segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Latir, latir, latir - Antonio Prata

 


Mais do que o cheiro da chuva no quintal, o ipê amarelo do vizinho ou as maritacas na amoreira, o que me pegou ao mudar para uma casa foram os sons da vizinhança. Uma porta range. Uma panela de pressão apita. Um bebê chora. Alguém varrendo às vezes lembra um afoxé endiabrado num baião do Gil, outras a vassourinha langorosa num jazz do Chet Baker. Pios, claro, sempre —se é verdade que os pássaros produzem sons para atrair parceiros, a vida deles é um Tinder ininterrupto. Todo domingo de manhã uma pessoa estuda tuba. Está na mesma lição desde maio, mas não me incomodo, pelo contrário: os sofridos fom fum fem fam fum me reafirmam que a vida segue, que apesar dos pesares, a poucas dezenas de metros da minha janela alguém se dedica a algo que não tem nada a ver com mentiras, queimadas, fuzis.

 

Os sons que mais me interessam nesta nova vida ao rés do chão, no entanto, não vêm de humanos: são os latidos. Eu diria que estou cercado por uma matilha, pois embora estejam separados por muros e talvez não se conheçam pessoalmente, fica evidente pelos latidos a intimidade da turma. Tô aqui trabalhando, de repente um puxa o coro e todos seguem, empolgadaços, numa conference-call. Latem, latem, latem, como se não houvesse amanhã, aí a coisa vai esfriando, arrefecendo e voltam todos para seus silenciosos afazeres.

 

As pautas mudam. Há momentos em que a indignação é patente: um salsicha lá da ponta do quarteirão começa a ganir bravíssimo para —quem sabe?— um carteiro e todos o acompanham, solidários. É o panelaço deles. Posso ouvir por entre as rosnadas: #FORACARTEIRO, #VOUMORDERSEDEX #XIXINACONTADELUZ. Outras vezes eles parecem estar se divertindo. Como se um latisse “Vai, Curintchaaaa!” e os outros seguissem com “El el el, bulldog da Fiel!”, “Aqui é vira-lata, porraaaa!”.

 

Ontem eu estava lendo “O corpo encantado das ruas”, do grande Luiz Antonio Simas. Fluente na língua dos homens e dos deuses, passeando entre a Gamboa e o Daomé, o historiador falava sobre as muitas entidades que moram nas ruas da cidade. Exu, Zé Pilintra, Legba: “inimigo do conforto, vez por outra desarticula tudo para estabelecer a necessidade de fundar a experiência em bases diferentes”. Eram umas duas da manhã, eu lia sobre tais deuses que fomentam a vida bagunçando os coretos e a cachorrada começou a uivar, como lobos pra lua num desenho animado. “Ó eles aí!”, pensei na hora. Exu em prédio não deve dar conta do serviço. Um só pra vinte, quarenta apartamentos. Dilui. Em casa, os ouvimos com mais clareza.

 

Antes, eu não via muita graça em cachorro. Achava-os de uma fidelidade, perdão, canina. Puxa-sacos de uma espécie que, convenhamos, não merece respeito. Mas quando eles começam a latir em uníssono às duas da manhã, mandando às favas a submissão, lembram-me mais uma turma de skatistas, uns punks, uns Novos Baianos, uns Monty Pythons. Com a cachorrada não tem lei do Psiu, criança dormindo, manhã, tarde, noite, doutor, madame ou general. Se não são os cachorros também entidades encantadas das ruas, meu caro Simas, certamente têm parte com.

 

Eu nunca tive cachorro. Na infância, meus pais não deixaram, depois de adulto eu é que não quis –já basta alimentar, lavar, e limpar a mim mesmo e a duas crianças. Agora, no meio desta madrugada interminável, minha vontade não é nem de comprar um cachorro, mas de me juntar a eles: sair no quintal e latir, latir, latir, como se não houvesse amanhã. Até porque, pelo andar da carruagem, talvez não haja.

Ilustração:  Adams Carvalho




domingo, 22 de agosto de 2021

Papai, por que você não é hippie? – Antonio Prata

 

Após dois anos quase sem sair de casa, seis anos depois de vir ao mundo, no fim de uma trilha em Ubatuba, meu filho viu pela primeira vez um hippie. Era um hippie de quadrinho do Crumb: pele curtida pelo sol, tatuagens, dreads trabalhados na parafina, regata tie dye, chinelão de couro, brinco de pena, “símbalo da paz dependurado no pescoço”, como diria outro bicho-grilo, uma canga com bijuterias, maricas de bambu e duendes de Durepoxi.

 

Depois dos dinossauros, o que mais interessa ao Dani é pedra. Tem sacos cheios de pequenas rochas colhidas em todos os lugares que já visitamos, da brita da obra da esquina ao quartzito dos Andes —e eu só sei o que é um “quartzito” porque ele pediu de aniversário um livro sobre pedras, que lemos noite após noite, desde fevereiro. E o que o hippie tem na canga? Bijuterias feitas com jaspe verde, vermelha, turmalina, ágata, selenita, olho de tigre —paro por aqui, pois já tô abusando do “Pequeno Livro das Rochas e Minerais”.

 

Embasbacado, meu filho encara o hippie. Sabia da existência de maestros e palhaços, esquimós e astronautas, freiras e corcundas, mas aquele, de fato, é um tipo muito particular, meio xamã, meio medusa, saído de algum desenho animado japonês situado num futuro tribal pós-apocalíptico. Parece do mal, mas é do bem —e tem a coleção de pedras mais sensacional já vista em seis anos sobre a Terra.

 

No carro, depois de me convencer a comprar um colar para a mãe, Dani me pergunta: “Aquele homem é o quê?” “Um hippie.” “O que é um hippie?” É mais fácil responder sobre rochas sedimentares, mas vamos lá: “Hippie é um tipo de pessoa cabeluda que gosta muito da natureza, é contra emprego, acha que todo mundo deveria namorar um monte de gente, sem casar, veste roupas confortáveis, chinelo, jamais terno e gravata, gosta de música e tem um lema: paz e amor”. “Eles são um povo?” “Não, são um estilo de vida. O cara, tipo, resolve ser hippie e vira hippie.”

 

“Tem que estudar pra ser hippie?”. “Não. Quer dizer, tudo na vida, pra fazer direito, tem que estudar. Pra ser um hippie bom mesmo tem que ler vários livros, ouvir muitas músicas, aprender a fazer artesanato, dread, tocar algum instrumento. Mas não tem, tipo, escola pra hippie.”

 

Vejo pelo retrovisor a curiosidade sendo engolfada pela indignação: “Papai, por que você não é hippie?!”. Com ciúmes, na defensiva, digo que sou um pouco hippie, que tenho muitos discos e livros de hippie, que na adolescência eu tinha um cabelão comprido e tocava bongô, mas não vou muito longe: “Você não é nada hippie, papai! Você raspa seu cabelo e a barba com máquina, trabalha muito no seu emprego, é casado com a mamãe, usou terno e gravata no casamento da tia Maria e quando você fica bravo com a gente não é nada disso aí de amor e paz”.

 

Derrotado, balbucio que as coisas não são tão simples. Que se eu fosse hippie não teria dinheiro pra pagar escola nem pra comprar dinossauro de brinquedo, que namorar todo mundo é trabalhoso e solitário, que tem outras formas de lutar pela paz e o amor, mas vejo no olhar do meu filho que, comparado à figura áurea que ele acaba de conhecer, meu hippismo é puro ouro de tolo (pirita ou dissulfeto de ferro, não que alguém tenha perguntado).

 

“Eu vou ser hippie”, declara o Daniel. Então levanta a camiseta, infla a barriga e encara a tatuagem, quer dizer, o decalque encarquilhado que dias antes havia sido um tiranossauro rex verde limão. “Já é um começo”, digo, ao que ele me responde com orgulho e desdém: “Eu sei".

 

Ilustração de Adams Carvalho




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  Duas amigas em uma mesa de bar. Uma delas ergue seu copo. "Um brinde às inimigas, que elas tenham saúde em dobro para aplaudir nosso ...