao sair de casa. Procurava nos bolsos e nadinha. Saia livre, sem lenço e sem documento do plano médico. Aquela bochecha corada era a prova bastante viva de sua solidão.
Parece que essa última versão vem com a selfie perfeita: o nariz é mais vermelho, a olheira é mais cinza, a palidez é #semfiltro. O espaço e a agilidade para “baixar’” a imunidade também aumentou consideravelmente. O problema é que ele procurava, procurava e nada de encontrar.
Ontem, no Jornal Nacional, a repórter informou que a H3N2 ainda não existe no Brasil. Muito se fala, muito se teme, mas é tudo fake news. Este país é mesmo atrasado.

Latindo para os pneus - Diana Lichtenstein Corso

Quem anda por estradas poeirentas do interior está acostumado com o assédio da cachorrada sobre carros e motos. Sozinhos ou em bandos, eles saem latindo atrás do veículo. Um inimigo que deve ser custodiado pelos batedores de quatro patas, em clima ameaçador, até sair do território deles. As rodas, por estarem na altura dos vigias e movimentarem-se visivelmente, polarizam a atenção e são alvo dos latidos.
Evocando esse cenário, uma amiga alcunhou uma frase que julga representar seu estilo de lidar com os próprios desejos: “Sou como cachorro com pneu. Quando o carro para, não sei o que fazer com ele”. É uma boa imagem, em vários sentidos.
Conseguir parar o veículo é sinal de poder por parte do animal guardião. É como se, “assustado”, o invasor tivesse ficado paralisado. As cobiçadas rodas ficam à disposição, poderiam ser mordidas. Porém, imóveis elas deixam de fazer sentido. É difícil morder uma roda, dura e grande para sua boca. Mal ou bem, o interesse pela roda era somente um mero representante do jogo de forças: o objetivo era uma disputa de território e prestígio. Claro, estamos aqui cometendo liberdades poéticas, metáforas caninas.
Tentamos ser menos bobos do que os cães, latir para as coisas certas, ser menos irracionais, não avaliar mal a ameaça e gastar energia à toa. Mas volta e meia nos parecemos a eles. Quando escolhemos um objeto de cobiça, pode ser algo ou alguém que queremos, agimos tão convencidos da tarefa como o exemplo acima. No momento de alcançar a graça pela qual tanto lutamos, em geral não sabemos o que fazer, ficamos olhando para nosso pneu, confusos.
Minha amiga tem razão, e está mais acompanhada do que pensa. Um amor conquistado parece muito menos atraente, emocionante ou interessante. Às vezes, não acreditamos e rejeitamos por antecipação aquele que julgamos vai se desiludir de nós. Uma posição de prestígio, atingida por méritos, pode ser mal utilizada ou mesmo recusada, porque imaginamos que aquele lugar idealizado só poderia ser ocupado por alguém melhor do que nós. Levante a mão aquele que não se julgar uma fraude.
Algo adquirido com esforço parece menor do que no catálogo. Uma viagem muito planejada sempre tem aquele momento “o que estou fazendo aqui”. Enfim, é mais fácil lidar com o fracasso do que com o sucesso, pois, pelo jeito, a melhor parte é continuar querendo.
A satisfação de um desejo nos obriga a renegociar nossos objetivos e autoimagem. Sentir-se incompleto e desvalido é reconfortante, podemos imaginar um mundo idealizado dos ricos e famosos, colocá-los no altar de nossos ideais e ficar cultuando, rezando lamúrias.
Como esses cachorros, na verdade esperamos que o pneu continue rodando para além da nossa jurisdição. Assim podemos seguir vivendo, embalados pelo que quería- mos, o que seríamos, empanturrados de “se”. A maior tarefa, porém, consiste em descobrir o que fazer com o pneu. E em nome do que continuar correndo depois disso. Eis a verdadeira valentia.

quinta-feira, 24 de maio de 2018

Um machado, comida pra gato - Antonio Prata


Por vinte anos, trabalhei em casa: me trancava no escritório e, escondido de mim mesmo – ou das tentações que poderiam me afastar de mim mesmo, como a televisão, o telefone, a geladeira –, escrevia o que tinha que escrever. Com dois filhos, porém, o meio de campo embolou um pouco e acabei alugando uma sala comercial, na rua de baixo, em cima de um petshop. Poderia falar maravilhas da minha sala comercial: a paz, o silêncio, a concentração monástica que alcanço sem filhos, vizinhos ou internet. Hoje, porém, quero falar do petshop, no térreo.
Não tenho cachorro, gato ou periquito. Os bichos que entram lá em casa são todos do tipo que se trata com Baygon ou – glória ao Senhor! – raquetinha elétrica. Daí resulta que, todo dia – e pela primeira vez na vida – passo por uma loja onde não há nada, absolutamente nada que eu queira comprar.
Note que eu digo “queira comprar” e não “vá comprar”, pois meu consumismo é de natureza meramente contemplativa. Acho que sou um voyeur. Olho encartes publicitários nos jornais e faço compras mentais. Três quilos de bacalhau da Noruega. Um fogão de seis bocas. Um Land Rover, em 160 vezes, sem juros. São pequenos devaneios, no meio da tarde, sem nenhum compromisso com a realidade. É como se apaixonar pela voz de uma cantora, no rádio, parado num sinal. Depois a música acaba, o trânsito anda, a paixão se esfuma.
Digamos que eu vá numa dessas enormes lojas de construção pra comprar, sei lá, mãos francesas. Num corredor, me deparo com um machado. Meus olhos brilham. Um machado de verdade! Cabo de madeira, lâmina vermelha com fio metálico, como nos desenhos animados da minha infância. Custa duzentos reais. Eu tenho duzentos reais. Eu não tenho um machado. O que eu faria com um machado? Sei lá. Vai que cai uma árvore, na minha rua? Vai que pega fogo na casa da vizinha e ela, apavorada, não consegue abrir a porta? Me vejo correndo pela rua, todo Bruce Willys. Me vejo sendo carregado pelo povo, sob aplausos, e dando entrevistas pra televisão.
Ando mais um pouco, chego na seção de cordas. Há cordas de cânhamo, como as de um navio pirata, cordas coloridas, como as de um alpinista. Quero levar trinta metros dessa. Quarenta daquela. Cinquenta da outra. Tento justificar meu desejo: deve haver alguma coisa na minha casa que precise ser amarrada. Não, não há. Vou deixar no carro, então. Tenho certeza de que algum dia me depararei com uma situação em que as cordas serão fundamentais. Não, não tenho certeza nenhuma. Desisto das cordas.
Faz uns anos, quebrei o pé. Na loja de produtos ortopédicos, enquanto esperava o vendedor me trazer as muletas, me flagrei, atento, decidindo entre diferentes próteses de quadril. “A vermelha parece mais sólida. Mas a azul, bom, a azul talvez seja mais leve...”.
Já comprei, mentalmente, jatos executivos, cubas pra pia, blocos de mármore, canos de cobre, pés de cabra e moinhos eólicos. No petshop aqui embaixo, contudo, nada me interessa. Todo dia, vejo com o canto dos olhos as embalagens coloridas e sinto um vazio no peito. Whiskas sabor legumes, focinheiras, jaulinhas de plástico, para levar bichos no avião. Não tenho cachorro, gato ou periquito. Talvez, um dia, compre um machado.

segunda-feira, 21 de maio de 2018

Parados no tempo - Cristovão Tezza

Vânia Medeiros/Folhapress

Assim que me tornei professor da Universidade Federal de Santa Catarina, em meados dos anos 1980, deflagrou-se uma greve, a primeira que vi de perto e que foi uma das mais longas de todas, contra o governo Figueiredo em seus estertores.
Lembro da emoção quase revolucionária daquele momento iniciático. De manhã, professor calouro, eu ia entusiasmado colar cartazes e fazer ponto nas esquinas, gritando palavras de ordem e pedindo dinheiro para o fundo de greve; à tarde, aproveitava o tempo ocioso mas precioso da greve interminável para escrever o romance "Aventuras Provisórias", refugiado numa casa da lagoa da Conceição, como se eu ainda fosse um jovem alternativo dos anos 1970.
A ditadura chegava ao fim, e a resistência da universidade pública ganhava uma aura sagrada frente aos "gorilas" no poder. O modelo atual da universidade, paradoxalmente, se consolidou durante a ditadura —ninguém foi mais estatizante do que os generais no governo.
O problema era salário, diante da inflação devoradora. Mas com a correção monetária, que pagava juros diários estratosféricos a quem tivesse conta em banco, ampliava-se mais ainda a nossa clássica separação entre ricos e pobres, à custa do dinheiro do Estado —isto é, de todos.
O funcionalismo federal pairava, soberano, sobre a média nacional, contando também com privilégios (como a aposentadoria especial) que não existiam em nenhum outro país do mundo e cuja manutenção a longo prazo —todos sempre souberam disso— era inviável. No entanto, foi durante décadas defendida com unhas e dentes.
Além disso, havia a luta, enfim vitoriosa, pela democratização das instâncias de poder da universidade, com eleições para reitor e cargos de chefia.
Em algumas instituições, até secretários de departamentos eram eleitos. Assim, popular, democrática e generosa, a universidade se tornou uma espécie de arquipélago da utopia, espalhado pelo país.
Ela parecia, em si, realizar o sonho milenar de uma sociedade, cristã ou marxista, mais justa e igualitária: entre seus muros, de cada um segundo sua capacidade, cada vez menor; e a cada um segundo sua necessidade, cada vez maior.
Nossa universidade cresceu como um espelho do Estado, com quem parece disputar o poder, como uma instituição atavicamente lutando à sombra de uma ditadura que não existe mais.
Da UFSC, fui para a UFPR, onde lecionei durante 20 anos, até me demitir em 2009, quando coloquei as fichas da minha vida na literatura. É claro que o período acadêmico me marcou.
Primeiro, pela percepção óbvia de que o melhor da inteligência e da ciência brasileira ainda está predominantemente na universidade pública, e é crucial proteger os seus centros de excelência, em especial num país em que a maior parte da voraz iniciativa privada na área apenas suga os generosos subsídios de Estado sem dar a mínima qualidade em troca.
Segundo, pela percepção concomitante de sua decadência e asfixiante incapacidade de transformação. As "conquistas da luta", como repete o clichê, passaram do fundamental contraponto ético à ditadura, à manutenção de uma paralisia intelectual. Afundou-se num gigantismo burocrático; enquanto isso, submetida a um truculento cercado sindical e político, sua inteligência sobrevive acuada, respirando pouco e mal.
Durante a maior regressão econômica do país em sua história, multiplicaram-se universidades precárias, que, pela lei elementar da termodinâmica econômica, consomem os recursos do sistema achatando cada vez mais a qualidade média, sob o bordão populista do "pobre na universidade".
Na outra ponta, a relevante, todos os anos milhões de jovens entre 15 e 17 anos são despejados para fora da escola sem terem aprendido nada. É exatamente no ensino fundamental e médio públicos que se concentra o gigantesco desastre educacional, há décadas patinando em índices vergonhosos.
Nosso histórico deficit educacional público, típico de um país rural, mudou de perfil nos anos 1970, fazendo coincidir a rápida expansão do sistema durante a ditadura (no processo de urbanização selvagem que se seguiu), com a fuga da então próspera classe média do sistema público para o sistema privado —uma rápida mudança que criou o triste Brasil de hoje, potencialmente mais desigual a cada ano. Gostamos de repetir mantras como "o petróleo é nosso", enquanto a educação fundamental prossegue, desde sempre, um preciosíssimo capital cultural inacessível a milhões de jovens.

Um brinde às inimigas - Manuela Cantuária

  Duas amigas em uma mesa de bar. Uma delas ergue seu copo. "Um brinde às inimigas, que elas tenham saúde em dobro para aplaudir nosso ...