domingo, 30 de abril de 2017

Seja uma mulher da vida – Mariliz Pereira Jorge

Todas as vezes que tenho um dia duro e frustrante no trabalho, penso em como seria maravilhoso ser "do lar". E, hoje, não tenho vergonha de admitir que em alguns momentos já senti mais prazer e satisfação em encarar uma arrumação num armário, em cortar cebola bem picadinha para cozinhar, do que passar o dia em frente ao computador. Já ouvi a mesma coisa de várias mulheres.
Não que a vida em casa não seja dura e frustrante muitas vezes. Cortar cebola todos os dias, ir ao supermercado comprar detergente, não tem nada de divertido.
É hipocrisia acreditar que não haja um preconceito velado por quem escolhe esse caminho. Pois é. Eu tinha esse sentimento. A minha geração foi criada para trabalhar, não havia outra opção. É como se tivéssemos uma dívida com as conquistas feministas que precisava ser honrada. Como assim, você tinha tantas opções e preferiu ficar em casa, dependendo de alguém, com um mundo tão sedutor lá fora?
Vamos encarar um fato: a dona de casa dos anos 1950 está em extinção, felizmente. Aquela vida devia ser um tédio. A mulher era condenada a passar seus dias confinada dentro de quatro paredes com a televisão e o rádio como companhia. Uma rotina infame de limpar a casa diariamente, preparar almoço e jantar, lavar, passar, deixar o taco do chão tão limpo que dava para escorregar, esperar o marido chegar em casa, de banho tomado e sem reclamar. Presídios deviam ser mais divertidos.
Hoje, quem não conta com uma faxineira que dê uma garibada na casa uma vez por semana, tem máquina de lavar roupa, lava-louças, aspirador de pó e, espero, um companheiro com quem dividir as tarefas. Tem delivery, restaurante por quilo, comida congelada. Tudo pra que ninguém fique confinado a afazeres enfadonhos e cansativos. E pra completar, temos o mundo dentro de casa com todas as tecnologias disponíveis.
E eu agora, mais consciente e menos preconceituosa, me pego flertando com a vida do "lar". Quem sabe um dia eu passe as tardes areando as pratarias com Silvo, comprando flores frescas toda semana para enfeitar a casa, entre um crochê no sofá, vendo minha série favorita e uma pia cheia de louça. Dizem, afinal, que lavar pratos é das melhores terapias.
Mas o sonho de ser do "lar" só existe porque realizei todos os outros fora de casa. Não dá para ser do lar antes de ser da vida. É libertador não precisar provar nada para ninguém, nem para si mesmo. Você já foi, já se estrepou, já fez dar certo, ganhou tapinhas nas costas, acumulou glórias. O mundo sabe que você é capaz. Você se testou e agora pode escolher.
Não recomendo a nenhuma garota que se aposente da vida sem experimentar dela. Sem vestir carapuças variadas. Descabelada, descompensada, desbocada, desvairada, despudorada, desmiolada, desmedida, descarada, destroçada, disputada, desligada, decotada, delicada, desejada, renomada, lembrada, indomada. Seja várias, seja muitas.
Não seja do lar antes de ser do mundo, antes de ser uma mulher da vida. Não se acomode em camas macias e cheirosas, antes de ter perambulado por aí, dormido em albergues, hotéis, barracas, camas de estranhos, dentro de trens, de ônibus e aviões. Sem experimentar a liberdade de não saber onde estará no dia seguinte
Não sem antes ler, estudar, aprender, saber das coisas dos livros e da vida. Sem antes colocar em prática o que era só teoria. Sem pedir demissão, ser demitida, abandonar amores, ser deixada, sem provar do doce e do amargo, sem ter tido muitos finais felizes e tantos outros tristes. Sem ter enfrentado inúmeros recomeços. Sem ter caído mil vezes e ter aprendido a se levantar.
A gente tem que sair de casa para um dia querer voltar e sentir-se confortável com nossa escolha.




Congelem seus óvulos – Mariliz Pereira Jorge

Se eu pudesse dar apenas um conselho para uma mulher mais nova, seria este: congele seus óvulos. Faça isso enquanto eles estão jovens, abundantes e férteis. Enquanto suas chances de engravidar sejam do nível "pegando cueca no varal". Você respira perto de um homem pelado e depois dos nove meses, páh!
Faça isso e vá viver sem ter que pensar sobre o que quer da vida daqui cinco ou 15 anos. Enquanto sua maior preocupação é perder dois quilos e não a maldita bomba-relógio dentro do útero que um belo dia vai parar de funcionar. Enquanto ninguém perguntar quando você terá filhos, se você terá filhos, por que não teve filhos. Esse dia vai chegar. E você poderá sorrir por dentro e dar uma esnobada na tia Marlene e em todas as pessoas que te olham, sem disfarçar a pena, com os olhos saltando das órbitas, gritando "coitada".
Quando as minhas amigas começaram a casar e engravidar, passei a responder repetidamente se também queria casar, se também queria ter filhos. Depois que casei, passei a responder repetidamente por que não tive filhos. As pessoas, quero acreditar, não se dão conta de que esfregam no meu útero que meu tempo acabou, que já era, que a fonte secou. E, claro, que estou velha.
Em segundos me pego ouvindo sobre tabelinha, testes de ovulação, acupuntura para aumentar a fertilidade, bênção xamânica, vela para Cosme e Damião, e quase me convenceram a comprar dois sapatinhos (um azul e um rosa) para fazer uma simpatia. No final, chegam a conclusão de que eu deveria tentar inseminação artificial mesmo.
Nunca fui do tipo que planeja o fim de semana, quanto mais o próximo ano, e se tem alguma coisa que precisa ser minimamente planejada é a decisão de ter, quando ter e com quem botar uma criaturinha no mundo. E essas coisas acontecem aos poucos, e nem sempre quando a gente quer.
A gente adia o momento de querer ter um filho, então, vem a vida e adia nossos planos também. Quem sabe quando tiver um aumento, quando comprar uma casa, quando conhecer alguém bacana. Depois de conhecer a Europa, morar na Austrália, for promovida, escrever um livro, conhecer alguém. Nem precisa ser legal, desde que não seja psicopata.
A questão muitas vezes não é querer ter filhos, mas querer naquele momento. E em muitos momentos não quis.
Não quis porque eu tinha outras urgências e elas me pareciam mais apropriadas e compatíveis com a minha juventude, imaturidade, com a cabeça de vento que eu tinha. Não tem como pensar em ter filhos quando você só vai embora quando o garçom coloca as cadeiras em cima da mesa. Mãe, você estava errada, essa sempre foi a melhor hora da festa e eu fico feliz de ter passado até agora mais noites em claro dançando até o chão do que fazendo papinha de criança.
Não, não da para cogitar ter filhos naquela fase da vida (quem nunca?) em que os relacionamentos duram menos do que plano de dados do celular. Quando você olha para aquele cara pelado ao seu lado e pensa "não é amor, é só uma frente fria".
Não tem como pensar nisso quando o máximo que você consegue ambicionar na vida é conseguir pagar o aluguel num apartamento que não seja uma república fedorenta, guardar dinheiro para tirar férias em algum lugar bem esquisito, comprar roupinhas parceladas em três vezes na C&A.
Não tem como planejar um filho quando todas as suas economias já têm destino certo, que pode ser um carro, um curso de especialização, uma viagem de férias ou um vestido que custa duas vezes seu salário. Conheço gente que coleciona apartamentos, eu tenho uma coleção de passaportes, carimbos de viagem, vacinas de febre amarela, amores de verão.
Não quis ter filhos sem ter certeza de que queria esse ou aquele homem como companheiro de vida, de que ele seria um paizão amoroso, um cara decente. Mulheres que decidem ser mães sozinhas terão minha eterna admiração, eu não conseguiria cuidar de uma samambaia sem ter um parceiro para segurar minha mão.
Para segurar minha mão, pra fazer planos juntos, passar noites em claro, trocando fraldas e cuidando das cólicas e do choro. Quem sabe dá tempo, quem sabe eu tenha sorte, quem sabe eu devesse fazer a simpatia, quem sabe acupuntura ajudasse. Quem sabe seria mais fácil se eu tivesse congelado um óvulo. A vida não é para amadores.



http://www.huntington.com.br/tratamentos/congelamento-de-ovulos/

O nosso amor a gente inventa - Marcos Piangers


Os olhinhos da minha filha de quatro anos brilhavam enquanto ela segurava uma caixa grande de cor roxa onde lia-se "Doutora Brinquedos". Olhando a caixa dava pra ver que era um amontoado de plásticos roxos ali dentro: um estetoscópio falso, uma maletinha falsa, um termômetro falso, uma bomba de medir pressão sanguínea falsa. "Um amontoado de plástico por exorbitantes R$ 89,90", era a única coisa que eu podia pensar. Nessa hora, nosso coração de pai não vê a etiqueta — a maldita etiqueta escondida sorrateiramente na parte de trás da caixa. Olhamos apenas para aqueles lindos olhinhos nos pedindo "compra, pai?". As crianças aprendem rápido que seus olhinhos pidões são como varinhas encantadas, e as palavras mágicas são "compra, pai?".
Mas as crianças não nascem sabendo o valor das coisas. Elas sabem apenas que querem tudo aquilo que seja novo e brilhante e que tenha aparecido na televisão ou que tenham visto na casa dos amiguinhos. Pra comprar um amontoado de plástico por R$ 89,90 eu precisei trabalhar, responder e-mails às três horas da manhã, eu precisei viajar e ficar longe de você, minha filha. As crianças não sabem de nada disso, e eu tenho certeza que se soubessem não pediriam nada muito caro. Um amigo meu, esses dias, perguntou ao filho o que gostaria de ganhar de aniversário. "Qualquer coisa, pai?", perguntou o filho. "Qualquer coisa, filho". Meu amigo trabalhava como um condenado e isso fez dele um homem muito rico. "Então, eu quero um dia inteiro com você, pai". O pedido de presente mais especial na vida daquele pai.
Vivemos a vida como se vive uma gincana, pagando contas, conhecendo pessoas, organizando a agenda, levando filho pra escola, ligando pra sogra pra ver se ela pode ajudar, colocando desenho na televisão, fica com o tablet agora pro papai poder trabalhar, papai trouxe um presente pra você da viagem. As crianças não sabem porque você tem que trabalhar, sair de casa todo dia, viajar no fim de semana, perder a festa de final de ano. A gente diz que tem que ser assim, um dia você vai entender, e a criança entende o recado. É assim que é a vida. A criança não nasce sabendo o valor das coisas, a gente ensina o valor das coisas pra ela.
"Filha", disse eu naquela tarde, "deixa essa caixinha aí e vamos continuar caminhando. Vai que a gente encontra alguma coisa mais legal?". Dez metros à frente, uma loja vendia adesivos de borboletas brilhantes. Olha, filha. Compra, pai? Cinquenta centavos. Você é o melhor pai do mundo. Foi o presente mais fantástico em meses: aqueles adesivos enfeitaram unhas, espelhos do banheiro, painel do carro. As borboletas tinham nomes, me acompanhavam coladas na minha roupa, de vez em quando ainda encontro algumas no bolso da calça. As crianças não nascem sabendo o valor das coisas. Os adultos também.


















Será que há alguém para amar? Ou será que há razões para amar alguém? - Contardo Calligaris

A heroína e protagonista de "Elle", de Paul Verhoeven, chama-se Michèle Leblanc. Isabelle Huppert é perfeita no papel de Michèle, mas não foi o charme da atriz que me conquistou; eu fiquei encantado com Michèle mesmo. E vou explicar meu encantamento.
Um homem aparentemente sem sentimentos, quem sabe até calculador ou manipulador, é sempre (ou quase sempre) aceitável. Ele pode incutir medo e desconfiança, mas sua "frieza" é compatível com os clichês da virilidade e até do charme.
Para uma mulher, claro, acontece o contrário. Deve ser por isso que as próprias pesquisas acadêmicas tendem a "verificar" que os homens são psicopatas ou sociopatas muito mais frequentemente do que as mulheres.
Verdade seja dita, há vários pesquisadores que se perguntam se a psicopatia nas mulheres não é diagnosticada menos do que deveria. E há estudos para mostrar que, quando uma mulher é psicopata, ela não é menos intensamente psicopata do que um homem.
E há mais uma verdade na qual eu acredito. Por óbvias razões, grande parte das pesquisas sobre psicopatia são feitas na população carcerária, ou seja, com psicopatas que fracassaram em seu intento e acabaram presos. Que tal imaginar que as mulheres sejam psicopatas de mais sucesso do que os homens e, portanto, soltas pelas ruas em maior número do que presas nos cárceres?
Tudo isso sem contar que as psicopatas femininas podem se esconder muito bem atrás do clichê do descontrole. Como as mulheres poderiam ser psicopatas, frias e contidas, se elas são (não é?) vítimas de seus próprios afetos? A aparente falta de controle seria quase uma garantia de que a mulher não é facilmente psicopata.
Os vilões do cinema e da literatura podem ser gélidos. As vilãs, salvo exceções, situam-se entre a Alexandra (Glenn Close), louca de amor, de "Atração Fatal", e Carrie destruindo o mundo com seu furor mental (ou "uterino", só falta dizer) em "Carrie, a Estranha".
Grandes exceções: a marquesa de Merteuil das "Ligações Perigosas", Catherine Tramell (inesquecível Sharon Stone), de "Instinto Fatal", e, justamente, Michèle Leblanc, de "Elle" (ou do romance "Oh...", de Philippe Djian, que inspira o filme).
Suspeito que o descontrole amoroso (e geralmente sentimental) das mulheres tenha sido inventado pelos homens para eles se protegerem do desejo sexual feminino, ou seja, para se convencerem de que as mulheres não têm um desejo sexual autônomo (que eles poderiam, por exemplo, ser incapazes de satisfazer).
Para os homens, as mulheres podem ser loucamente apaixonadas sem desejo sexual algum. Ou, se elas forem mesmo entregues a incontroláveis desejos sexuais, só pode ser porque, naquela ocasião, elas seriam vítimas de paixões amorosas.
Em suma, as mulheres só podem amar sem desejar ou desejar justamente o objeto de seu amor. O que importa é que elas não tenham fantasias e desejos sexuais que não sejam "justificados" pelo sentimento.
Contra esse clichê, há poucas exceções: Madame de Saint-Ange, da "Filosofia na Alcova", de Sade, e Joe (Charlotte Gainsbourg), de "Ninfomaníaca", de Lars von Trier –e Michèle, claro.
Nota: Michèle não é nem se torna cúmplice de seu estuprador –não no sentido de que ela "gostaria" de ser estuprada (como os mais babacas entre os homens podem sonhar). Mas Michèle descobre a fantasia de seu estuprador, pode brincar com ele e, digamos assim, não são os sentimentos que vão impedi-la de matá-lo.
Michèle não ama ninguém. Esse, para mim, é seu maior charme. Ela não é nenhum monstro de egoísmo: ela apenas não é um clichê.
Em vez de criticá-la por ela não amar ninguém, talvez valha a pena colocar as perguntas: será que existe alguém para amar? E será que existem razões para amar alguém?
Os sentimentos, sobretudo os que são considerados "bons", em geral são tentativas de desculpar nosso ódio ou de compensar sei lá qual dano passado, ou pior, de alimentar nosso narcisismo (eu te amo para que você me ame).
Ou seja, os sentimentos, vistos de perto, são quase sempre sinistros.
Houve épocas em que os homens se entregavam aos sentimentos tanto quanto as mulheres –e eles não pareciam menos homens por isso. Por exemplo, os sentimentos de Aquiles movem a "Ilíada" inteira: sua ira com Agamemnon, seu ciúmes por Briseide, seu luto pela morte de Pátroclo, sua vontade de vingança.
Justamente por tudo isso, Aquiles sempre me pareceu um grandão meio desmiolado e vulgar.
Prefiro Michèle.




sábado, 29 de abril de 2017

Carta a uma senhorita em Paris - Julio Cortazar


Andrée. Eu não queria viver em seu apartamento da Calle Suipacha. Não tanto pelos coelhinhos, mas porque me desagrada entrar em uma ordem fechada, construída até nas mais finas malhas do ar, essas que em sua casa preservam a música da lavanda, o adejar de um cisne, o jogo de violino e viola no quarteto de Rará. Para mim é duro entrar em um ambiente onde alguém que vive confortavelmente dispôs tudo como uma reiteração de sua alma, aqui os livros (de um lado em espanhol, do outro em francês e inglês), ali os almofadões verdes, neste exato lugar da mesinha, o cinzeiro de cristal que se parece com uma bolha de sabão, e sempre um perfume, um som, um crescer de plantas, uma fotografia do amigo morto, um ritual de bandejas com chá e pinças de açúcar… Ah, querida Andrée, que difícil opor-se, embora aceitando-a com inteira submissão do próprio ser, à minuciosa ordem que uma mulher instaura em sua agradável residência. Como é condenável pegar uma tacinha de metal e pô-la no outro extremo da mesa, pô-la ali simplesmente porque alguém trouxe seus dicionários de inglês e é deste lado, ao alcance da mão, que deverão estar. Mexer nessa tacinha equivale a pôr um horrível e inesperado vermelho em meio a uma modulação de Ozenfant, como se de repente as cordas de todos os contrabaixos rebentassem ao mesmo tempo, com o mesmo espantoso chicotaço, no instante mais suave de uma sinfonia de Mozart. Mexer nessa tacinha altera o jogo de relações de toda a casa, de um objeto com outro, de cada momento de sua alma com a alma inteira da casa e sua distante moradora. E eu não posso aproximar os dedos de um livro, ajustar de leve o cone de luz de um lampião, abrir a tampa da caixa de música, sem que um sentimento de ultraje e desafio me passe pelos olhos como um bando de pardais.

Você sabe por que vim a sua casa, a sua tranqüila sala festejada de sol. Tudo parece tão natural, como sempre, que não se sabe a verdade. Você foi a Paris, eu fiquei com o apartamento da Calle Suipacha, elaboramos um simples e satisfatório plano de mútua conveniência, até que setembro traga-a de novo a Buenos Aires e me atire a alguma casa onde talvez… Mas não lhe escrevo por isso, envio esta carta por causa dos coelhinhos, parece-me justo informá-la; e porque gosto de escrever cartas, e talvez porque chove.

Mudei-me na quinta-feira passada, às cinco da tarde, entre névoa e tédio. Fechei tantas malas em minha vida, passei tantas horas preparando bagagens que não levavam a parte nenhuma, que a quinta-feira foi um dia cheio de sombras e correias, porque quando vejo as correias das maletas é como se visse sombras, partes de um látego que me açoita indiretamente, da maneira mais sutil e mais horrível. Mas fiz as malas, avisei sua criada que viria instalar- me, e subi de elevador. Precisamente entre o primeiro e o segundo andar, senti que ia vomitar um coelhinho. Nunca lhe contara antes, não acredite que por deslealdade, mas naturalmente a gente não vai ficar explicando a todos que, de quando em quando, vomita um coelhinho. Como isso sempre me tem sucedido estando só, escondia o fato como se escondem tantos detalhes do que acontece (ou a gente faz acontecer) na intimidade total. Não me censure.

Andrée, não me censure. De quando em quando me acontece vomitar um coelhinho. Não é razão para não viver em qualquer casa, não é razão para que a gente tenha de se envergonhar e estar isolado e andar se calando.

Quando sinto que vou vomitar um coelhinho, ponho dois dedos na boca como uma pinça aberta, e espero sentir na garganta a penugem morna que sobe como uma efervescência de sal de frutas. Tudo é rápido e higiênico, transcorre em um brevíssimo instante. Tiro os dedos da boca, e neles trago preso pelas orelhas um coelhinho branco. O coelhinho parece contente, é um coelhinho normal e perfeito, só que muito pequeno, pequeno como um coelhinho de chocolate, mas branco e inteiramente um coelhinho. Ponho-o na palma da mão, levanto sua penugem com uma carícia dos dedos, o coelhinho parece satisfeito de haver nascido e bole e esfrega o focinho na minha pele, mexendo-o com essa trituração silenciosa e cosquenta do focinho de um coelhinho contra a pele de uma mão. Procura comer, e então eu (falo de quando isto ocorria em minha casa de campo) o levo comigo à varanda e o ponho no grande vaso onde cresce o trevo que plantei com esse fim. O coelhinho levanta suas orelhas, envolve o trevo novo com um veloz molinete do focinho, e eu sei que posso deixá-lo e ir embora, continuar por algum tempo uma vida não diferente da de tantos que compram seus coelhos nas granjas.

Entre o primeiro e o segundo andar. Andrée, como um aviso do que seria minha vida em sua casa, soube que ia vomitar um coelhinho. Em seguida tive medo (ou era surpresa? Não, medo da mesma surpresa, talvez), porque antes de deixar minha casa, só dois dias antes, tinha vomitado um coelhinho e estava livre por um mês, por cinco semanas, talvez seis com um pouco de sorte. Veja você, eu tinha resolvido inteiramente o problema dos coelhinhos. Plantava trevo na varanda de minha outra casa, vomitava um coelhinho, punha-o no trevo e, ao fim de um mês, quando suspeitava que de um momento para outro… então dava o coelho já crescido à sra. de Molina, que pensava ser um hobby meu e se calava. Já em outro vaso vinha crescendo um trevo novo e apropriado, eu esperava sem preocupação a manhã em que a cosquinha de uma penugem subindo fechava-me a garganta, e o novo coelhinho repetia desde aquela hora a vida e os costumes do anterior. Os costumes. Andrée, são formas concretas do ritmo, são a cota do ritmo que nos ajuda a viver. Não era tão terrível vomitar coelhinhos uma vez que isso havia entrado no ciclo invariável, no método. Você quererá saber por que todo esse trabalho, por que todo esse trevo e a sra. de Molina. Teria sido preferível matar em seguida o coelhinho e… Ah, você teria de vomitar tão somente um, pegá-lo com dois dedos e colocá-lo na mão aberta, ainda aderido a você pelo ato mesmo, pela aura inefável de sua proximidade apenas rompida, Um mês distancia tanto; um mês é tanto, pêlos compridos, saltos, olhos selvagens, diferença absoluta. Andrée, um mês é um coelho, faz de verdade um coelho; mas o minuto inicial, quando a mecha morna e bulidora encobre uma presença imutável… Como um poema nos primeiros minutos, o fruto de uma noite de Iduméia: tão da gente que a gente mesmo… depois tão não a gente, tão isolado e distante em seu raso mundo branco tamanho mapa.

Decidi, contudo, matar o coelhinho mal nascesse. Eu viveria quatro meses em sua casa: quatro — talvez, com sorte, três — colheradas de álcool no focinho, (Você sabe que a misericórdia permite matar instantaneamente um coelhinho dando-lhe de beber uma colherada de álcool? Sua carne então sabe

melhor, dizem, embora eu… Três ou quatro colheradas de álcool, logo o banheiro ou um pacote somando-se ao lixo,).

Ao passar o terceiro andar o coelhinho se mexia em minha mão aberta. Sara esperava em cima, para ajudar-me a entrar com as malas… Como explicar-lhe que um capricho, uma lojinha de animais? Envolvi o coelhinho em meu lenço, coloquei-o no bolsinho do sobretudo, deixando o sobretudo solto para não espremê-lo. Mal se mexia. Sua miúda consciência devia estar revelando fatos importantes: que a vida é um movimento para cima com um click final, e que é também um céu baixo, branco, envolvente e cheirando a lavanda, no fundo de um poço morno.

Sara não viu nada, fascinava-a muito o duro problema de ajustar seu sentido de ordem a minha mala-roupeiro, meus papéis e minha displicência diante de suas demoradas explicações, onde abunda a expressão “por exemplo”. Tão logo pude, me fechei no banheiro; matá-lo agora, Uma fina zona de calor rodeava o lenço, o coelhinho era branquíssimo e acho que mais lindo do que os outros. Não me olhava, somente bulia e estava contente, o que era o mais horrível modo de me olhar. Encerrei-o no pequeno armário vazio e me voltei para desfazer as malas, desorientado mas não infeliz, não culpado, não ensaboando as mãos para tirar delas uma última convulsão.

Compreendi que não podia matá-lo. Mas nessa mesma noite vomitei um coelhinho negro. E dois dias depois um branco. E na quarta noite um coelhinho cinza.

Você deve gostar do belo armário do seu quarto, com a grande porta que se abre generosa, as prateleiras vazias à espera da minha roupa. Agora guardo os ali. Ali dentro. Verdade que parece impossível; nem Sara acreditaria. Porque Sara não desconfia de nada, e não desconfia de nada por causa da minha horrível tarefa, uma tarefa que consome meus dias e minhas noites num só golpe de gatilho e vai me queimando por dentro e endurecendo como aquela estrela-do-mar que você pôs sobre a banheira e que a cada banho parece encher o corpo da gente de sal e açoites de sol e grandes rumores de profundidade.

De dia dormem. São dez. De dia dormem. Com a porta fechada, o armário é uma noite diurna somente para eles, lá dormem sua noite com sossegada obediência. Levo comigo as chaves do quarto ao sair para o trabalho. Sara deve pensar que ponho em dúvida sua honradez e olha-me desconfiada, noto todas as manhãs que está para me dizer algo, mas por fim se cala, e eu fico tão contente… (Quando arruma o quarto, das nove às dez, faço ruído na sala, ponho um disco de Benny Carter que toma todo o ambiente, e como Sara é também amiga de saetas e pasodobles, o armário parece silencioso e talvez esteja, porque para os coelhinhos agora é noite e hora de descanso.).

Seu dia principia nessa hora que vem depois da janta, quando Sara leva a bandeja com um miúdo tilintar de pinças de açúcar, deseja-me boa-noite — sim, deseja. Andrée, o mais triste é que me deseja boa-noite — e fecha-se em seu quarto e imediatamente estou só, só com o armário condenado, só com meu dever e minha tristeza.

Deixo-os sair, lançarem-se ágeis pela sala, cheirando vivamente o trevo que meus bolsos ocultavam e agora fazem no tapete efêmeras rendas que eles alteram, removem, consomem num instante. Comem bem, calados e corretos, até aquele instante nada tenho a dizer, somente os olho do sofá, com um livro inútil na mão — eu que queria ler todos os seus Giraudoux. Andrée, e a história argentina de Lopez que você tem na prateleira mais baixa —; e comem o trevo.

São dez. Quase todos brancos. Levantam a morna cabeça para as lâmpadas da sala, os três sóis imóveis do seu dia, eles que amam a luz porque sua noite não tem lua nem estrelas nem lampiões. Olham seu triplo sol e estão contentes. Por isso, pulam pelo tapete, pelas cadeiras, dez suaves manchas movimentam-se como uma constelação móvel, de um lado para outro, embora eu quisesse vê-los quietos, vê-los a meus pés e quietos — um pouco o sonho de todo deus. Andrée, o sonho jamais cumprido dos deuses —, não assim, insinuando-se atrás do retrato de Miguel de Unamuno, em torno do grande jarro verde-claro, pela negra cavidade da escrivaninha, sempre menos de dez, sempre seis ou oito, e eu me perguntando onde andarão os dois que faltam, e se Sara se levantasse por qualquer coisa, e a presidência de Rivadavia que eu queria ler na história de Lopez.

Não sei como resisto. Andrée. Você recorda que vim descansar em sua casa. Não é culpa minha se de quando em quando vomito um coelhinho, se esta mudança me alterou também por dentro — não é nominalismo, não é magia, apenas que as coisas não podem mudar assim de pronto, às vezes as coisas mudam brutalmente e quando você esperava a bofetada direita… Assim. Andrée, ou de outro modo, mas sempre assim.

Escrevo-lhe de noite. São três da tarde, mas escrevo-lhe na noite deles. De dia dormem. Que alívio este escritório coberto de gritos, ordens, máquinas Royal, vice-presidentes e mimeógrafos! Que alívio, que paz, que horror. Andrée! Agora me chamam ao telefone, são os amigos que se inquietam com minhas noites recolhidas, é Luis que me convida a caminhar ou Jorge que reservou entrada para um concerto. Quase não me atrevo a dizer-lhes que não, invento prolongadas e ineficazes histórias de má saúde, de traduções atrasadas, de evasão. E quando volto e subo de elevador — aquela passagem, entre o primeiro e o segundo andar — renovo noite a noite irremediavelmente a vã esperança de que não seja verdade.

Faço o que posso para que não destrocem suas coisas. Roeram um pouco os livros da prateleira mais baixa, você os encontrará escondidos para que Sara não note. Você gostava muito de seu lampião com o ventre de porcelana cheio de mariposas e cavaleiros antigos? O trincado mal se percebe, trabalhei toda a noite com um cimento especial que me venderam em uma casa inglesa — você sabe que as casas inglesas têm os melhores cimentos — e agora fico ao lado dele para que nenhum o alcance outra vez com as patas (é quase belo ver como gostam de se pôr em pé, lembrança do humano distante, talvez imitação de seu deus deambulando e os olhando carrancudo; além disso você terá percebido — em sua infância, talvez — que se pode deixar um coelhinho em penitência contra a parede, de pé, as patinhas apoiadas e muito quieto horas e horas).

Às cinco da manhã (dormi um pouco, estirado no sofá verde e despertando a cada corrida aveludada, a cada tilintar) coloco-os no armário e faço a limpeza. Por isso Sara encontra tudo em ordem, embora às vezes eu tenha notado nela algum assombro contido, um ficar olhando um objeto, uma leve descoloração do tapete, e de novo o desejo de perguntar-me algo, mas eu assobiando as variações sinfônicas de Franck, de maneira que nada. Para que contar-lhe. Andrée, as minúcias desventuradas desse amanhecer surdo e vegetal, em que caminho entredormido levantando cabos de trevo, folhas soltas, pêlos brancos, aos encontrões nos móveis, louco de sono, e meu Gide que se atrasa. Troyat que não traduzi, e minhas respostas a uma senhora distante que já estará se perguntando se… para que continuar tudo isto, para que continuar esta carta que escrevo entre telefones e entrevistas.

Andrée, querida Andrée, meu consolo é que são dez e não virão mais. Faz 15 dias segurei na palma da mão um último coelhinho, depois nada, somente os dez comigo, sua diurna noite e crescendo, agora feios e nascendo- lhes o pêlo comprido, agora adolescentes e cheios de necessidades e caprichos, saltando sobre o busto de Antínoo1 (é Antínoo, verdade, aquele rapaz que olha cegamente?) ou se perdendo no living onde seus movimentos criam ruídos ressonantes, tanto que dali devo tirá-los, com medo de que Sara os ouça e apareça horripilada, talvez em camisola — porque Sara deve ser assim, de camisola —, e então… Somente dez, pense você nessa pequena alegria que tenho, afinal de contas, na crescente calma com que dou volta
aos duros céus do primeiro e do segundo andar.

Interrompi esta carta porque devia participar de um trabalho de comissões. Continuo-a aqui em sua casa. Andrée, sob um mudo e grisalho amanhecer, É de fato o dia seguinte. Andrée? Um pedaço em branco da página será para você o intervalo, apenas a ponte que une meu escrito de ontem ao meu escrito de hoje. Dizer-lhe que nesse intervalo tudo terminou, onde você vê a ponte aberta ouço eu quebrar-se a cintura furiosa da água, para mim este lado do papel, este lado da minha carta não continua a calma com que eu vinha escrevendo, quando a deixei para participar de um trabalho de comissões. Em sua cúbica noite sem tristeza dormem 11 coelhinhos; talvez agora mesmo, mas não, não agora — no elevador, logo, ou ao entrar; já não importa onde, se o quando é agora, se pode ser em qualquer agora dos que me restam.

Agora chega, escrevi isto porque me interessa provar-lhe que não fui tão culpado na destruição irrecuperável de sua casa. Deixarei esta carta esperando-a, seria sórdido que o correio a entregasse em alguma clara manhã de Paris, À noite passada repus os livros da segunda estante; já os alcançavam, pondo-se de pé ou saltando, roeram as lombadas para afiar os dentes — não por fome, têm todo o trevo que lhes compro e armazeno nas gavetas da escrivaninha. Rasgaram as cortinas, os forros das cadeiras, a moldura do auto- retrato de Augusto Torres, encheram de pêlos o tapete e também gritaram, estiveram dando voltas sob o lampião, em círculo e como me adorando, e logo gritavam, gritavam como eu não acredito que gritem os coelhos.

Quis em vão tirar os pelos que estragam o tapete, arranjar a moldura da tela roída, fechá-los de novo no armário. O dia chega, talvez Sara se levante

agora. É quase estranho que Sara não me importe. E quase estranho que não me importe vê-los correr em busca de brinquedos. Não tive tanta culpa, você verá quando chegar que muitos dos destroços estão bem reparados com o cimento que comprei em uma casa inglesa, eu fiz o que pude para evitar-lhe um desgosto… Quanto a mim, do dez ao 11 há como um vazio insuperável. Você vê: dez estava bem, com um armário, trevo e esperança, quantas coisas se podem construir. Mas não com 11, porque dizer 11 é certamente dizer 12. Andrée, 12 que será 13. Então está o amanhecer e uma fria solidão na qual cabem a alegria, as recordações, você e talvez tantos outros. Está esta sacada sobre Suipacha cheia de aurora, os primeiros sons da cidade. Não acho que seja difícil juntar 11 coelhinhos salpicados sobre os paralelepípedos, talvez nem os notem, atarefados com o outro corpo que convém levar logo, antes que passem os primeiros colegiais.


Tradução de Remy Gorga Filho



Carta a uma senhorita em Paris - por Jorge Miguel Marinho





sexta-feira, 28 de abril de 2017

Ditadura: Duas Crônicas de Carlos Gerbase

29 de abril de 2016

INSTRUÇÃO


O ano era 1978. O Brasil era presidido pelo general Geisel. A abertura era lenta, segura e gradual, mas ninguém estava seguro quanto ao futuro da democracia. Contra minha vontade, eu era um soldado raso na Companhia de Comando da III Região Militar e, ao lado dos demais recrutas, recebia a Instrução – um conjunto de ensinamentos que nos habilitariam a servir à pátria de forma adequada.
Naquela tarde, o sargento Guasseli discorria sobre o Movimento Comunista Internacional e explicava que o mundo estava ameaçado por uma ideologia exótica, que não media esforços para subjugar todas as nações, exterminando a liberdade e instalando em seu lugar a ditadura do proletariado. Neste instante, não sei por que – um coágulo cerebral?, uma manifestação do caos?, um irresistível instinto suicida? – levantei o braço e pedi licença para falar. O sargento permitiu, e eu disse: “Na Itália, o Partido Comunista existe há muitos anos e participa das eleições. Ou seja: lá os comunistas têm vida política legal num contexto democrático”.
Senti 60 pares de olhos pousados sobre mim. Eles não precisavam falar nada para que eu entendesse: tinha cavado minha sepultura. O sargento disse: “Soldado, vou te responder, mas só no fim da aula”. Pronto, eu estava ferrado. Imaginei meu destino: um interrogatório minucioso, alguns dias na prisão, quem sabe um acidente durante um exercício de tiro... Ao final da Instrução, o Guasseli levou-me para um canto, olhou bem dentro dos meus olhos e disse:
“Isso que tu falou é verdade. Não estou acostumado com soldados que estão na universidade. Vou te pedir: não fala mais essas coisas. Dispensado!”. Bati continência e voei para o alojamento, onde fui recebido como um Lázaro, um ressuscitado. Cumpri o restante do meu serviço militar sem enfrentar qualquer consequência da minha manifestação.
Passados 38 anos do incidente, é incrível constatar que, hoje, muitos civis não conseguem conviver com quem pensa diferente deles. Ao contrário dos pequenos Hitlers que se multiplicam por aí, o sargento Guasseli, um homem simples, um militar em pleno sistema ditatorial, tinha noção exata do que significa a palavra tolerância.

Em tempo: nunca fui e nunca serei comunista. Meu coração é anarquista. Mas isso eu não contei para o sargento.


                        Os Novos Fascistas - Nenung & Projeto Dragão



André Dahmer

 27 de abril de 2017

MUSEUS DE GRITOS E SUSSURROS


Os gritos mais assustadores que ecoam na grande crise brasileira são os que pedem a “volta dos militares”, o que implica pedir a volta da ditadura. Ou alguém pensa na candidatura de um militar da ativa nas próximas eleições? Não tenho a menor dúvida de que existem generais democráticos e com espírito patriótico, mas duvido que algum deles vá fazer política nesse cenário conturbado.
Vou ignorar quem grita pela ditadura com plena consciência do que aconteceu no Brasil entre 1964 e 1988. Esses não têm remédio, embora a loucura, em especial dos poderosos, deva ser sempre bem vigiada. Escrevo para os que gritam na perigosa corrente da inconsciência histórica, navegando na própria ignorância.
Em Lisboa, no prédio que abrigou uma das prisões do regime salazarista, funciona o Museu do Aljube (do árabe “poço sem água”). Portugal enfrentou 48 longos anos de ditadura (1926 a 1974) que só terminou com a Revolução dos Cravos. O que aconteceu nesses anos todos pode ser revisto e relembrado nos três pisos desse museu: celas minúsculas, julgamentos de fachada, sessões de tortura, deportação para as colônias e assassinatos.
Em Santiago do Chile, o Museu da Memória e dos Direitos Humanos, em prédio imponente, cumpre a mesma função, mostrando o que fez Pinochet em seus anos de despotismo absoluto. Quem vai a esses lugares não busca obras de arte, nem alimento para o espírito. Mesmo que busque, encontrará apenas o testemunho de décadas de gritos de dor e sussurros de esperança.
Ouvi dizer que aquele sobrado amarelo na descida da rua Santo Antônio, em Porto Alegre – um centro clandestino de tortura conhecida como Dopinha entre 1964 e 1966 –, poderá ser transformado em sede de um memorial semelhante aos existentes em Lisboa e Santiago. É importante que isso aconteça, e logo.
Há milhões de jovens que querem, de coração, um Brasil melhor, mais honesto, mais justo, mas são levados por espertalhões a acreditar nos benefícios de uma intervenção inconstitucional que elimine a democracia. Eles precisam olhar pelas janelinhas das celas do Aljube ou do Dopinha e perceber que ali poderia estar um parente, um amigo, ou eles mesmos. Precisamos, urgente, de mais museus de gritos e sussurros





A boa vida - Cláudia Laitano

Dizem que nenhum livro muda o mundo. Livros mudam pessoas que, com algum esforço, tentam mudar o mundo. Para que isso aconteça, no entanto, é preciso que o livro não apenas proponha uma nova maneira de pensar ou sentir, mas que chegue aos leitores no momento certo – nem antes nem depois. Se O Segundo Sexo, clássico feminista de Simone de Beauvoir, tivesse sido escrito 50 anos antes, talvez nem chegasse às livrarias. Cinquenta anos depois, teria causado pouco ou nenhum impacto. Em 1949, provocou uma pequena grande revolução.

Quando se trata daquele mundinho íntimo formado pelas ideias ou sentimentos que impactam as nossas vidas de forma marcante, funciona mais ou menos do mesmo jeito. Temos que estar prontos para que livros (ou filmes, músicas, peças de teatro...) mudem as nossas vidas – ou pelo menos criem a sensação de que isso aconteceu. 

Mas mesmo quem gosta muito de ler não encontrará, ao longo de toda a vida, mais do que cinco ou seis experiências capazes de provocar essa sensação de Queda da Bastilha interior. Um livro que fique na memória não apenas pelo impacto estético que proporcionou, mas por causar um tipo de curto-circuito que, ao contrário de apagar todas as luzes, ilumina.

Na segunda-feira à noite, quando começaram a chegar as notícias sobre a morte do escritor norte-americano Robert M. Pirsig (1928-2017), autor de Zen e a Arte de Manutenção de Motocicletas (1974), uma frase se repetia com alguma frequência nos comentários dos seus leitores: “Este livro mudou a minha vida”. Li o romance aos 19 anos e nunca voltei a ele, mas também fui profundamente impactada pela história desse pai que vai para a estrada, de moto, na companhia do filho de 11 anos, refletindo sobre aquilo que alguns filósofos chamam de “a boa vida”.

Numa interpretação muito singela, encontrar “a boa vida” é descobrir qual é a sua no mundo e fazer o possível para não se perder muito nos atalhos. Aos 19 anos, não poderia ter recebido um conselho mais decisivo.

Quem gosta de ler abençoa todos os dias a facilidade de acesso proporcionada por livros e jornais digitais. Então fica aqui a dica para os leitores que ainda não se aventuram muito no mundo da leitura digital: quem é assinante da versão impressa da Zero Hora tem acesso a todo o conteúdo online sem custo adicional. Basta fazer o cadastro em zerohora.com/cadastro para folhear a réplica do jornal no computador, no celular ou no tablet. Em qualquer lugar do planeta – e sempre no momento certo.


O Segundo Sexo - Simone de Beauvoir





Zen e a Arte de Manutenção de Motocicletas



Sou contra - David Coimbra


Sou contra ketchup na batata frita. É das poucas instituições que desprezo na admirável civilização americana. Não consigo entender esse hábito, cultivado inclusive pelo presidente da República, Donald Trump. E se trata de algo ubíquo, porque a batata acompanha tudo por aqui. Eles botam batata frita no prato com bife e ao lado do hambúrguer, é claro, mas também no peixe e até, Cristo!, na massa.

Tenho uma teoria a respeito: o exagero da batata se deve à imigração irlandesa. Os irlandeses, como se sabe, padeceram com a Grande Fome da Batata, no século 19. Uma praga atacou as batatas de lá e um quarto da população irlandesa morreu de inanição. Ao fugir da miséria, eles se homiziaram nos Estados Unidos e, agora, enfim prósperos, pelo que anseiam? Obviamente, pelo que não tinham: a batata.

Muito natural, muito humano, mas por que o ketchup? Ketchup estraga a batata. Francamente. Aliás, sou contra sal no abacate, preciso deixar isso sublinhado. E sou contra morango na salada.

Sou contra lacinho no mocassim. Sou contra mocassim sem meia. Na verdade, sou contra mocassim. Mocassim é coisa de índio, e índio americano, não índio brasileiro. Índio brasileiro anda de chinelo de dedo, calção Adidas e cocar. E atira flecha na polícia do Congresso.

Vi os índios dando flechadas na polícia do Congresso, nesta semana. Ninguém saiu ferido, prova de que nossos índios são como o Pedro Rocha: não têm pontaria. São aculturados, talvez.

Conto sempre aquela história que li no livro do Peninha, sobre os ferocíssimos índios goitacazes: eles eram ótimos nadadores. Mergulhavam no mar do Rio de Janeiro com um pedaço de pau na mão. Procuravam o lugar que estivesse infestado de tubarões. Quando o tubarão atacava, querendo comer o índio, o índio metia aquela vara na boca do bicho e assim o imobilizava. O tubarão não conseguia mais mover a mandíbula. O índio, em seguida, enfiava o braço goela adentro do tubarão, até alcançar suas entranhas. Localizava o coração e o arrancava de um repelão.

Era desse jeito que os goitacazes caçavam tubarão.

Certamente não havia um só goitacaz entre os índios que desferiram flechadas inócuas na polícia de Brasília.

De qualquer forma, sou contra pessoas que atiram flechas em outras pessoas.

Quando guri, eu tinha um arco e flecha de plástico, com ponta de borracha para grudar na parede. Atirava na parede e nunca grudava. Uma tristeza. Sou como os índios inofensivos de Brasília, não como um goitacaz arrancador de corações de tubarão.

Uma vez, comi caldo de barbatana de tubarão, em um restaurante chinês. Foi horrível. É forte demais, fiquei três dias com o gosto daquela barbatana na boca.

Comida chinesa não é para mim. Em Pequim, eu e o Tulio Milman fomos a um restaurante e pedi peixe assado. A garçonete deslizou para a cozinha e voltou de lá com uma caixa de plástico do tamanho de um engradado de cerveja. Dentro, havia água. Na água, nadava um peixe.

– Esse? – ela me perguntou.

O peixe ficou me olhando, enquanto eu dizia que, sim, é esse mesmo. Aí ela saiu para matar o peixe. Aquilo me deixou meio chateado. Fiquei me lembrando da forma como ele me olhava. Não gosto de ver minha comida viva.

Comida chinesa é exótica em demasia para mim. Comida coreana, pior. Na Coreia do Sul, eles usam pimenta como os americanos usam batata. Qualquer comidinha de aparência inocente se transforma nas chamas do inferno quando você coloca na boca.

Sou contra comidas apimentadas demais. Na Coreia do Norte, eles colocam ainda mais pimenta do que na do Sul. Tem até um prato de ostras que eles cozinham com gasolina. Gasolina, por Deus. Sou contra.

Mas o pior da Coreia do Norte é aquele ditador deles. É agressivo, meio esquisito, não parece uma pessoa sensata. Inconfiável.

Só que o Trump pode ser descrito com as mesmas palavras. Ou seja: dois homens poderosos e pouco confiáveis se desafiando. Pode acabar em guerra. Todos somos contra a guerra.

O Trump, em vez de mandar submarinos nucleares para a Coreia, podia ficar quieto na Casa Branca, comendo batata frita com ketchup. Seria mais cauteloso.

Cautela: sou a favor.


Paterson

Oásis - Martha Medeiros


Os desertos me atraem. O silêncio absoluto em meio a um universo infinito. Nenhuma ansiedade, apenas o contato profundo consigo mesmo.
Vivo no oposto de um deserto, numa urbe habitada por muita gente, sonorizada por buzinas e freadas. Uma cidade que, como outras, induz a um comportamento automático e racional: trabalhar para ganhar meu sustento, trazer comida pra casa, combater meu sedentarismo com atividades físicas, socializar com meus pares, me informar sobre o que acontece no mundo, compartilhar minha opinião nas redes sociais, cuidar da minha saúde e da minha aparência. Nada disso é um castigo, mas toma todo o meu dia e, quando dou por mim, é hora de ir para a cama e dormir.
Algumas pessoas meditam, outras rezam, outras ainda se refugiam num bom livro – as escapatórias necessárias, uma volta para dentro de si, aquele momento chamado “seu”, fundamental.
Tenho os meus, e hoje em dia eles têm acontecido com mais regularidade dentro de uma sala de cinema. Nem Netflix, nem Now, nem DVD, nada se compara ao deslocamento físico e à introspecção buscada: ainda não abro mão do ritual do ingresso, assento, luzes apagadas, foco. É onde todos os meus instintos afloram (inclusive os assassinos: se você também não suporta quem faz barulho com sacos de balas e pipocas, testemunhe a meu favor caso eu vá a julgamento).
Nesta semana, assisti a Paterson, de um dos meus cineastas prediletos, Jim Jarmusch. Nada mais precário que um resumo de filme em três linhas, mas é sobre um motorista de ônibus que todos os dias, após o trabalho, leva seu cachorro pra passear pelo mesmo trajeto, toma uma cerveja no mesmo bar e volta para os braços da sua linda e mesma esposa, dormindo o sono dos justos – entrementes, escreve poemas num caderninho.
Só isso. Tudo isso.
Por tudo, entenda-se: todo dia repetitivo é também um novo dia. É preciso delicadeza na prática de qualquer convivência. Há poesia no cotidiano. Carinho também é amor. Ninguém é igual aos outros e ninguém é muito diferente dos outros. O que nos comove está sempre no subtexto.

Paterson é um oásis neste deserto às avessas, em que vivemos em meio a muito barulho sem sentimento, muito movimento sem pausa, muita relação sem entrega. Um momento seu para extrair de dentro da alma. Esta mesma alma que me escapa agora pela ponta dos dedos.



http://filmescult.com.br/paterson-2016/





'Paterson' - Fabrício Corsaletti

Acordei antes do despertador tocar, beijei minha namorada na testa, lavei o rosto, me vesti, passei pela cozinha, peguei uma banana, guardei no bolso do casaco, abri a porta da sala, chutei o jornal pra dentro, chamei o elevador, cumprimentei o porteiro, atravessei a rua e vim pra casa a pé.
Ainda não eram sete da manhã e a avenida Pacaembu já estava com trânsito pesado. Buzinas, música alta, gente gritando. Passei na frente do estádio. Como é bonito, pensei. Não só o edifício em si, mas também o lugar onde ele foi erguido, no meio de um vale. Lembrei de uma reportagem lida dias antes numa revista. Dizia que abriram um café ali na entrada. Imaginei mesas espalhadas entre as colunas, debaixo da laje, e em cima delas xícaras, cadernos, óculos, velas, laptops, copos de conhaque. Tirei o celular do bolso e me mandei um e-mail com o assunto "ir café pacaembu logo". Depois subi sem pressa a ladeira da Faap.
Sempre que eu caminhava naquele trecho me chamava a atenção uma janela enferrujada quase encoberta por um galho de goiabeira. De alguma forma, ela era o centro da paisagem. Ou o último fragmento de um mundo em extinção? Estudantes de mochila nas costas e cabeça baixa cruzavam o portão da faculdade. A luz caía fora dos relógios, nas cabeleiras das meninas atrasadas.
Quase parei na padaria da praça Vilaboim, mas fiquei com preguiça de falar com as pessoas. Um senhor de boina veio na minha direção com um cachorro de raça. Onde foram parar os vira-latas do Brasil? No vão das pernas dos mendigos, sem dúvida.
Na semana passada o caixa de uma papelaria me contou uma história louca sobre seus filhos. Demorei pra entender que não eram crianças, mas cachorros. Aí eu disse que também não tinha filhos e, assim como ele, adorava animais. Juro: achei que ele fosse me enfiar um lápis no olho. Por sorte, apenas chamou de fascista. Peguei meu troco e saí. Vivemos numa época estranha. O cara trata bicho como gente e gente como bicho, mas no fundo se considera uma pessoa boa. Quando se torna prefeito de São Paulo, sua primeira atitude é se deixar fotografar com um coala de estimação. No dia seguinte toca fogo nos índios da cracolândia.
Em vez de seguir em frente pelo parque Buenos Aires e tomar o caminho mais curto, peguei à direita e subi na direção da Paulista, entrei na Angélica, virei na rua do Sujinho e fiquei rodando pelo bairro. A maioria das lojas estava fechada. Nos botecos, operários de uniforme e botina tomavam café no balcão e trabalhadores em roupas sociais compravam pães de queijo pra comer no escritório.
Um dia vou abrir um bar, o Bar do Corsaletti. Vou chamar meu amigo Formiga pra comandar a grelha e o som. Vou ganhar dinheiro e olhar pro mapa-múndi como se fosse um cardápio. Vou parar de escrever e arrumar um monte de problemas. Vou beber o dobro e ter que parar de beber. Melhor não abrir bar nenhum. E além do mais tenho três livros pra terminar.
Sobrou pouco espaço pra falar de "Paterson", o novo filme de Jim Jarmusch. Mas concordo: os melhores poemas são escritos no ar, motoristas de ônibus vão salvar o planeta, a serenidade é cheia de fósforos.

Pedro Piccinini/Folhapress

Um brinde às inimigas - Manuela Cantuária

  Duas amigas em uma mesa de bar. Uma delas ergue seu copo. "Um brinde às inimigas, que elas tenham saúde em dobro para aplaudir nosso ...