domingo, 27 de maio de 2018

Supérfluo e indispensável - Gregorio Duvivier

ilustração para a coluna de Gregório Duvivier - Catarina Bessel

Desculpa, não tava prestando atenção. Tava aqui pensando em como seria lindo o metrô do Rio. Já pensei onde ficaria cada estação. Precisaria de sete linhas, não mais do que isso. E os bondes, também. Não to falando de VLT, mas de bonde mesmo. Subindo e descendo o morro. Outro dia sonhei com a estação Cosme Velho. Acho que ficar adulto é substituir pornografia por linhas ferroviárias.
Desculpa, não tava prestando atenção. Tava aqui relativizando mentalmente a criminalização de uma palavra por motivos etimológicos. Proibiram mulata porque vem de mula. A etimologia não deveria ser o bastante pra banir palavras. A palavra "baunilha" tem a mesma origem que "vagina", porque ambas têm um formato parecido. A palavra rapaz vem de "rapina" e significa originalmente "ladrão". A palavra não tem carga genética. Ela é o que a gente quiser que ela seja.
Desculpa, não tava prestando atenção, tava aqui pensando que hoje em dia todo o mundo tem barba. Olha à sua volta. Barba, barba, a não ser que você esteja num culto ou no Exército. Na minha infância, todo barbudo era um outsider. Só tinham barba os mendigos e o Enéas. O próprio Lula nunca disse que era de esquerda. Talvez fosse a barba que desse a impressão. Será que soltam ele se ele tirar a barba? Será que percebem finalmente que a discordância era estética, e não ética?
Desculpa, não tava prestando atenção, tava aqui pensando que ator não pode fazer greve. Ninguém se importaria com a nossa greve. Imagina se todos nós abandonássemos o teatro, em protesto contra o abandono do teatro. Não faria sentido. Às vezes tem um louco que propõe: "Vamos interromper todos os espetáculos em cartaz pra que eles percebam que sem cultura eles não vivem!". Só que vivem, sim. Sem cultura "eles" vivem a mesma vida que estavam vivendo antes. A ausência da nossa profissão não mata ninguém. A presença torna a vida de poucos um pouquinho melhor. Mas só.
Desculpa, não tava prestando atenção, tava pensando que é triste isso de ser supérfluo. Ao mesmo tempo, tudo o que faz a vida valer a pena é supérfluo. O gosto da comida, o sexo, o futebol. Que bom ser supérfluo. Tudo o que é indispensável, em contrapartida, é um saco.
Desculpa, não tava prestando atenção, tava aqui pensando que eu não entendo nada de caminhão, e menos ainda de combustível, e menos ainda de PIS e Cofins, e lembrei do Pessoa, "não entendo nada, nunca entenderei nada, à parte isso, apoio em mim todas as greves do mundo".

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