sexta-feira, 28 de abril de 2017

Ditadura: Duas Crônicas de Carlos Gerbase

29 de abril de 2016

INSTRUÇÃO


O ano era 1978. O Brasil era presidido pelo general Geisel. A abertura era lenta, segura e gradual, mas ninguém estava seguro quanto ao futuro da democracia. Contra minha vontade, eu era um soldado raso na Companhia de Comando da III Região Militar e, ao lado dos demais recrutas, recebia a Instrução – um conjunto de ensinamentos que nos habilitariam a servir à pátria de forma adequada.
Naquela tarde, o sargento Guasseli discorria sobre o Movimento Comunista Internacional e explicava que o mundo estava ameaçado por uma ideologia exótica, que não media esforços para subjugar todas as nações, exterminando a liberdade e instalando em seu lugar a ditadura do proletariado. Neste instante, não sei por que – um coágulo cerebral?, uma manifestação do caos?, um irresistível instinto suicida? – levantei o braço e pedi licença para falar. O sargento permitiu, e eu disse: “Na Itália, o Partido Comunista existe há muitos anos e participa das eleições. Ou seja: lá os comunistas têm vida política legal num contexto democrático”.
Senti 60 pares de olhos pousados sobre mim. Eles não precisavam falar nada para que eu entendesse: tinha cavado minha sepultura. O sargento disse: “Soldado, vou te responder, mas só no fim da aula”. Pronto, eu estava ferrado. Imaginei meu destino: um interrogatório minucioso, alguns dias na prisão, quem sabe um acidente durante um exercício de tiro... Ao final da Instrução, o Guasseli levou-me para um canto, olhou bem dentro dos meus olhos e disse:
“Isso que tu falou é verdade. Não estou acostumado com soldados que estão na universidade. Vou te pedir: não fala mais essas coisas. Dispensado!”. Bati continência e voei para o alojamento, onde fui recebido como um Lázaro, um ressuscitado. Cumpri o restante do meu serviço militar sem enfrentar qualquer consequência da minha manifestação.
Passados 38 anos do incidente, é incrível constatar que, hoje, muitos civis não conseguem conviver com quem pensa diferente deles. Ao contrário dos pequenos Hitlers que se multiplicam por aí, o sargento Guasseli, um homem simples, um militar em pleno sistema ditatorial, tinha noção exata do que significa a palavra tolerância.

Em tempo: nunca fui e nunca serei comunista. Meu coração é anarquista. Mas isso eu não contei para o sargento.


                        Os Novos Fascistas - Nenung & Projeto Dragão



André Dahmer

 27 de abril de 2017

MUSEUS DE GRITOS E SUSSURROS


Os gritos mais assustadores que ecoam na grande crise brasileira são os que pedem a “volta dos militares”, o que implica pedir a volta da ditadura. Ou alguém pensa na candidatura de um militar da ativa nas próximas eleições? Não tenho a menor dúvida de que existem generais democráticos e com espírito patriótico, mas duvido que algum deles vá fazer política nesse cenário conturbado.
Vou ignorar quem grita pela ditadura com plena consciência do que aconteceu no Brasil entre 1964 e 1988. Esses não têm remédio, embora a loucura, em especial dos poderosos, deva ser sempre bem vigiada. Escrevo para os que gritam na perigosa corrente da inconsciência histórica, navegando na própria ignorância.
Em Lisboa, no prédio que abrigou uma das prisões do regime salazarista, funciona o Museu do Aljube (do árabe “poço sem água”). Portugal enfrentou 48 longos anos de ditadura (1926 a 1974) que só terminou com a Revolução dos Cravos. O que aconteceu nesses anos todos pode ser revisto e relembrado nos três pisos desse museu: celas minúsculas, julgamentos de fachada, sessões de tortura, deportação para as colônias e assassinatos.
Em Santiago do Chile, o Museu da Memória e dos Direitos Humanos, em prédio imponente, cumpre a mesma função, mostrando o que fez Pinochet em seus anos de despotismo absoluto. Quem vai a esses lugares não busca obras de arte, nem alimento para o espírito. Mesmo que busque, encontrará apenas o testemunho de décadas de gritos de dor e sussurros de esperança.
Ouvi dizer que aquele sobrado amarelo na descida da rua Santo Antônio, em Porto Alegre – um centro clandestino de tortura conhecida como Dopinha entre 1964 e 1966 –, poderá ser transformado em sede de um memorial semelhante aos existentes em Lisboa e Santiago. É importante que isso aconteça, e logo.
Há milhões de jovens que querem, de coração, um Brasil melhor, mais honesto, mais justo, mas são levados por espertalhões a acreditar nos benefícios de uma intervenção inconstitucional que elimine a democracia. Eles precisam olhar pelas janelinhas das celas do Aljube ou do Dopinha e perceber que ali poderia estar um parente, um amigo, ou eles mesmos. Precisamos, urgente, de mais museus de gritos e sussurros





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