quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

Araminhos / O araminho de fechar pão - Antonio Prata


Araminhos

Um dia, na quarta série, ao lado da cantina, o Douglas me contou uma piada. Vou resumir, porque o espaço é curto e a piada é péssima. Os americanos estavam construindo um super caça e tinham um problema: nos testes, a asa sempre quebrava, no mesmo lugar. Os melhores engenheiros da NASA foram chamados. Mexeram no projeto, usaram aço, titânio, até diamante: nada resolvia.
Então um servente que varria o hangar sugeriu fazerem vários furinhos no lugar em que a asa costumava quebrar. Os furos foram feitos. A asa não quebrou. Quando perguntaram pro cara de onde havia tirado aquela solução bizarra, ele respondeu: “Simples, é a velha lógica do papel higiênico: nunca rasga na linha picotada”.
Pois é, eu avisei que a piada era péssima. Eu já achei péssima na quarta série e continuo achando péssima, hoje. Por que, então, Jesus amado, guardo essa tralha na memória, por tantos anos? Não foi um momento marcante. O Douglas nem era muito meu amigo. Não me tornei engenheiro, brigadeiro ou fabricante de papéis higiênicos. De tempos em tempos, contudo, a cena é reexibida na tela da consciência, como um desses filmes mala que reprisam todo ano, desde 1988, na Sessão da Tarde.
Ontem, procurando o saca-rolhas numa gaveta da cozinha, lembrei de novo da piada. É que encontrei, entre facas, escumadeiras e abridores de lata, um desses araminhos de fechar pão. Eu não guardei o araminho na gaveta. Minha mulher também não. Ou seja: ele deve ter caído ali um dia e, como ninguém jamais se preocupou em tirá-lo, foi ficando. A piada do Douglas é como esse araminho, pensei. Minha cabeça é uma gaveta cheia de araminhos.
Na primeira série eu tinha um estojo jeans, com zíper. Durante as aulas, eu ficava mordendo o zíper. Depois de um tempo, sentia os dentes meio que latejando. Pareciam imantados. Alguns anos mais tarde, fui a uma praia em Ubatuba, a areia estava coberta de sargaço e o cheiro (metálico?) daquelas algas fez com que eu sentisse nos dentes o mesmo latejar. De vez em quando topo com uma praia cheia de sargaços, sinto os dentes meio que latejando, resmungo, mentalmente, “ah lá o negócio do zíper”, depois me esqueço.
A minha amiga Letícia detesta peixe. Odeia tanto que chega a sentir gosto de peixe em alimentos nada piscosos. Biscoitos de polvilho, por exemplo. É raro, mas acontece. Faz 10 anos, desde que ela me contou dessa alucinação gustativa, que sempre que eu como biscoito de polvilho, lembro da Letícia e da história do peixe. Gosto da Letícia. Lembrar dela não é ruim. Mas ser obrigado a rememorar a história sempre que como um biscoito de polvilho me parece um desvio desnecessário, um pedágio mental que sou obrigado a pagar.
Qual o sentido dessas três insignificâncias, dessas três caspinhas mentais que, pela primeira vez, espano da minha cabeça e faço pousarem na folha do jornal? Não tenho a menor ideia. Desconfio, aliás, que não haja sentido algum – eu, que sou viciado em sentido, que acredito que tudo tem um porquê e um como e um pra onde. Freud, Darwin, os genes, a ressonância magnética e a semiótica: eles explicam as facas, as escumadeiras e abridores de lata, na gaveta, mas e os araminhos? Por que, Jesus amado, guardo essa tralha na memória, por tantos anos?

NÍQUEL NÁUSEA   -   FERNANDO GONSALES



Adams Carvalho/Folhapress


O araminho de fechar pão

Se aceitarmos que de segunda a sexta-feira os dias são úteis, devemos necessariamente aceitar que sábado e domingo são dias inúteis. É inútil, portanto: ir ao cinema, ao teatro, fazer piquenique no parque com os filhos, almoçar com a família, tomar cerveja com os amigos, ler um livro, passar a madrugada acordado vendo “Seinfeld” ou “Amarcord”.  
De fato, todas as atividades supracitadas são inúteis se medidas pela régua da produtividade. Claro que se pode defender filmes, séries, peças e livros afirmando que o enriquecimento cultural faz de você um melhor profissional. Também deve ser possível defender o piquenique com os filhos ou a cerveja com os amigos afirmando que pessoas que cultivam laços familiares e sociais são mais estáveis, seguras e resilientes no trabalho. Mas essa lógica que avalia as experiências culturais e as relações afetivas por seus incrementos à carreira, que justifica a própria felicidade por sua contrapartida laboral, é a lógica dos que batizaram os “dias úteis”. Prefiro, em vez de tentar encontrar o que há de útil no supostamente inútil, enxergar o que há de inútil no útil. 
Embora o senhor ou a senhora certamente discordem, são absolutamente inúteis. Não se ofendam, eu também sou. Daqui a cinquenta, cem, mil, dez mil anos, ninguém vai se lembrar de nós. Talvez, inclusive, porque talvez daqui a cinquenta, cem, mil, dez mil anos, já não haja mais ninguém aqui para se lembrar de coisa alguma, pois a humanidade pode já ter se extinguido. A humanidade, aliás, também é inútil. A Terra não só viveria perfeitamente sem nós como certamente viveria melhor. A Terra, aliás, também é inútil. Uma bolinha perdida girando em torno de uma estrela entre outros 200 bilhões de estrelas de uma galáxia entre outros 2 trilhões de galáxias. 
Apesar de nossa astronômica insignificância, andamos por aí afobados, crentes de sermos os centros do universo, conferindo o WhatsApp a cada trinta segundos e falando orgulhosos “desculpa mandar áudio, é que eu tô correndo pra uma reunião, preciso da planilha de custos da mudança no material de revestimento do araminho de fechar pão até sexta, isso é muito importante, tá ouvindo?! Até sexta!”
Às vezes eu penso no cara que inventou o araminho de fechar pão. Imagino-o esbaforido pelos corredores de uma de suas fábricas, dizendo pra secretária ligar para a sua esposa e avisar que não volta para jantar, terá uma reunião crucial para seu império de araminho de fechar pão, ele não descansará enquanto em algum canto do globo um pão ainda for fechado de outra forma que não com seu araminho de fechar pão. Um gênio, ele devia se achar. O centro do universo. O homem que revolucionou a maneira de fechar pão.
Cada um de nós tem seu araminho de fechar pão e se dedica de segunda a sexta a essa missão tão crucial e inútil para o futuro do cosmos. A juventude escoando, os filhos crescendo, os amigos se distanciando e a gente aqui, se achando super cool por estar suando às bicas sob esses antolhos contemporâneos, acreditando piamente que há mais virtude em pagar um boleto na internet às oito da manhã de segunda do que em assistir “Seinfeld” ou “Amarcord” na madrugada de domingo. Eta vida besta, meu Deus.



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