INSTRUÇÃO
O ano era 1978. O Brasil era presidido pelo general
Geisel. A abertura era lenta, segura e gradual, mas ninguém estava seguro
quanto ao futuro da democracia. Contra minha vontade, eu era um soldado raso na
Companhia de Comando da III Região Militar e, ao lado dos demais recrutas,
recebia a Instrução – um conjunto de ensinamentos que nos habilitariam a servir
à pátria de forma adequada.
Naquela tarde, o sargento Guasseli discorria sobre o
Movimento Comunista Internacional e explicava que o mundo estava ameaçado por
uma ideologia exótica, que não media esforços para subjugar todas as nações,
exterminando a liberdade e instalando em seu lugar a ditadura do proletariado.
Neste instante, não sei por que – um coágulo cerebral?, uma manifestação do
caos?, um irresistível instinto suicida? – levantei o braço e pedi licença para
falar. O sargento permitiu, e eu disse: “Na Itália, o Partido Comunista existe
há muitos anos e participa das eleições. Ou seja: lá os comunistas têm vida
política legal num contexto democrático”.
Senti 60 pares de olhos pousados sobre mim. Eles não
precisavam falar nada para que eu entendesse: tinha cavado minha sepultura. O
sargento disse: “Soldado, vou te responder, mas só no fim da aula”. Pronto, eu
estava ferrado. Imaginei meu destino: um interrogatório minucioso, alguns dias
na prisão, quem sabe um acidente durante um exercício de tiro... Ao final da
Instrução, o Guasseli levou-me para um canto, olhou bem dentro dos meus olhos e
disse:
“Isso que tu falou é verdade. Não estou acostumado com
soldados que estão na universidade. Vou te pedir: não fala mais essas coisas.
Dispensado!”. Bati continência e voei para o alojamento, onde fui recebido como
um Lázaro, um ressuscitado. Cumpri o restante do meu serviço militar sem
enfrentar qualquer consequência da minha manifestação.
Passados 38 anos do incidente, é incrível constatar que,
hoje, muitos civis não conseguem conviver com quem pensa diferente deles. Ao
contrário dos pequenos Hitlers que se multiplicam por aí, o sargento Guasseli,
um homem simples, um militar em pleno sistema ditatorial, tinha noção exata do
que significa a palavra tolerância.
Em tempo: nunca fui e nunca serei comunista. Meu coração
é anarquista. Mas isso eu não contei para o sargento.
Os Novos Fascistas - Nenung & Projeto Dragão
27 de abril de 2017
MUSEUS DE GRITOS E SUSSURROS
Os gritos mais assustadores que ecoam na grande crise
brasileira são os que pedem a “volta dos militares”, o que implica pedir a
volta da ditadura. Ou alguém pensa na candidatura de um militar da ativa nas
próximas eleições? Não tenho a menor dúvida de que existem generais
democráticos e com espírito patriótico, mas duvido que algum deles vá fazer
política nesse cenário conturbado.
Vou ignorar quem grita pela ditadura com plena
consciência do que aconteceu no Brasil entre 1964 e 1988. Esses não têm
remédio, embora a loucura, em especial dos poderosos, deva ser sempre bem
vigiada. Escrevo para os que gritam na perigosa corrente da inconsciência
histórica, navegando na própria ignorância.
Em Lisboa, no prédio que abrigou uma das prisões do
regime salazarista, funciona o Museu do Aljube (do árabe “poço sem água”).
Portugal enfrentou 48 longos anos de ditadura (1926 a 1974) que só terminou com
a Revolução dos Cravos. O que aconteceu nesses anos todos pode ser revisto e
relembrado nos três pisos desse museu: celas minúsculas, julgamentos de
fachada, sessões de tortura, deportação para as colônias e assassinatos.
Em Santiago do Chile, o Museu da Memória e dos Direitos
Humanos, em prédio imponente, cumpre a mesma função, mostrando o que fez
Pinochet em seus anos de despotismo absoluto. Quem vai a esses lugares não
busca obras de arte, nem alimento para o espírito. Mesmo que busque, encontrará
apenas o testemunho de décadas de gritos de dor e sussurros de esperança.
Ouvi dizer que aquele sobrado amarelo na descida da rua
Santo Antônio, em Porto Alegre – um centro clandestino de tortura conhecida
como Dopinha entre 1964 e 1966 –, poderá ser transformado em sede de um
memorial semelhante aos existentes em Lisboa e Santiago. É importante que isso
aconteça, e logo.
Há milhões de jovens
que querem, de coração, um Brasil melhor, mais honesto, mais justo, mas são
levados por espertalhões a acreditar nos benefícios de uma intervenção
inconstitucional que elimine a democracia. Eles precisam olhar pelas janelinhas
das celas do Aljube ou do Dopinha e perceber que ali poderia estar um parente,
um amigo, ou eles mesmos. Precisamos, urgente, de mais museus de gritos e
sussurros
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