quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

A cartomante - Mário Corso

Minha amiga foi taxativa: - Te imploro, não vai nesta cartomante.

Mas, rebati, você não disse que ela conta a verdade? - Sim, mas é uma verdade que não é bom saber.

Carla não era a única a me desencorajar. A irmã dela nem conseguia falar da consulta. Um mutismo desanimado lhe invadia o semblante e dali não escapava palavra. Só admitia que algo especial ocorreu.

Era uma cartomante diferente. No boato, apenas uma carta seria aberta e desta única viria a revelação sobre nossa vida. Soava disparatado e, talvez por isso, atraente. Carla me fez jurar pela saúde da minha mãe que ficaria longe da bruxa. O juramento foi fajuto. Desculpa, mãe! A curiosidade me corroeu e fui procurar a misteriosa Dona Cora.

O endereço era no fim da Protásio. Um lugar tão distante, que tive a impressão de ter saído de Porto Alegre. Encontrei o número num prédio residencial que parecia não ter sido acabado. O apartamento minúsculo era ainda mais precário. Pouca iluminação, paredes nuas e móveis velhos arrematavam o ar de desleixo do conjunto.

Esperava uma cigana de olhos verdes magnéticos e cabelos negros escorridos. Mas Dona Cora era uma senhora simples. Sabe essas tantas pessoas pelas quais passamos na rua e nem notamos? Trajava um vestido desbotado onde no passado houve um azul.

Sentou-se na minha frente e pediu que escolhesse uma carta do baralho aberto em leque em cima da mesa branca de plástico.

Retirei e virei. Veio um seis de paus.

- Você é um seis de paus.

Sim, e daí? Perguntei.

- É só isso, você é um seis de paus. Este é seu tamanho e seu lugar no mundo. Antes que a noite chegue, vai entender.

Durante essa fala, pegou nas minhas duas mãos e me olhou com força. Levei um choque. Uma parte de mim sentia-se idiota ouvindo besteiras de uma charlatã. Outra tinha medo e espanto. Paguei e saí como quem foge.

No ônibus de volta, uma sensação ruim agarrava meu peito. A frase dita soava absurda. Por que não reagi? Por que aceitei pagar? Como assim ser como uma carta de baralho? Aquela vaca é que é um seis de paus! Não eu.

Enquanto cruzava Petrópolis, uma ideia foi se formando. Veio a lembrança da minha mãe, uma costureira de pequenas causas que sofre por não conseguir ter seu próprio negócio. Depois, recordei meu pai, que levou a vida fazendo biscates. Morreu pobre até de sonhos.

Com tristeza, percebia um sentido diferente em tudo. Vislumbrei a lógica oculta no baralho. Há uma hierarquia de números e dos naipes, e um simbolismo em cada carta. A pluralidade da sociedade está nelas.

O baralho fascina por não ser uma invenção arbitrária, é um reflexo da lógica da sociedade. Os naipes são os arquétipos essenciais da condição humana. Os números revelam a intensidade de nosso talento, a força com que nos agarramos ao destino.

A cartomante me fez entender onde me encaixo no rio da existência. Meu lugar por agora é insignificante e as marcas que deixarei no mundo serão mínimas. Sou um soldado raso sem chance de glória. Um peão de um imenso tabuleiro onde quem decide o jogo são os outros.

Carla tinha razão em tentar me proteger. Não há nada mais duro do que saber sem ilusões o quanto valemos. Espero, ao menos, que essa sabedoria me ajude a trocar de carta.

E você, caro leitor: qual a sua carta?

Desafio - Pedro Gonzaga

E se eu vos propusesse um desafio?


Diga qual, clamam já os afobados. E não vos critico, é um tempo de corações ligeiros, que pulsam ou necrosam à pressão de um mero polegar. De fato, uma vez enleados pelos cipós da curiosidade, ficamos pouco dispostos a conceder mais do que algumas linhas para alguém desembuchar a provocação. Eu vos entendo: se pudesse me constranger pelo que estou fazendo, eu me constrangeria.

Mas vamos ao desafio. Trata-se de voltar a nossos artistas prediletos sem cair nas generalizações que nós mesmos criamos para domá-los, em frases como me encantam os labirintos de Borges ou a profundidade do intimismo de Clarice Lispector ou, ainda, a desumanização da burocracia em Kafka. Nada disso diz nada, nada disso guarda qualquer efeito que o contato com essas obras nos tenha provocado. Chega de generalizações, voltemos a trechos desses gigantes que possam ser guardados. A beleza do detalhe, o universo no fragmento, não a universalização oca. Não o profeta Leonard Cohen, mas sim quatro versos de A Street: "A festa acabou/ mas ainda estou de pé/ espero nesta esquina/ onde antes existia uma rua". Não as finas ironias de Machado, o bruxo do Cosme Velho e outros que tais, mas "a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel, só o interesse é ativo e pródigo". E por que reduzir a poeta Wislawa Szymborska a qualquer epíteto se posso lembrar de "que me desculpe o antigo amor por tomar o novo como primeiro."

O mesmo vale para o cinema. Selecionemos uma cena para não esquecermos, depois a mostremos aos outros e a nós mesmos feito um testemunho de como essas imagens expandem o que somos, de como revelam, de um modo material, coisas que antes apenas etéreas em nós nos habitavam.

Mas se fizermos isso não pareceremos participantes de uma corrente de rede social? Que pareçamos. Desde quando o amor se aborrece com demonstrações públicas? Creio que só é realmente importante para o outro aquilo que revelo antes ser capital para mim. O resto é enxurrada de nomes, a forma mais baixa de angariar respeito de alguém. E logo vêm os adjetivos e substantivos triviais de que já falamos. Não seria melhor, em vez disso, lembrar de Michael Caine correndo um quarteirão inteiro para fingir topar casualmente numa das irmãs de Hannah? Ou lembrar de outras cenas verdadeiramente acesas quando desce o avesso das pálpebras? Eu vos desafio.

Excedente - Luis Fernando Verissimo

Os pais do Serginho não sabiam o que fazer com ele. Tinham tentado de tudo: psicologia, castigo corporal, passes, hipnose, preces esotéricas e chás tranquilizadores importados do Oriente com os quais o menino borrifava o melhor sofá da sala, quando não a cara da babá. Nada funcionava, Serginho continuava impossível. As babás se sucediam e nenhuma ficava mais de dois dias no emprego. A última tentativa fora com uma frau alemã, famosa como disciplinadora no mundo das babás, que não durara dois dias e dizem que está até hoje num asilo para recuperação da autoestima.

O pai do Serginho tomou uma decisão. Não disse nada para a mulher. Só disse que chegaria em casa com alguém que certamente conseguiria controlar o Serginho. E chegou com um senhor de aspecto respeitável, respeitáveis cabelos grisalhos e um ar, acima de tudo, de respeitável autoridade. O pai do Serginho apresentou-o à mulher:

- Este é o general Tal. - General?! - Ele vai nos ajudar a controlar o Serginho.

A conversa transcorreu normalmente. Salário não seria problema. O general aceitava ganhar o mesmo que as babás. Até menos, no caso da babá alemã, que insistia em ser paga em dólar. Tudo combinado, o general pediu para dar uma olhada "nos alojamentos". O pai do Serginho estranhou. "Alojamentos?"

- Sim. Vou me instalar aqui, eu e meus camaradas.

- Camaradas?

Naquele instante, ouviu-se a campainha da porta. A mãe do Serginho foi abrir. Eram quatro homens, todos com o mesmo aspecto respeitável do general Tal. Que os identificou, um a um. Eram todos generais. Todos aceitavam o trabalho de controlar o Serginho, por qualquer salário.

O general Tal estava sorrindo. Entendia a confusão do pai do Serginho. Era tudo uma questão de excedente mal planejado.

- Chamaram tantos generais para o novo governo, que muitos não têm o que fazer. Ficam atirados no Planalto, jogando carta, falando mal do Paulo Guedes... Assim pelo menos a gente se ocupa. Podemos cortar sua grama, fazer um churrasquinho de vez em quando, e tornar o Serginho respeitável como nós.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Escavações - Luis Fernando Verissimo

É conhecida a história dos arqueólogos que, depois de anos de escavação, descobriram o que parecia serem restos de uma civilização antiga, até então desconhecida. Estavam prestes a anunciar a descoberta que os consagraria, quando apareceu, no meio das ruínas, um paliteiro de plástico. E os arqueólogos ficaram no seguinte dilema: reconhecer que não tinham descoberto civilização desconhecida nenhuma ou revelar um fato espantoso, o de que a matéria plástica era muito mais antiga do que se supunha.
Há uma metáfora aí, em algum lugar. Seu significado talvez seja que no fim todas as sociedades são julgadas pelas suas exceções, pelos seus extremos e pelos seus detalhes, e a História e a sociologia estão sempre ameaçadas por dados incompletos.
Por exemplo: sempre se pensou que a população de Pompeia tivesse sido surpreendida pela chuva de cinzas do Vesúvio, e que a maioria morrera dormindo. Hoje se sabe que o Vesúvio entrou em erupção dias antes, tremores de terra e explosões anunciaram a catástrofe que viria e a população já abandonara a cidade condenada quando as cinzas a encobriram, para serem desencavadas anos depois.
Mas o mais impressionante em Pompeia são as estátuas dos mortos. Encheram de gesso os buracos deixados na cinza solidificada pelos cadáveres decompostos e cada espaço moldou um corpo branco, na posição em que estava na hora da sua morte.
Mas, se a maioria da população já tinha fugido das cinzas, isso significa que as tétricas estátuas brancas são de mortos excepcionais. São de céticos que duvidaram da catástrofe anunciada, curiosos que queriam ver como seria, aventureiros e megalomaníacos dispostos a desafiar a Natureza, suicidas, bêbados ou simplesmente distraídos. Enfim, são estátuas dos que ficaram.
Durante anos, todos os estudos e todas as teorias sobre Pompeia presumiram que os fantasmas conservados em gesso eram exemplos de habitantes comuns da cidade e do seu fim em comum, quando eram dos seus excêntricos. A amostragem, que incluía dos mais científicos aos mais burros, não representava a imensa gama que existia entre os dois extremos.
As novas revelações sobre o que realmente aconteceu em Pompeia naquele ano de 79 d.C. acabaram com mitos românticos, como o da suposta descoberta, sob as cinzas, de um casal abraçado, surpreendido pelas emanações do Vesúvio no ato do amor. Especulou-se muito sobre o que o casal estaria fazendo no fim, mas de uma coisa se pode ter certeza: o orgasmo, sob as cinzas ainda mornas do vulcão, foi maravilhoso.

Mal ajambrados - Antonio Prata


O problema não era nas minhas costas, disse o médico, era na nossa espécie. Então tirou da estante um velho livro de anatomia e mostrou que a coluna e o abdome humanos haviam se desenvolvido durante milhões de anos para sustentar quadrúpedes, não bípedes. Acontece que lá nas savanas da África, num dia iluminado para o intelecto e aziago para a lombar, algum ancestral conseguiu se apoiar em duas pernas, posição que lhe permitiu enxergar mais longe e ter as mãos livres para construir ferramentas, fazer cafuné e jogar joquempô.
A ereção do hominídeo impressionou muitíssimo as hominídeas do bando, que vieram todas correndo e gritando “Seus genes! Seus genes! Queremos espalhar seus genes!”, razão pela qual passamos a andar sobre duas pernas e a bufar com as mãos nas costas, per saecula saeculorum. O médico fechou o livro e me indicou um pilates.
Enquanto ergo lentamente o “core”, ao lado de mais seis ou sete entrevados bípedes que buscam, a duras penas, o fortalecimento torácico, sou tomado por um pensamento: e se, em vez de levantar, o macacão tivesse deitado? E se, em vez de passarmos de quatro para dois apoios, tivéssemos evoluído para nenhum? Ah, que futuro lindo nós perdemos! Em vez de andarmos envergados por aí, enfrentando passo a passo a inclemente gravidade, viveríamos nos arrastando ou rolando mundo afora, feito leões marinhos, feito morsas gordas e descansadas, sem jamais desconfiar que sob nosso adiposo sleeping-bag corporal haveria horrores chamados “lombar” ou “escoliose” ou “lordose” ou “hérnia de disco”.
Dizem os biólogos que o bipedalismo foi crucial para o desenvolvimento humano – e não me refiro só à pedra lascada, ao cafuné e ao joquempô. Tirar a fuça do chão e pôr os olhos no horizonte sentenciou a primazia da visão sobre o olfato, do intelecto sobre os instintos, da cultura sobre a natureza e daí pra escrevermos sonetos, inventarmos a pizza com borda recheada de Catupiry e projetarmos drones que entregam sonetos ou pizzas com borda recheada de Catupiry foi um pulo. Mas quem disse que, deitados, não poderíamos ir ainda mais longe – mesmo sem sair do lugar?
Quem sabe o que teria acontecido se, em vez de Homo erectus, depois Homo sapiens e Homo sapiens sapiens, evoluíssemos para Homo statelatus, depois para o Homo statelatus sapiens e – por que não? –, Homo statelatus sapientisimus? Sim, pois se enxergar mais longe nos deu a chance de encontrar mais comida e mais comida resultou no aumento do nosso cérebro, imagina o tamanho da nossa cachola com todas as calorias economizadas em uma existência 100% horizontal. Seríamos hoje morsas cabeçudas discutindo física quântica e James Joyce com as panças esparramadas no chão?
Não há como saber. A biologia só consegue traçar o caminho percorrido, não os infinitos labirintos genéticos que deixamos de percorrer. Me resta apenas amaldiçoar o ancestral que primeiro se ergueu, fazer mais trinta segundos de “fortalecimento de oblíquo” e três séries de “abdominais laterais sobre a bola suíça”, a fim de ajudar minha mal ajambrada verticalidade a dar com menos dor os passos que lhe restam antes que um susto, uma bala ou os vícios me ponham, definitivamente, na horizontal.

domingo, 24 de fevereiro de 2019

Os Cinnas deste mundo - Luis Fernando Verissimo

Dos personagens de Shakespeare que só entram em cena para adiantar uma trama, dizer a sua fala e desaparecer para sempre, nenhum é tão desafortunado quanto o poeta Cinna. Quando os plebeus romanos, revoltados com o assassinato de Júlio César, saem às ruas atrás de culpados para vingá-lo, encontram o poeta. Como não encontram razão para matá-lo, matam-no pelos seus maus versos.
*
Refletindo – ou re-refletindo – sobre a Revolução Francesa, Goethe declarou que preferia a injustiça à desordem. A frase foi muito repetida e continua por aí, não dita, mas implícita no ideário conservador, ou não latida, mas latente. Goethe se desencantou com as consequências da Revolução no espírito europeu, e, na sua frase, absolveu a antiga ordem, que, fosse o que fosse, era ordem. E deve ter refletido sobre a sina dos Cinnas deste mundo, condenados a estar sempre no lugar errado na hora errada, e sacrificados por nenhuma razão.
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A primeira condição para o pensamento livre é não aceitar nenhum tipo de absoluto. Tenho dito. Os intelectuais que aderiram ao comunismo sem fazer perguntas, anos atrás, não tomaram essa precaução. Os que hoje abraçam um anticomunismo anacrônico, que ignora a injustiça e prefere a ordem, e se for de quepe melhor, amam o absoluto. O anticomunismo primário que tomou o poder no Brasil é mais do que uma renúncia ao pensamento, é quase uma automutilação intelectual.
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A Revolução Francesa foi a primeira com um sistema de ideias na sua origem, o que torna difícil conciliar suas raízes no Iluminismo com o terror que veio depois. Mesmo com suas contradições, uma das coisas que a Revolução soltou pelo mundo foi a possibilidade da ação como filha da retórica, do discurso mobilizador. Se depois ela abandonou a teoria e passou a aterrorizar até os poetas, isso não diminui seu pedigree, determinado pelo que determina todas as revoluções: a necessidade de justiça contra uma ordem opressora. Ela nasceu de uma linguagem. A esquerda é descendente de uma eloquência.
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Para muita gente, subversivo foi o próprio Iluminismo, com sua sugestão de que a desigualdade não é um capricho inescapável de Deus. Inaceitável é desistir da justiça. E parar de pensar. 

Professoras - Milton Hatoum

Dois leões de pedra, no topo das extremidades do portão de ferro, são guardiães simbólicos do prédio antigo. Flores vermelhas do jambeiro ainda cobrem o piso do pátio, e os corredores laterais, largos e alpendrados, dão acesso às salas do grupo escolar onde passei a maior parte da minha infância.
As brincadeiras terminavam quando a professora aparecia entre os dois leões; ela subia lentamente a escada, e antes de entrar na sala, os alunos já estavam à espera da primeira lição da manhã.
O grupo escolar Barão do Rio Branco - hoje uma escola estadual - foi construído numa época de fausto, mas acolhia crianças de todas as classes sociais. Ainda me lembro de quatro ou cinco curumins: um deles, o Tarso, usava brilhantina nos cabelos, mas o que brilhava de verdade era o desenho caprichoso de cada letra; hoje, eu o vejo como um pequeno calígrafo que manuseava um cálamo. Tarso e sua família moravam numa palafita à beira do Igarapé de Manaus. Este e outros igarapés foram aterrados, não sei por anda Tarso, um dos alunos que atraíam a atenção da professora que nos ensinou a ler e escrever.
Ela era exigente em sala de aula e severa no trato com os bagunceiros; talvez fosse dócil com os bonzinhos, mas não me lembro de anjo, querubim ou arcanjo algum. O olhar dela era austero, às vezes terno, mas a fala e os gestos eram quase sempre pacientes: a repetição de cada explicação é um exercício de paciência. Brasília já existia, mas estava ausente no velho mapa do Brasil. E eu nem sequer desconfiava que seis anos depois iria viver na capital...
Uma noite, três décadas depois das primeiras letras, quando lançava meu primeiro romance na Biblioteca Pública de Manaus, vi uma senhora muito elegante na fila. Percebi alguma familiaridade no rosto que me olhava, mas não o reconheci no ato. A memória, essa guardiã de sentimentos íntimos, me revelou o rosto da professora Maria Luiza de Freitas Pinto.
Conversamos um pouco e assinei um livro para ela. Antes da despedida, abriu a bolsa e tirou uma folha amarelada, dobrada ao meio. Disse: “Esta é a tua primeira redação! Foi escrita no Barão do Rio Branco...”.
Olhei de relance a caligrafia, que nem de longe se comparava à de Tarso. Não li o texto: o gesto amoroso de guardar por tanto tempo palavras de uma criança prevaleceu sobre a curiosidade; sem dúvida, ela guardara textos de outros alunos num baú cheio de redações.
Revi dona Maria Luiza em 2008, quando lancei outro romance em Manaus, desta vez na Banca do Largo São Sebastião, do amigo Joaquim Melo. Ela mora ali perto, numa casa antiga e espaçosa, onde Sheila, uma parente de dona Maria Luiza, me ensinara inglês.
Em agosto do ano passado, viajei com o escritor Reinaldo Moraes e uma equipe de tevê para Manaus, onde eles iam fazer um documentário sobre o romance Cinzas do Norte e a cidade. Na calçada do mesmo grupo escolar, contei a Reinaldo lances da infância manauara, numa época em que a escola pública ainda era frequentada por crianças e jovens de todos os estratos sociais. Enquanto observava os estudantes, pensei na mulher que me alfabetizara: ela acabara de completar 100 anos.
A diretora do documentário quis entrevistá-la. Dois amigos (a jornalista Leyla Leong e o professor Ernesto Renan Freitas Pinto, sobrinhos da professora) mediaram esse encontro na casa em que Maria Luiza sempre morou. Reconheci a mobília e alguns objetos daquela época; um corredor comprido e um pouco escuro terminava numa saleta iluminada pelo sol da manhã. Com lucidez e nostalgia, a professora centenária recordou cenas e anedotas da minha infância razoavelmente feliz, interrompida em 1964, quando também foi interrompida a implantação do projeto “Escola Nova”, do grande educador baiano Anísio Teixeira, então reitor da Universidade de Brasília. Nove dias depois do golpe militar, o câmpus da UnB foi invadido pela polícia e Anísio foi demitido da reitoria. Em Brasília, no final dos anos 1960, estudei numa das escolas idealizadas por ele: um colégio de aplicação, extinto em 1971 pelo governo militar.
“Viver numa terra trágica é o mesmo que viver num tempo trágico”, escreveu Wallace Stevens. Nesta terra e neste tempo trágicos, faço mais essa modesta homenagem a uma professora da província e a um filósofo da educação, ambos igualmente importantes para tentar mitigar o atraso nesta nação fraturada, país de “mil-e-tantas misérias”, como disse um mago de Minas.



* Texto publicado No Estado de São Paulo em fevereiro de 2017

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Esperando - Roberto DaMatta

Godot? 
– Não. Esperando o Brasil.
Tem gente que morreu esperando o Brasil progredir. Eu vivi isso quando aconteceu a bossa nova, houve a inauguração de Brasília, Jorge Amado, Guimarães Rosa estavam presentes e os antropólogos da minha geração iam derrotar os poderosos e salvar os índios e os pobres. Hoje, eu cansei de esperar. 
O Brasil cansa, diz um amigo. 
Mas esperar é a esperança que não pode morrer.
*
Mas como contemplar o “Brasil” como uma coisa se nós somos parte dessa coisa? Se nós contribuímos para o seu arraso ou progresso? 
Quando falamos da sociedade, que são organismos vivos em que nascemos e, por suposto, queremos bem como pátria, nós nos dividimos. Um lado nosso fala como se fosse de fora; um outro se angustia e confunde porque faz o Brasil. Como cuspir no prato em que, bem ou mal, se come? Não é fácil discutir uma relação visceral com a terra na qual viemos ao mundo e entramos no palco da vida e, ao mesmo tempo, ficar esperando que uma “casta” fabricada e eleita por nós o “conserte”, remende ou embrulhe? 
*
Quem é mais velho não esperava testemunhar essa trágica onda de roubalheiras, de descasos, de traições, de mistificações, de irresponsabilidades e, hoje, de primitivismo. Temos uma aguda consciência de que o tempo é curto para ver crescimento, otimismo e vigor. Leio que o ajuste da Previdência levará 12 anos. Será que um cara de 80 vai viver mais 12 anos? 
*
Discernir o significado de uma espera é importante. Escravos não esperavam, inferiores esperam muito, inimigos são mal (ou jamais) atendidos e os estruturalmente fracos e marginais – os “f...” ou cidadãos em geral – simplesmente não existem. A casta de senhores engravatados, que nos governa com seus impecáveis criados e carruagens pretas, sabe que o povo deve esperar pelas proclamações e leis feitas nos palácios e palanques pelos mandões ou “supremos”. Só faltamos chamar o próprio Deus para decidir questões que o bom senso resolveria com um sentido hábil de tempo – como a questão fiscal e seus dramáticos penduricalhos que podem levar à insolvência do Brasil como nação. 
Parentes e amigos são atendidos na hora. Não entram em fila, como Alberto Junqueira e eu estudamos no livro Fila e Democracia (Rocco, 2017). Ali demonstramos que a espera, mesmo temporária, demarca inferioridade sociopolítica. O “esperar sentado” revela a distância entre os segmentos que constituem a alma do Brasil. 
*
Nos primeiros anos do cristianismo, viveu em Roma Lúcio Aneu Sêneca, filósofo e pensador. Foi tutor e conselheiro de Nero, que depois ordenou, tal como ocorreu com Sócrates, o seu suicídio. 
Ocupando muitas posições no topo do sistema político-cultural, tinha plena consciência de que todos somos um indivíduo, mas muitas pessoas. Temos muitas máscaras e ocupamos vários papéis cujas matrizes podem ser contraditórias, pois demandam lealdades diversas e decisões diferenciadas. 
Num texto célebre, Sêneca ensina uma lição:
“Duas pessoas, diz ele, se combinam num comandante: uma ele compartilha com todos os outros passageiros, porque também ele é um passageiro; a outra é peculiar a ele porque ele é o piloto. Uma tempestade o atinge como passageiro, mas não o atinge enquanto piloto”.
Entre ser presidente, médico, prefeito, professor, contador, gerente, vendedor, juiz, motorista, militar e pai, onde ficamos quando sabemos que os interesses e os fins desses papéis são, em certas circunstâncias, antagônicos? Se o aluno merece um zero, mas é meu filho, ele deve ganhar um sete? Qual é o papel que deve englobar o conflito potencial de papéis da casa e da rua nos regimes democráticos?
É uma densa ironia eleger um candidato autoproclamado republicano para vê-lo governando aristocraticamente, sendo persistentemente embaraçado por seus príncipes. Tal como os velhos caciques e raposas que ele se comprometeu solenemente a não imitar.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

México - Fabrício Corsaletti

Passaram 15 dias na Cidade do México, contam, enquanto encho de uísque um copo com gelo na cozinha da casa da nossa amiga que hoje faz 40 anos. Foram a museus, vernissages, cinemas, livrarias –e a um concerto de música clássica. Mas de todo o relato que me fazem –as comidas, as bebidas, os casais gays se beijando e abraçando e vivendo num clima de grande liberdade– o que mais me impressiona (o certo seria dizer "o que mais me comove", mas ninguém vai a festas pra se comover, só se for louco, solteiro ou pai da noiva) é essa fala do Ivan:

– Muitas vezes, de tarde, sob um sol forte, já bastante cansados, caminhando pelas ruas do centro no meio daquela confusão sonora e visual, a gente passava na frente de um bar e lá de dentro vinha alguma canção de mariachi ou coisa parecida, não manjo do assunto, de todo modo uma música vibrante, calorosa, labiríntica, uma música absurdamente brega, mas mesmo assim, ou por isso mesmo, uma música de cortar o coração de qualquer um. E eu não conseguia esquecer essa música ouvida na rua por acaso. Um trecho da melodia ou da letra ficava comigo o dia inteiro e me acompanhava a todos os lugares e até a manhã seguinte. Eu não tinha nenhum interesse por música popular mexicana, nenhum preconceito, mas nenhum interesse, e no entanto essa música inesperada e gratuita, absorvida aos pedaços, talvez tenha sido a minha lembrança inesquecível do México.
Depois discutimos Nelson Rodrigues, chegam mais convidados, a sala enche, a festa acontece, vou pegar um chope e, no caminho, converso com outros amigos. Ou melhor, tento conversar, porque as ideias não vêm, só digo obviedades sobre política e literatura e de repente o papo descamba pra reuniões de condomínio.

(Não sei mais como me comportar em festas, se é que um dia soube. Fico encanado com as pessoas passando atrás de mim, não presto atenção nas pessoas paradas na minha frente etc. etc. Prefiro bar, mesa, cadeira, poucos amigos, cada um com a sua loucura, protegidos por uma barricada de garrafas.)

À uma da manhã saio sem me despedir, mando um WhatsApp pra aniversariante refazendo nosso pacto de ternura infinita e volto pra casa a pé, escolhendo as ruas mais silenciosas. E quando respiro fundo e me concentro, ou na fração de segundo em que desisto de me concentrar –como se a memória fosse minha –, ouço a música alegre, alegre e trágica, dos mariachis.

O que os ouvidos ouvem, o coração sente - Denise Fraga


Era batata. Eu acordava, abria a porta do quarto e lá estava ele regendo sua caixa de som. Meu pai queria ser maestro. Foi contador. Nunca estudou a música que tanto ama, mas empunhava um lápis à guisa de batuta e nos acordava aos domingos de manhã comandando um poderoso Tchaikovsky nas caixas do três em um. Talvez por isso não tenha conseguido que cultivássemos nosso gosto pelo repertório clássico. Achávamos chata a música do papai. Dali a algumas horas, as caixas seriam devolvidas ao seu verdadeiro dono, o Rei Roberto, que praticamente morava ali dentro. Das caixas e do coração de minha mãe. Se separaram. Não só por suas diferenças musicais.

Eu era adolescente e meu pai passou, então, a nos buscar para passear nos fins de semana. Sem ter ideia do que poderia ser outra coisa divertida a se fazer, nos levava a óperas e concertos. Foi aí que o entendi. Na verdade, foi aí que o conheci. Ele e um pouco de Mozart, Bach, Verdi, Puccini e outros populares da música erudita. Passei a gostar do som que me acordava aos domingos e um tanto mais de meu pai. Abri meus ouvidos e a música entrou me abrindo o coração.

É um mistério, ponto. A música clássica não recruta a razão para nos tocar a alma. Narra e conta através de um alfabeto de sons e pode nos fazer chorar sem que saibamos por quê. É arte em sua forma pura.

Há uma cena linda no filme "A Vida dos Outros", em que um espião da RDA passa dias com fones de ouvido no sótão de uma casa à escuta do casal suspeito. Um clássico é colocado na vitrola e ele vai às lágrimas. Até os brutos se rendem a uma sonata de Bach. Difícil é vencer a velocidade dos dias e parar para ouvir.

Apesar de meu pai, sou menos assídua do que gostaria às salas de concerto. Resolvemos, então, fazer uma assinatura da Osesp para ordenar os encontros com nossa alma. No último concerto a que fomos, constava uma obra de Scriabin, um compositor do qual eu nunca tinha ouvido falar. Não quer dizer nada, conheço muito pouco e sempre atribuo nomes estranhos do programa à minha ignorância. Pois o tal Scriabin me pôs de volta menina, sentada de olhos arregalados na plateia, com o desconhecido a me fisgar o coração. Como dizia meu pai: há que esticar os ouvidos.

domingo, 17 de fevereiro de 2019

A mulher de César ou a moral pública - Leandro Karnal

Todas as pessoas deveriam ser honestas. Os políticos são ainda mais cobrados porque lidam com dinheiro alheio. As mulheres, alvo de fiscalização particular na nossa sociedade, deveriam ser imaculadamente éticas. A mulher do político, por fim, deve ser um cristal perfeito, transparência sem jaça e luz cristalina. Assim construímos nossos imaginários sociais: tolerantes com o jeitinho cotidiano, irritadiços com o roubo público e violentos no julgamento das mulheres. 
Dizem que a expressão sobre o cônjuge de César nasceu da segunda esposa do aclamado general. Pompeia Sula deu uma festa só para mulheres. Um patrício atrevido invadiu o rega-bofe. Foi descoberto pela sogra da anfitrioa. Júlio César tomou a decisão clássica de uma moral masculina e pública: divorciou-se da esposa e perdoou o invasor. Surgiu o ditado: para uma mulher casada com homem importante não basta ser, mas parecer honesta, estar acima de quaisquer suspeitas. 
Nossos jornais mostram novos escândalos. Ainda não abarcamos a extensão dos antigos, nem todos os culpados foram punidos e eis que uma safra fresca desponta. Você minha querida leitora ou você, meu estimado leitor, sabe a regra absoluta e verdadeira. Tudo que se diga de ruim do político ou partido de que eu gosto é perseguição da imprensa e intriga da oposição. Tudo o que for dito do meu inimigo político é pouco diante do muito mais que ele ou o partido tenham roubado. Aqui não se trata de gênero, todavia de afinidade eletiva. Quem eu gosto é honesto. No máximo, como concessão ao humano, meu correligionário fez algo indevido, mas imensamente menor do que aqueles outros, os verdadeiros ladravazes. Um argumento brasileiro clássico e estranho: “Sim, ele fez isso, mas os outros fizeram muito mais”. Assim, justifica-se o homicídio diante do nosso imaginário sobre o genocídio. O meu César e a sua esposa devem ser, ao menos, um pouco menos ladrões do que o César e a esposa alheia. Afinal, todos os césares se parecem, com exceção do meu, que, claro, é melhor por ser o meu. A ética parece flertar com a blague de Bernard Shaw (1856-1925): “O nacionalismo é a crença que um país é melhor que outro pelo simples fato de você ter nascido nele”. Meu político é mais ético simplesmente porque eu acredito nele e, um dia, a imprensa golpista vai entender isso. 
Ser e parecer é a síntese da modernidade maquiavélica. Os outros julgam pelo que percebem externamente, logo, a propaganda de si como luminar ético é a coisa mais importante. Emil Cioran (1911-1995) dá o seu inevitável tom pessimista ao pensar as dualidades do mundo: “A inconsciência é uma pátria, a consciência, um exílio”. Podemos tratar de várias formas a ideia do franco-romeno. Mundos bipolares provocam conforto, um gueto mental quente e agradável. O bem ao meu lado e o mal do outro. E quem não pensa assim? Só pode ser um sofista, pois todos que não trabalham com o absoluto devem ser sofistas. Como sempre, sofista é uma palavra aprendida em um grupo de WhatsApp. Lá disseram ao membro que era um insulto e o mundo pessimista helênico submergiu no pires da internet. 
Todos os políticos são iguais? Não. Estou convencido de que há pessoas realmente honestas e há partidos que as concentram mais do que outros. A questão que estou tratando é que a convicção depende de fatos e não de opiniões. Não podemos ter confiança por princípio, porém por fatos. Sempre gostei do exemplo, muito isolado na história do País, do ministro de Itamar Franco: Henrique Hargreaves. Sentado na instável cadeira da Casa Civil, a grande guilhotina da Nova República, foi acusado de procedimentos não éticos. Afastou-se e houve uma investigação. Assumiu Tarcísio Carlos de Almeida Cunha. Feita a devassa, retornou, sem que nada fosse provado. É um modelo interessante. Por quê? Existem máquinas óbvias de denúncias contra quaisquer pessoas que exercem o poder. Faz parte do jogo político. Eu quero o poder que pertence a você, mesmo o legitimamente obtido por votos. Logo, não querendo pagar o ônus de um golpe, eu posso derramar acusações. As acusações podem ser falsas ou verdadeiras, sempre. Para isso, o ideal seria fazer uma investigação e, sempre que possível, sem que o acusado exercesse cargo de poder. Isso evitaria que, caso seja culpado, use a máquina pública a seu favor ou que, enquanto se defende, não se concentre em seus afazeres. Trata-se de duplo e necessário cuidado.
Toda mulher de César deveria ser a primeira a exigir investigações amplas. A ela interessa emergir do caso com sua reputação exaltada. Exercer cargo público em democracias tem esse ônus terrível. O palavrão que você lançou no ensino primário volta. A entrevista de 1978 emerge. Reaparece o teste do bafômetro daquela noite fatídica. Seu filho exterior aos laços matrimoniais desponta nas colunas sociais. Seu filho de dentro do casamento terá a vida devassada e, não sendo santo (algum o é?), terá os achados jogados na fogueira inquisitorial da opinião pública.
Penso três coisas distintas. Uma já dita: a mulher de César deve querer investigação e sua insistência no procedimento seria uma evidência da sua consciência tranquila. Segunda: devemos buscar a ética e não a ética em uma pessoa ou partido. Devemos cobrar que quem exerça cargos seja exemplar ao lidar com a coisa pública. Terceira: um pecado menor do passado que já tenha sido expiado pela retratação ou que represente um momento de raiva e não uma convicção pessoal deveria ser relevado. Gosto de pessoas reais que têm capacidade de errar, desde que se arrependam e melhorem. Arcanjos costumam ser autoritários. Alguns até traem o plano divino. O mundo político é mais complexo do que uma lista de convidados de Pompeia Sula. A mulher de César deveria ter contratado assessores de imprensa. 

Mercê - Luis Fernando Verissimo

Curiosa palavra, “mercê”. Estar “à mercê” de algo que você não pode controlar, ou de alguém com o poder de decidir sua vida. Depender de algo ou de alguém sem reação possível. Estar entregue ao capricho – ou à benevolência, ou à maldade – de outro. Estar indefeso diante da vontade alheia, ou das forças da Natureza.
*
Faça um inventário de tudo que tem você à sua mercê, a começar pela sua própria saúde. Você é refém dos seus órgãos, não manda em nenhum deles. Você está à mercê de todos os perigos da cidade em que vive, quanto maior a cidade, mais perigosa. Você está à mercê do trânsito, do possível galho de árvore que o vento derruba na sua cabeça, do assaltante, do etc. Viver normalmente é estar à mercê do que pode acontecer.
*
No Brasil dos últimos tempos, nos descobrimos à mercê de outra coisa, de uma síndrome que se aproxima de um vício nacional. Os desmoronamentos com mortes em Mariana e Brumadinho e os dez meninos mortos no Rio não podem ser atribuídos à fatalidade, que tudo desculpa. Houve descaso, negligencia, má administração, decisões erradas – enfim, culpados.
*
Vivemos à mercê do velho hábito brasileiro de deixar pra lá que as coisa se ajeitam (em Mariana não se ajeitou nada ainda). Este caso – talvez pelo fato de as tragédias terem sido tão próximas umas das outras, incluindo aí a terrível morte do Boechat – pode mudar alguma coisa, mas não aposte nisso. O velho hábito se solidificou. Afinal, são décadas de predomínio do lucro sobre a segurança e indiferença pelo social. E nós à mercê da incompetência.

Cinema, safra de 39 - Sergio Augusto

E não é que Cidadão Kane perdeu mais uma? 
Em 2012 perdeu o primeiro lugar na lista de “melhores filmes de todos os tempos”, decenalmente promovida pela revista Sight & Sound com críticos do mundo inteiro. Depois de meio século de intocada hegemonia, cedeu o posto a Um Corpo Que Cai(Vertigo). Agora deixou de ser o que parecia líquido e certo: o filme mais influente de todos tempos. 
Não perdeu outra vez para Hitchcock, mas para, acredite, Victor Fleming. E não foi o Fleming de E o Vento Levou.
Pesquisadores italianos da Universidade de Turim analisaram 47.000 títulos de 26 gêneros e concluíram que nenhum filme exerceu mais influência no cinema do que O Mágico de Oz. Não se guiaram pela venda de ingressos, nem pela fortuna crítica, apenas pelo número de referências, na tela, à onírica epopeia de Dorothy, ao longo de praticamente oito décadas. 
Cidadão Kane já tinha quase três décadas de liderança na lista dos “melhores filmes” de todos os tempos quando os críticos da veneranda revista britânica Films in Reviewinverteram os termos de tais escolhas, elegendo “o melhor ano da história do cinema”. Ou melhor, o ano da melhor safra de filmes em todos os tempos. Deu 1939 na cabeça. E ninguém apontou outra. Até hoje. 
Lançado em agosto de 1939, O Mágico de Oz faz parte dos top ten daquela privilegiada temporada. Os demais, por ordem de estreia: No Tempo das Diligências (Stagecoach), Gunga DinNinotchkaO Morro dos Ventos Uivantes (Wuthering Heights), A Mocidade de LincolnMulheres (The Women), A Mulher Faz o Homem (Mr. Smith Goes to Washington), Heróis Esquecidos (The Roaring Twenties), E o Vento Levou
Em 1939, o cinema americano vivia o seu apogeu. Só naquele annus mirabilis produziu 530 filmes e vendeu, no mercado interno, 170 milhões de ingressos. A guerra, iniciada em setembro, se por um lado dificultou-lhe o acesso ao mercado internacional, por outro o beneficiou com uma imigração em massa de cineastas, atores, técnicos e escritores europeus dispersos pela ascensão nazista. 
Seis dos dez selecionados concorreram ao Oscar de melhor filme, conquistado pelo último lançamento do ano, E o Vento Levou. Fleming dominou a temporada, com dois retumbantes sucessos de público e crítica. Se houvesse um prêmio de alta produtividade, um troféu de inspiração stakanovista, nenhum outro cineasta o tomaria de John Farrow, que naquele ano dirigiu seis filmes, secundado pelo imigrado húngaro Michael Curtiz (nascido Mihaly Kertesz), que assinou quatro. 
Mas o maior destaque autoral foi mestre John Ford, com duas grandes obras: No Tempo das Diligências e A Mocidade de Lincoln. Os dois blockbusters assinados por Fleming eram, acima de tudo, criações coletivas, filmes de produção, de autoria difusa. Ford, com Stagecoach, revolucionou o western; e em Young Mr. Lincoln modernizou a forma de biografar personagens históricos, tornando ainda mais visíveis as rugas de cinebiografias convencionais como Juarez, de William Dieterle, outro lançamento de 1939.
Ford fecharia o ano com um terceiro filme, Ao Rufar dos Tambores (Drums Along the Mohaw), sua primeira experiência em cores, com a qual concluiu uma trilogia sobre o processo civilizatório da América.
Claro que falta pelo menos um filme europeu nessa lista: A Regra do Jogo, de Jean Renoir. Talvez outros, vindos de paragens diferentes como Japão (Crisântemos Tardios, de Mizoguchi) e da própria França (Trágico Amanhecer, de Marcel Carné), fossem acrescentados por alguns cinéfilos, embora a grande contribuição do cinema francês, naquela temporada, tenha sido mesmo a tragicomédia de Renoir, aguçada sátira à decadente burguesia francesa, que em breve teria de conviver com os ocupantes nazistas. 
O filme francês que então desfrutava de mais prestígio fora do país era A Mulher do Padeiro, de Marcel Pagnol, um dos filmes favoritos de Orson Welles. Virou peça de museu, ao contrário de A Regra do Jogo, explicitamente reverenciada por Bergman (Sorrisos de uma Noite de Amor), Chabrol (Os Primos), Fellini (A Doce Vida), Carlos Saura (A Caça), etc., e até hoje em forma. 
Antes de submeter-se docilmente ao jugo alemão, a burguesia francesa exigiu a mutilação e, em seguida, a proibição do filme de Renoir pelo governo colaboracionista de Vichy. Também demonizado pelos nazistas, seus negativos acabaram involuntariamente destruídos pelos aliados, durante um ataque ao estúdio onde eles haviam sido guardados. Somente na década de 1950 Renoir logrou restaurar a versão completa do filme, a partir de várias cópias espalhadas pelo mundo.
Transtornado pelo fiasco comercial de A Regra do Jogo e sua perseguição pela Censura, Renoir mandou-se para a Itália, mas a guerra interrompeu no nascedouro sua adaptação ao cinema da ópera Tosca, de Puccini. Em maio de 1940, o cineasta foi tentar carreira em Hollywood. 
Há tempos me dei à pachorra de descobrir o que futuros cineastas importantes faziam em 1939. Fritz Lang, com 48 anos, naturalizou-se cidadão americano. Bergman, 21, montava documentários na Cinemateca do MoMA, em Nova York. Buñuel, 39, idem. Chaplin, 50, preparava O Grande Ditador. Hitchcock, 40, acertava sua ida para Hollywood com Selznick. Fellini, 19, desenhava charges, traduzia e recriava histórias em quadrinhos. Huston, 33, estreava como diretor na Broadway. Minnelli, 37, trocava a Broadway pelos estúdios da Metro. Visconti, 32, amargava a frustração de não ter continuado como assistente de Renoir na direção de Tosca. Welles, 24, trabalhava em rádio, teatro e escrevia dois roteiros nunca filmados. Wilder, 33, mourejava como roteirista na Paramount. Godard, 9, estudava na Suíça. Glauber Rocha e Coppola faziam xixi na fralda.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

A vida da língua - Leandro Karnal

Surgem ‘adevogados’, trocam-se ‘pineus’ e o monstro verde irritadiço é o incrível ‘Hulki’
A língua é um fenômeno vivo. Pertence aos seus usuários e muda constantemente. Esperneiam gramáticos, exasperam-se puristas, descabelam-se professores: ela ignora molduras e flui orgânica nas ruas e famílias.
Há um uso regido pela gramática normativa que estabelece regras. Às vezes, elas são divertidas. Por exemplo: existe uma parte da gramática que trata da produção oral das palavras, ou seja, como pronunciar ou onde cairia a sílaba tônica de cada termo. Você tem dúvida, por exemplo, deve-se dizer rubrica ou rúbrica? Esse setor da gramática resolve. O correto seria pronunciar o “e” fechado na palavra obeso ou aberto? Por que eu falei que era um setor divertido? Porque a parte da gramática que trata das dúvidas sobre sílabas tônicas e outras é ortoepia ou ortoépia, ou seja, admite duas formas de pronúncia. Quem deveria me dizer qual a forma correta admite duas formas.
Existe o campo da linguística, que irritava o solene gramático Napoleão Mendes de Almeida. Ela é ampla e abrange, inclusive, a gramática normativa. Porém, antes de indicar o certo e o errado, analisa a apropriação/construção/ produção de sentidos de comunicação para uma pessoa ou para um grupo. Assim, ir “de a pé” ou ser “de menor” não seriam, do ponto de vista linguístico, erros, mas usos com explicação racional para o motivo do desvio da norma culta. Por vezes, é uma tentativa de hipercorreção, como é o caso do emprego de “menas”. Figura ser mais correto concordar o gênero e muita gente lasca um “menas pessoas” porque parece contraditório dizer menos. Em outras ocasiões, nossa resistência lusófona ao excesso de consoantes provoca a introdução de uma vogal onde não caberia na ortoepia ortodoxa. Surgem “adevogados”, trocam-se “pineus” e o monstro verde irritadiço é o incrível “Hulki”. O uso recebe um nome complexo: suarabácti (ou anaptixe), a criação de uma vogal de apoio. A pronúncia “pissicologia” causa-lhe horror, ó meu parnasiano leitor? Como eu afirmei, a língua é viva. O latim blatta transformou-se em brata e, por suarabácti já consagrado, você tem nojo da barata, a antiga brata. A língua é viva e nada impede que, em breve, carros rodem sobre “pineus”.
Nós sintetizamos (vossa mercê vira você e daí surge o internético vc), colocamos vogais, adaptamos, decompomos e refazemos. O império de Napoleão (o gramático) dá origem a muitas pequenas repúblicas, vivas, pulsantes e indiferentes às vestais oficiais e oficiosas do tabernáculo das regras. No sentido empregado por Noam Chomski, eu preciso de uma gramaticalidade para minha expressão, e nem sempre é a prevista no código napoleônico.
Língua é história. Em 1912, um navio britânico a caminho dos EUA naufragou de forma trágica. A elite brasileira leu sobre o evento e pronunciou o nome do navio como se fosse francês: Titanic, enfatizando a sílaba final e produzindo o gracioso biquinho da francofonia. Ninguém pronunciou com sonoridade inglesa ou traduziu para Titânico. Mais de um século, ainda falamos como se o navio tivesse zarpado de Marselha e sido confeccionado em um porto gaulês. Por quê? A elite brasileira era usuária da língua de Paris. Passadas mais algumas décadas e para os jovens, imersos em um mundo onde o inglês é língua franca contemporânea, a praia francesa se torna algo como “náici”, pois Nice sucumbiu ao vagalhão anglófono. Língua é história.
Hoje, a fortaleza da língua de Camões tem um buraco na muralha pelo qual ingleses penetraram aos magotes. Os habitantes de Lusitânia viram uma imigração ilegal poderosa. Somos usuários de um dialeto inglês-lusófono.
Criamos muito. Deletar, por exemplo: não é inglês e não é português. Na origem, uma palavra latina que chegou ao francês e ultrapassou o canal da Mancha. É a nossa tradicional antropofagia, analisada pelos Andrades, Oswald e Mário. Pedem-me budget e eu penso na antiga, sólida e útil palavra orçamento. A reunião flui assim: “O senhor será keynote speaker e a escolha é em função do seu know-how sobre o modelo ted para CEOs. Faremos um meeting de alinhamento para que os links da performance atendam aos itens do ranking apresentado e que colocamos no site. Depois, encerramos com um brunch para reforçar network nesse kickoff. Ok, professor?”. Eu respondo: “Yeahhh! Parecemos Zeca Baleiro (Samba do Approach): Toda hora rola um insight / Já fui fã do Jethro Tull / Hoje me amarro no Slash / Minha vida agora é cool /? Meu passado é que foi trash...(...)”.
Estamos próximos de Salvatore, a personagem ensandecida do Nome da Rosa que misturava todas as línguas na imaginação de Umberto Eco. Às vezes, é uma palavra emprestada, por vezes uma construção frasal que guarda a marca de outra língua.
Não adianta solidificar uma armadura que defenda o português. O ataque não é externo, é opção dos cidadãos de dentro. Podemos insistir que ludopédio seria mais correto, futebol está consagrado e ponto. O chá da academia será acompanhado de cookies e de cupcakes. A língua pode até morrer um dia, mas nós, seus usuários, partiremos antes. Isto assusta ou consola? Good luck!

As aventuras da família Brasil - Sem intimidades - Luis Fernando Verissimo

A escrita nasceu da necessidade de não esquecer. O primeiro hominídeo que pensou Preciso me lembrar disto deve ter olhado em volta e procurado alguma coisa que ele não sabia o que era. Era lápis e papel, que ainda não tinham sido inventados. A angústia primordial da humanidade foi a de perder o pensamento fugidio. Imagine quantas boas ideias não desapareceram para sempre por falta de algo que as retivesse na memória e no mundo. A história da civilização teria sido outra se, antes de inventar a roda, o homem tivesse inventado a Bic e o bloco de notas.
As espécies que não desenvolveram a escrita valem-se da memória instintiva. O salmão sabe o caminho do lugar onde nasceu sem consultar um parente ou um mapa. Já o homem pode ser definido como o animal que precisa consultar as suas notas. Nas sociedades não letradas as lembranças sobrevivem na recitação familiar e nos mitos tribais, que são a memória ritualizada. Todas as outras dependem do memorando. Mas, mesmo com todas as formas de anotações inventadas pelo homem desde o tempo das cavernas, inclusive o “notebook” eletrônico, a angústia persiste.
O que está aí em cima é o resumo de um texto que escrevi há anos, depois de ter uma ideia para crônica, confiar que bastaria anotar uma frase para me lembrar da ideia — e imediatamente esquecê-la. Eu já havia desistido de ter um bloco de notas sempre à mão para o caso de sonhar com uma boa ideia ou ter um lampejo criativo, porque minha experiência era que nenhuma ideia sonhada resiste à luz do dia e os lampejos aproveitáveis aconteciam invariavelmente no chuveiro. Mas, desta vez, o lampejo foi num lugar seco e anotei a frase: “Conhece-te a ti mesmo, mas não fique intimo”. Boa, boa. Só que, quando sentei para escrever a crônica, a frase tinha perdido o sentido. Não me ajudava a me lembrar de nada. E não me lembrou de nada até agora, quando, por acaso, a vi escrita num bloco de notas antigo e finalmente me entendi.
O que eu quis dizer, eu acho, é que é positivo e saudável o ser humano se conhecer, desvendar todo os seus mistérios e exorcizar todas as suas culpas, com ou sem orientação científica ou religiosa. Ou será que é mesmo? Talvez o conselho mais prático e racional seja se conhecer, sim, mas evitar muita intimidade com esse ser que atende pelo nosso nome, tem os mesmos pais e o mesmo CPF, torce pelo mesmo time e nos levará junto quando morrer. Como em qualquer relacionamento humano, nas nossas relações com nós mesmos deve haver um certo recato e cuidado para evitar mal-entendidos. Familiaridade demais pode gerar desprezo e revolta. Quem sabe o que nos espera lá no fundo sombrio, nos nossos mergulhos de autoconhecimento? Melhor ficar na superfície, que é mais clara e tranquila.
Junto com a frase anotada anos atrás há outra, também para me lembrar de uma ideia para crônica. A frase é: “O abacaxi é fruta a contragosto”. Mas esta eu não tenho a menor ideia do que queria dizer.

No tempo das cartas - Fabricio Carpinejar

Existe um mundaréu de gente que nunca recebeu uma carta – acho uma pena. É um suspense lindo. Carta está lacrada, traz aquela sensação de ser especial, exclusivo de alguém. Como não mostra o assunto, diferente do e-mail, cria o segredo e alimenta a curiosidade.
Carta tem rituais. É aprender a abrir pelos lados sem rasgar o conteúdo. Coloca-se o envelope contra a luz para acertar o rasgo. Nos escritórios antigos, as mesas exibiam uma espátula para não violar a natureza frágil da dobradura. Alguns mais sábios usavam o vapor da chaleira para desprender a cola.
Cartas eram beijadas quando traziam boas novas. Cartas eram insultadas quando terminavam um romance. As tragédias e as mortes só vinham por telegramas e isentavam as assíduas missivas da função de corvos.
Havia mais esperança na época das cartas. Quantos soldados no front não morriam somente para ler a próxima notícia dos familiares? Havia mais solidão na época das cartas. Logo que se recebia a correspondência, existia o hábito de esperar o momento de estar sozinho para descortinar a sua mensagem.
Colecionavam-se cartas em caixinhas de sapatos, maços amarrados com barbantes. Sua prova física permitia facilmente a revisão de trechos e passagens nos períodos de maior saudade.
Cartas amarelavam como livros. Transmitiam, com fidelidade, a ação dos anos em suas folhas.
A carta possuía status de fotografia, de testamento. Guardavam-se os selos comemorativos como homenagem de uma fase histórica. Cartas reduziam a distância geográfica e espiritual simultaneamente. Quem estava longe ficava perto, quem estava perto ficava íntimo.
Tenho dó dos meus filhos, dos meus netos, que não encontrarão serventia para a chave da caixinha de correio, que apenas herdarão contas e faturas e nenhum documento escrito a mão, que possa fazer tremer pelo desconhecido.
A carta é como roupa passando pela máquina de costura do pensamento, feita sob medida, é o mais próximo que o papel chegou do pano. A carta é quando dedicamos o nosso tempo a alguém. Não há maior declaração de amor do que perder tempo para uma pessoa.
É sondar o pior e o melhor e escolher o que deve ser registrado com esmero, é escrever várias vezes até não errar mais, é vigiar o fim das linhas, é jogar rascunhos fora, é caprichar na letra, é comprar envelope, é ir ao correio, é selar a correspondência, é procurar o CEP.
Todo mundo não poderia passar pela vida sem ganhar uma cartinha.
Degustar a espera, não suportar a ansiedade, responder e aguentar 10 dias para descobrir se o destinatário gostou de suas palavras. Na época das cartas, vigorava um intervalo fundamental para imaginar o outro, sonhar com o outro, amar o outro.

Antes e Depois - Luis Fernando Verissimo

A receita consagrada para um, digamos, congresso sexual - ou, usando o termo cientifico, “aquilo” - era: um uísque antes e um cigarro depois. Mas é claro que isso podia variar, de acordo com as circunstâncias e os participantes. Um tímido, por exemplo, precisaria de 17 uísques antes e um Engov depois. Um sofisticado? Um champanhe gelado com duas gotas de Granadino antes e um tango no parapeito depois.
*
Outros:
O apressado: meio uísque antes e desculpas depois.
O cauteloso: um copo de água para ela tomar a pílula antes e um nome falso depois.
O metódico: o pijama cuidadosamente dobrado antes e um gargarejo depois.
O anticonvencional (ou tarado): um cigarro antes e um uísque depois.
O voyeur: uísques para todo o mundo antes e cigarros para todos depois, dependendo do desempenho de cada um.
Para sexo grupal: um uísque só com gelo, um uísque com água, dois martinis, um campari, duas Vodca Sour e refrigerantes antes, cigarros para quem quiser depois.
*
O guloso: uma feijoada antes, uma congestão depois.
O insaciável: um uísque antes e um cigarro dali a dois dias.
O descuidado: um uísque antes, cigarros durante e um extintor de incêndio depois.
O intelectual: três uísques antes, uma história picante durante ou, em vez de, teses sobre o libido segundo Freud depois.
O azarado: um uísque falsificado antes, a chegada do marido durante, um armário pequeno demais para se esconder depois.
O distraído: um uísque antes de dormir.
*
O atleta: uma laranjada antes, um exame antidoping depois.
O confuso: um uísque em cima da hora, um cigarro no meio, cinzas por toda a cama e uma mulher gritando “Assim não dá!” depois.
O descansado: vários uísques e salgadinhos antes, um cigarro no intervalo.
O remediado: uma cachaça antes e um toco de cigarro depois.
O lorde inglês: um uísque sem gelo, um bom cachimbo, antes, e... “Por favor, querida, hoje não”.
*
O nostálgico: uma Cuba Libre antes e um Hollywood depois, ouvindo o Chubby Checker.
O inseguro: uma gemada antes e um carnaval depois.
O exagerado: um porre antes e foguetes depois.
O conversador: um uísque, um bom papo, outro uísque, mais papo, e... “Meu bem, acorda”.

Charles Bukowski - Bluebird

Clarissa Braga | Bluebird | Charles Bukowski

Bluebird
there’s a bluebird in my heart that
wants to get out
but I’m too tough for him,
I say, stay in there, I’m not going
to let anybody see
you.
there’s a bluebird in my heart that
wants to get out
but I pour whiskey on him and inhale
cigarette smoke
and the whores and the bartenders
and the grocery clerks
never know that
he’s
in there.
there’s a bluebird in my heart that
wants to get out
but I’m too tough for him,
I say,
stay down, do you want to mess
me up?
you want to screw up the
works?
you want to blow my book sales in
Europe?
there’s a bluebird in my heart that
wants to get out
but I’m too clever, I only let him out
at night sometimes
when everybody’s asleep.
I say, I know that you’re there,
so don’t be
sad.
then I put him back,
but he’s singing a little
in there, I haven’t quite let him
die
and we sleep together like
that
with our
secret pact
and it’s nice enough to
make a man
weep, but I don’t
weep, do
you?

O pássaro azul
há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo, fique aí, não deixarei
que ninguém o veja.
há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas eu despejo uísque sobre ele e inalo
fumaça de cigarro
e as putas e os atendentes dos bares
e das mercearias
nunca saberão que
ele está
lá dentro.
há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo,
fique aí, quer acabar
comigo?
quer foder com minha
escrita?
quer arruinar a venda dos meus livros na
Europa?
há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou bastante esperto, deixo que ele saia
somente em algumas noites
quando todos estão dormindo.
eu digo, sei que você está aí,
então não fique
triste.
depois o coloco de volta em seu lugar,
mas ele ainda canta um pouquinho
lá dentro, não deixo que morra
completamente
e nós dormimos juntos
assim
com nosso pacto secreto
e isto é bom o suficiente para
fazer um homem
chorar, mas eu não
choro, e
você?
– Charles Bukowski, em “Textos autobiográficos, de Charles Bukowski” [tradução de Pedro Gonzaga; edição de John Martin]. Porto Alegre: L&PM Editores, 2009

Bluebird animation based on Charles Bukowski's poem







segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Vidas - Luis Fernando Verissimo

“Minha vida daria um filme.” A não ser que essa frase venha acompanhada de uma atenuante – como “de baixo orçamento” – quem a diz se arrisca a ser chamado de presunçoso ou coisa pior. Em geral, vidas não dão filmes. O romance, a aventura, o drama, a epifania, o acidente, o episódio místico – enfim, o que torna uma vida extraordinária – quase sempre só é uma vida extraordinária na opinião de quem conta.
– Minha vida daria um filme...
– Não. Aquela história da cigana de soutien rosa, de novo? Não! 
Extraordinário é fazer um filme sobre o corriqueiro, sobre o não extraordinário, como fez o diretor mexicano Alfonso Cuarón com o seu Roma, que todo mundo, literalmente, está adorando. O diretor decidiu que sua vida daria um filme, e deu. Mas seu personagem não é identificado no filme, ele é um dos meninos. Uma personagem principal é a babá do menino, outra personagem importante é o México dos conturbados anos 70, e a terceira personagem é a humanidade além da casa do menino, uma identificação tão forte que explica o sucesso do filme apesar do lançamento pouco ortodoxo.
Pode-se argumentar que Roma é, junto às outras pretensões de Cuarón, um elogio à burguesia de bom coração e que o diretor sentimentaliza o que é, no fundo, uma relação de vassalagem. Mas a vida é do Cuarón e sua evocação do colo da babá, um prazer que todos podemos compartilhar.
A vida de Dick Cheney deu um ótimo filme, que também é uma lição de História. O melhor que se pode dizer em defesa de Cheney é que ele não é o pior vilão na tela. Lá estão Donald Rumsfeld, Henry Kissinger, Paul Wolfowitz, a figura melancólica do general Colin Powell, obrigado a dizer nas Nações Unidas o que sabia não ser verdade, para justificar o ataque ao Iraque. A História que o filme conta é a da transformação de um bandido conveniente, Saddam Hussein, numa razão para atacar o Iraque e garantir seu petróleo e acabar com as armas de destruição em massa que sabiam que não existiam. 600 mil civis iraquianos morreram na guerra falsificada.
Segundo o filme, Cheney foi um bom pai. 

Um brinde às inimigas - Manuela Cantuária

  Duas amigas em uma mesa de bar. Uma delas ergue seu copo. "Um brinde às inimigas, que elas tenham saúde em dobro para aplaudir nosso ...