domingo, 31 de março de 2019

Más Notícias - Luis Fernando Verissimo

Um dia você se olhará no espelho e terá uma revelação estarrecedora. Sua mulher está dormindo com outro homem! Depois descobrirá que o que vê no espelho não é outro, é você mesmo. Só que, por uma razão inexplicável, você está mais velho.
Os espelhos são de uma franqueza brutal. Na era das relações públicas, é inadmissível que a sua imagem trate você com tanta crueza. É inaceitável que o espelho lhe diga “você está com 50 (ou 60, ou, meu Deus, 70) anos assim, na cara, mesmo que quem diga seja a sua própria cara. E de manhã, na hora em que, ainda amarrotado pelo sono e antes de botar o rosto que usará durante o dia, você está mais vulnerável.
Se a cena pudesse ser confiada a um profissional da comunicação, seria diferente. Infelizmente, as piores notícias são sempre dadas por amadores. Num mundo mais justo, sua imagem no espelho poderia ser apresentada por um especialista em marketing, e em vez da sua cara no espelho revelador, você veria, por exemplo, a Patrícia Poeta.
– Patrícia! Você por aqui?
– Vim para lhe dizer que você ficará muito bem, com cabelo grisalho. Aumentará sua credibilidade. Será ótimo para os negócios.
– Eu acho que estou perdendo cabelos.
– E daí? Cabelo demais é desperdício. Os fios que ficam são os melhores.
– Será?
– As rugas realçarão seu caráter. E se um queixo já enfatiza sua masculinidade, imagine dois.
– Patrícia. Cabelos grisalhos, rugas, queixo duplo... Você quer me dizer que eu estou ficando... Velho?
– Maduro.
Ou então você deveria poder mergulhar de ponta-cabeça no espelho para descobrir como seria sua vida do outro lado dos 50 (ou 60, ou, meu Deus, 70). E se consolar com o fato de que ela não será muito diferente da vida que você leva hoje – com alguns reajustes. Você terá que evitar carnes brancas, morenas e mulatas, principalmente depois das refeições. E deixar de frequentar motéis com escadaria. Fora isso... Que venham as rugas!

sexta-feira, 29 de março de 2019

Aquela casa do Cosme Velho - Ignácio de Loyola Brandão

Não demoro, coloco a primeira frase. Eu a tenho usado dezenas de vezes. Para mim, não existem acasos, coincidências ou o que se chama agora simultaneidade. A vida traça pontos e, quando percebemos, eles estão ligados. Comecemos pela casa do Cosme Velho, no Rio de Janeiro. No dia da eleição, o candidato à Academia Brasileira de Letras deve estar naquela cidade para esperar o telefonema do presidente da ABL, que irá comunicar sua eleição para a vaga pretendida. Em seguida, um grupo de acadêmicos se dirige ao local para os cumprimentos, sendo recebidos com um coquetel. É o cerimonial da celebração.
Quando a eleição se aproximava, e como moro em São Paulo, veio a questão: onde esperar o chamado? Quando a editora Global pensava em alugar um espaço ou reservar hotel, recebi um e-mail de Cicero Sandroni, também acadêmico e amigo de muitos anos. Ele me disse: “Dois eleitos esperaram o anúncio aqui em minha casa, Nelson Pereira dos Santos e José Murilo de Carvalho. Ela, a casa, está à sua disposição. Laura e eu vamos ter o maior prazer se você aceitar”. Ora, adoro Laura Sandroni, das maiores especialistas em literatura infantil deste Brasil e presidente emérita da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Respondi sim e a Global preparou a festa.
No dia, chegamos cedo ao Rio de Janeiro, fomos para o hotel e as horas não passavam. Deveria chegar no máximo às 16h30 à casa de Laura e Cicero, no Cosme Velho, bairro onde morou Machado de Assis. No táxi, inquietos, Marcia, Rita e eu, nos vimos envolvidos pelas manifestações pró-Marielle (esta sim, tornada mito) no aniversário de sua morte. Tudo parado, o motorista tentava se desviar, mas não há muitas variáveis no trânsito do Rio. 
De repente o telefone tocou, era Marco Lucchesi, o presidente da Academia me comunicando: “Vitória unânime. Já estamos indo ao seu encontro”. E eu não estava lá. Apesar do ar condicionado, ansioso, comecei a suar dentro do carro. E se não chegasse antes? Quebraria o ritual? Estava começando mal? 
Chegamos. A casa de Cicero e Laura, aconchegante, fica numa encosta de morro, rodeada de verde. Entrei atordoado, pareceu-me atravessar uma névoa, fui abraçando, reconhecendo as pessoas, tirei fotos com todo mundo, fui levado por fotógrafos, puxado por cinegrafistas, pessoas amigas chegavam, também atrasadas, contentes, a festa rolou. Por horas, aquela família Sandroni, Laura, Paula, Luciana, Cicero e Dudu foram a minha família, eram anfitriões e como que parentes. Pura emoção.
Então, tudo ficou claro. Minha vida tinha muito a ver com esta casa onde eu nunca tinha entrado. No entanto, ela fez parte de minha vida em um momento dos mais importantes para o País, para a cultura e para mim. Aqui nasceu um dos movimentos na luta contra a ditadura militar (essa que Bolsonaro diz não ter existido). Nesta casa, no final de 1976, foi redigido o Manifesto dos 1.046 intelectuais que ousaram repudiar a censura que corria solta. Tudo feito em sigilo, como era necessário, para evitar represálias, prisões e outras coisas desagradáveis (que nosso presidente admite serem necessárias) que costumavam acontecer na época.
No Manifesto, entre outros, figuram nomes como os de Antonio Candido, Sergio Buarque de Holanda, Jorge Amado, Antonio Callado, Carlos Heitor Cony, Otto Maria Carpeaux, Carlos Drummond de Andrade, Otto Lara Resende. 
Foi, desde 1968, a maior manifestação de intelectuais, contra o golpe militar de 1964. Na “sequência de inexplicáveis arbítrios”, diz o documento, “a censura proibira os livros Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca, Aracelli, Meu Amor, de José Louzeiro, e Zero, de Ignácio de Loyola Brandão. O documento destinava-se a frear o trator dos censores, acentuando com veemência: “Nós, para quem a liberdade de expressão é essencial, não podemos ser continuamente silenciados. O nosso amordaçamento há de equivaler ao silêncio do próprio Brasil e à sua inequívoca conversão em país que muito pouco terá a dizer brevemente”.
Zero, escrito durante dez anos, me lançou primeiro nacional e internacionalmente. Graças à coragem de Lygia Jobim, uma editora audaciosa, saiu no Brasil, foi proibido, liberado, está até hoje circulando. Sem ele, não seria o que sou hoje. Nada teria acontecido. Caminhei pela casa do Cosme Velho, ali tinham se reunidos defensores da liberdade de expressão, da cultura, da fala, das opiniões contrárias. Tudo que parece ameaçado de novo outra vez.

quarta-feira, 27 de março de 2019

Bombeiros, taxistas e professores - Roberto DaMatta

“Quem sabe, faz; quem não sabe, ensina!”
Ouvi esse estúpido mantra brasileiro desde menino e, quando me tornei um profissional do ensino, pensei muito nesse horror nacional ao estudo e à reflexão, ao lado do entusiasmo permanente com a malandragem e suas éticas e métodos que estudei em Carnavais, Malandros e Heróis, um livro que, por sinal, completa 40 anos. Quem gostava de ler e escrever – e eu sempre fui um devorador de livros porque fazia muitas perguntas para o mundo –, tinha como destino ser pobre ou louco. “Esse menino vai enlouquecer: ele vive lendo...” Sempre tomei essa admoestação como um aviso inútil, porque eu já sabia da minha loucura. 
Mas depois de décadas vivendo de ler, ensinar, escrever e estudar (que, entre outras coisas, é ler até compreender), treinado pelo compasso de uma sociologia comparativa, acho que entendo a reação negativa que a leitura causa no estilo de vida brasileiro. 
A mais importante é, sem dúvida, o rompimento relativo com o grupo social e familiar, já que o livro isola, individualiza e torna o descendente mais sabido do que o ancestral ou  mais rico. A sabedoria é (ou era...) modesta. Ela atua silenciosamente, mas, quando aparece, desmascara a ignorância, quebrando o controle absolutista da autoridade dos pais e dos poderosos. Pode, então, assumir uma feição perigosa num sistema tão amarrado em si mesmo como o nosso. Quase sempre, ler é desobedecer...
Aliás, toda sociedade que universalizou o seu saber se tornou mais igualitária, criando contextos competitivos saudavelmente meritocráticos. Esse aprendizado que o poder à brasileira, baseado nos privilégios do cargo e nos favores pessoais, entende como “fazer política”: isto é, tomar cafezinho, “arrumar colocação” e conversar!
Mesmo nesse Brasil até hoje condenado à ignorância como valor, a melhor escolha é um livro.
*
No final do século 19, dois jovens italianos resolvem imigrar. O mundo se abria para eles na forma de um símbolo de bem-estar social chamado América e de um outro chamado Brasil. Um era frio e puritano; o outro, tropical e misturado – católico. 
Decidiram pelo Brasil e vieram parar em São Paulo onde, em 1888, se tentava branquear a sociedade, mas não havia pão; exceto os fabricados em casa. O mais velho, Nicolau, adaptou-se, o mais novo, Victorio, achou a falta de pão um acinte e partiu para New Jersey, Estados Unidos.
Lá, empregou-se justamente num pioneiro restaurante pizzaria, orgulhoso de manufaturar o próprio pão. Nicolau acabou fundando sua família em Minas Gerais e Victorio fez o mesmo em New Jersey. Diz o folclore da família (que o espírito da literatura me dá o direito de ficcionalizar) que um dos filhos de Victorio,  Salvatore, foi vizinho da família Sinatra em Hoboken e que sua irmã, Sofia, namorou o cantor.
O tempo passou e um dos netos de Nicolau, Vicenzo, virou jornalista, fez um brilhante curso de História em Belo Horizonte e, no Rio de Janeiro, especializou-se em Antropologia Social no Museu Nacional e ali foi pesquisador. Aposentou-se nominalmente, pois continua atuando em Brasília. 
Pelo seu trabalho como professor, educador e pesquisador de ameríndios da área de um Goiás então inóspito e por ter realizado trabalho de campo numa sociedade indígena virgem de estudos, Vicenzo foi honrado com uma bolsa de pesquisa concedida pelo Peabody Museum da Universidade de Harvard. Assim que chegou a Cambridge, Massachusetts, localizou seus tios e primos da família que havia escolhido os Estados Unidos e vivia em New Jersey.
Organizou-se um jantar em sua homenagem. Ao chegar à casa de um dos primos, que exercia a nobre profissão de bombeiro, Vicenzo não pôde deixar de notar o conforto da residência forrada de tapetes e tendo um aparato de cozinha moderno. Ficou impressionado com a geladeira e assombrado com o belo carro Oldsmobile azul de transmissão automática do primo. 
Vicenzo que ainda não tinha uma televisão ou uma torradeira elétrica, e muito menos um carro no Brasil, surpreendeu-se mais ainda com o modo respeitoso e quase bíblico com o qual foi recebido quando seus outros primos chegaram e apertaram sua mão orgulhosos de ter um “professore” e um autor de livros científicos na família.
Sou um mero professor, repetia Vicenzo com o copo cheio de bom vinho, enquanto a família americana, constituída de bombeiros, marceneiros e taxistas, reiterava que ele era o “professore”. Era o  que educava e, com a aparentemente fraca, mas penetrante luz da inteligência,  tentava tornar o mundo um lugar mais feliz e justo. Muito diferente do Brasil onde ninguém reconhecia o seu trabalho como intelectual e onde ele, angustiado, viu na televisão o seu amado Museu Nacional – que ele imaginava eterno – pegar fogo.

terça-feira, 26 de março de 2019

No dia em que eu for muito culta - Ruth Manus

Um dia eu pretendo ser muito culta. Mas um tipo de pessoa culta na qual tudo parece absolutamente natural. As afirmações mais interessantes e os comentários mais pertinentes fluirão com tamanha leveza que ninguém jamais aventará a hipótese de ser um comportamento guiado pela arrogância. Um dia serei uma pessoa inevitavelmente culta, daquelas que parecem que já nasceram sabendo tudo aquilo e que a cultura, nelas, é tão natural quanto unhas e dentes e cabelos.
Quando for muito culta, ouvirei os nomes das árvores e a imagem delas virá naturalmente até os meus pensamentos. Não precisarei da Barsa, nem do Google. Conhecerei o tronco da seringueira, as folhas do jatobá, os galhos da sequoia e as flores do mogno como conheço a palma da minha própria mão. Caminharei pela rua e direi tranquilamente que os manacás ficam mesmo lindos nessa época do ano.
Quando eu for muito culta, eu saberei diferenciar a quinta da nona sinfonia de Beethoven com obviedade. E a sinfonia número 40 de Mozart me lembrará concertos aos quais já fui e não o toque do velho despertador azul que meu pai tinha na mesa de cabeceira quando eu era criança. Também identificarei com naturalidade quais são os sambas de Nelson Sargento, Riachão e de Dona Ivone Lara. Cantarei as letras de Cartola e Noel com a mesma facilidade com a qual berro os versos de Adoniran em madrugadas embriagadas.
Quando eu for muito culta, terei lido todas as obras-primas dos grandes escritores russos. Tolstoi, Gogol, Chekhov, Dostoievski. E, sobretudo, saberei escrever todos esses nomes sem medo de errar. Outros nomes que saberei escrever sem dúvida alguma serão Schopenhauer, Heidegger, Nietzsche e Kierkegaard. Mencionarei filósofos como quem menciona personagens de novela: próximos, íntimos e passíveis de um juízo de valor exclusivamente meu. Hannah Arendt e Simone de Beauvoir serão como amigas com quem sempre conversei na mesa do bar.
Quando eu for muito culta, serei a rainha das proparoxítonas. Escreverei frases encantadoras como “aquele príncipe húngaro míope, andrógino e bígamo, desceu uma escada íngreme e úmida, ávido por emoções efêmeras, mas foi empurrado por um vândalo nômade e afogou-se num pântano cheio de angústia”. Conhecerei tão, mas tão bem as proparoxítonas da língua portuguesa, que a Construção do Chico parecerá apenas uma pequena ampola dessas palavras mágicas.
Quando eu for muito culta, encontrarei utilidade para tudo o que me ensinaram (ou pelo menos tentaram me ensinar) na escola. Identificarei as orações subordinadas substantivas completivas. Diferenciarei plantas briófitas, pteridófitas, angiospermas e gimnospermas. Aplicarei a distributiva a torto e a direito, depois de resolver boa parte dos problemas da minha vida com a fórmula de Bhaskara. Olharei os rótulos dos meus cosméticos identificando propanona e formaldeído. Ao fazer curvas inexatas com meu carro entenderei se o fato foi obra da força centrípeta ou da força centrífuga. Reconhecerei se o solo no qual piso é arenoso, argiloso, humoso ou calcário. Honrarei cada centavo que meus pais gastaram com a minha educação.
Quando eu for muito culta, todos saberão que sou culta, menos eu. Eu julgarei que todas aquelas são informações absolutamente naturais, cultura atávica talvez. Não julgarei os que não sabem, mas eu sempre saberei. Farei jus ao meu espaço nas folhas do jornal e ao meu título de doutora. Não deverei nada a ninguém. Não haverá brecha para formularem questões sobre merecimento ou privilégios. Será claro e evidente que esta mulher, tão assustadoramente culta, apesar de tudo, não poderia não estar onde está.

Boas-pintas - Luis Fernando Verissimo

A foto do Bellini levantando a taça no final da Copa do Mundo de 58, na Suécia, a primeira que nós ganhamos, virou ícone instantâneo. De todas as imagens que ficaram daquela Copa sem TV – o Garrincha fazendo vários Joões dançarem, o Didi pegando a bola no fundo do nosso gol depois que a Suécia marcou primeiro, no último jogo, e caminhando com ela embaixo do braço como um pai carregando uma criança malcriada pra casa, o lençol do Pelé sobre um sueco atônito antes de marcar o mais bonito dos seus seis gols na competição –, a do gesto triunfal do Bellini foi a que mais ficou.
Tanto que, dizem, nas convocações para as Copas futuras houve a preocupação de se prever a repetição da cena: quem levantasse a taça teria que ser uma figura igualmente hierárquica e bonita
Na Copa seguinte – 62, no Chile –, o Bellini estava na delegação, mas o titular foi o paulista Mauro, que também era alto e, como se dizia na época, boa-pinta, e fotogênico. Foi ele quem levantou a taça. Não sei se é verdade, mas contavam que depois do Bellini o quesito “boa-pinta” passou a ser critério para escolha do capitão, ou pelo menos de um dos zagueiros, da Seleção.
Só isto explicaria a convocação, por exemplo, do baiano Fontana, um jogador supostamente medíocre, mas bonito, que fazia dupla com o Brito no Vasco da Gama e não faria feio imitando o Bellini de 58 numa vitória no México em 70. Fontana não chegou a jogar na Copa do México, que eu me lembre. Brito e Piazza foram os nossos zagueiros de área. Mas diziam que, no caso de a vitória do Brasil na final estar assegurada, o Brito, com sua cara de homem das cavernas, seria rapidamente substituído pelo Fontana antes do fim do jogo só para este ser fotografado levantando a taça. Mas isto já deve ser maldade.
Nada a ver, mas também dizem que uma das condições para chegar a comandante de aviões de passageiros é ter voz de comandante. Duvido que exista mesmo esta norma, mas a verdade é que até hoje não ouvi nenhum comandante de voz fina. O preconceito não se justificaria: nada impede que um piloto de voz fina seja mais confiável do que um de voz grossa. Mas entende-se a preocupação.
Os cursos de pilotagem incluiriam aulas de dicção e impostação de voz, ou então – também se especula – alguns aviões teriam, na cabine de comando, um locutor cuja única função seria dirigir-se aos passageiros numa voz máscula e firme, de quem estará nos controles e saberá o que fazer não importa a situação, no lugar de um piloto esganiçado que poderia causar pânico entre os passageiros com sua primeira comunicação. Para voar com segurança você precisa imaginar que o comandante é o William Bonner.

A Revolução Não Acontecerá Pela Internet


Gil Scott-Heron - The Revolution Will Not Be Televised



You will not be able to stay home, brother
You will not be able to plug in, turn on and drop out
You will not be able to lose yourself on skag and skip
Skip out for beer during commercials
Because the revolution will not be televised
The revolution will not be televised
The revolution will not be brought to you by Xerox
In 4 parts without commercial interruption
The revolution will not show you pictures of Nixon
Blowing a bugle and leading a charge by John Mitchell
General Abrams and Spiro Agnew to eat
Hog maws confiscated from a Harlem sanctuary
The revolution will not be televised
The revolution will be brought to you by the Schaefer Award Theatre and
will not star Natalie Wood and Steve McQueen or Bullwinkle and Julia
The revolution will not give your mouth sex appeal
The revolution will not get rid of the nubs
The revolution will not make you look five pounds
Thinner, because The revolution will not be televised, Brother
There will be no pictures of you and Willie Mays
Pushing that cart down the block on the dead run
Or trying to slide that color television into a stolen ambulance
NBC will not predict the winner at 8:32or the count from 29 districts
The revolution will not be televised
There will be no pictures of pigs shooting down
Brothers in the instant replay
There will be no pictures of young being 
Run out of Harlem on a rail with a brand new process
There will be no slow motion or still life of 
Roy Wilkens strolling through Watts in a red, black and
Green liberation jumpsuit that he had been saving
For just the right occasion
Green Acres, The Beverly Hillbillies, and 
Hooterville Junction will no longer be so damned relevant
and Women will not care if Dick finally gets down with
Jane on Search for Tomorrow because Black people
will be in the street looking for a brighter day
The revolution will not be televised
There will be no highlights on the eleven o'clock News
and no pictures of hairy armed women Liberationists and 
Jackie Onassis blowing her nose
The theme song will not be written by Jim Webb, Francis Scott Key
nor sung by Glen Campbell, Tom Jones, Johnny Cash
Englebert Humperdink, or the Rare Earth
The revolution will not be televised
The revolution will not be right back after a message 
About a whitetornado, white lightning, or white people
You will not have to worry about a germ on your Bedroom
a tiger in your tank, or the giant in your toilet bowl
The revolution will not go better with Coke
The revolution will not fight the germs that cause bad breath
The revolution WILL put you in the driver's seat
The revolution will not be televised
WILL not be televised, WILL NOT BE TELEVISED
The revolution will be no re-run brothers
The revolution will be live

Compositor: Gil Scott-Heron


Tradução: Lubi Prates
Você não vai poder ficar em casa, amigo.
Você não vai poder desativar o roaming ou roubar o wi-fi do vizinho.
Você não vai poder continuar jogando Candy Crush
ou olhando as fotos de gatinhos no Facebook
porque a revolução não acontecerá pela internet.
A revolução não acontecerá pela internet.
A revolução não será vista com filtros do Snapchat ou Instagram,
num p&b vintage ou, previsivelmente, apenas em branco.
A revolução não virá por drone ou se organizará pela deep web
ou estourará quando vazar o sex tape onde Donald Trump, Marine Le Pen e Putin
gozam como porcos com as mãos de Perón restauradas,
com nail art e germicida gel.
A revolução não acontecerá pela internet.
A revolução não sairá, com exclusividade, no Netflix, produzida pelo Tom Hanks, dirigida pelo Oliver Stone e protagonizada pelo Gael García Bernal porque ser progressista não diminui a elegância.
A revolução não esculpirá milimetricamente em você o abdômen com o qual sempre sonhou,
ou te dotará com um milagroso pau com garras,
ou te fará crescer uma barba de lenhador mais forte e mais sedosa,
porque a revolução não acontecerá pela internet, amigo.
A revolução não apagará por dermobrasão
essa tatuagem do Che que você fez nos anos noventa.
Não aumentará o tráfego do seu site, não te dará mil likes,
não te transformará em um Twitterstar ou num garanhão do Tinder.
A revolução, se acontecer, não será coisa de machões.
A revolução não acontecerá pela internet.
Não verá por streaming a polícia reprimindo,
metendo bala de borracha e gás lacrimogênio,
porque minha avó contou que um taxista lhe disse
que escutou no rádio que esses manifestantes
não gostam de trabalhar, mas precisamos de um país sério,
uma revolução de alegria.
Ninguém deixará comentários anônimos
nos sites dos jornais e ninguém assistirá
Dança dos famosos ou Almoço com as estrelas
ou a Primeira Divisão, ninguém falará sobre o Fantástico
ou sobre o Fala que eu escuto.
E as crianças, em vez de caçar Pokémon,
estarão nas ruas buscando algo melhor.
Não será trending topic ou tema de algum documentário
coproduzido pela UNESCO e pela Goldman Sachs, que mencione de passagem o #NiUnaMenos,
e seja narrado pelos filhos importados de Brad Pitt e Angelina.
O soundtrack não será U2 nem Mano Chao.
Calle 13 também não fará seu “grãozinho de areia” pela paz e se falará de Silvio Rodriguez menos ainda:
ele estará procurando seu unicórnio.
A revolução não acontecerá pela internet.
A revolução não será monetizada pelo Adsense, mas se você quiser
poderá inseri-la no seu perfil do Linkedin que, como todo mundo sabe,
é a mentira mais piedosa do capitalismo.
A revolução não passará no desafio da brancura.
A revolução não arrancará o tigre que há em você, nem o empresário.
A revolução não limpará sua privada ou sua mente liberal.
A revolução não te vestirá a camiseta ou a calça.
A revolução vai te pilhar.
A revolução não estará em todos os seus dispositivos, amigo.
A revolução será ao vivo.

Fracassos no infinitivo - Bernadette Mayer


Bernadette Mayer é uma poeta, escritora e artista visual americana associada aos poetas da Linguagem e à New York School.

Fracassos no infinitivo
Tradução: Mariana Ruggieri
por que estou fazendo isso? Fracasso para
manter meu trabalho em ordem para então
poder encontrar coisas para
pintar a casa para
ganhar dinheiro suficiente para viver para
reorganizar a casa para então
poder pintar a casa & para
poder encontrar coisas e
ganhar dinheiro suficiente para então
poder costurar livros para
publicar obras e livros para
ter tempo para
responder correspondências & telefonemas para
lavar as janelas para
tornar a cozinha melhor para o trabalho para
ter dinheiro para comprar um rádio simples para
escutar enquanto trabalho na cozinha para
saber o suficiente para fazer no mundo o trabalho adulto para
transcender minha atitude para
uma pobreza compulsória para
poder esperar os cheques
chegar a tempo pelo correio para
não sempre esperar que eles não vão para
esquecer as atitudes da minha mãe com a humildade ou para
continuar a
assumir sem sofrer para
esquecer como minha mãe enlouquecia meu pai
com dinheiro, minha irmã sobre não posso dizer
fracasso para esquecer mãe e pai o suficiente para
ser mais velha, para esquecer para
esquecer meu tio obssessivo para
lembrar de outra maneira para
lembrar com precisão seus preconceitos para
cessar de sonhar com leões que para sempre é
sonhar com eles, eu coloco minha mão na boca do leão para
arrefecer sua raiva, isso não é um fracasso para
perceber que eles eram assim; fracasso para
trocar de planta os vasos para
ser organizada para
criar & manter superfícies limpas para
deixar um sofá ou uma cadeira ser um lugar para sentar
e não uma mesa para
deixar a mesa ser um lugar para comer & não uma escrivaninha para
escutar mais música popular para
aprender as letras para
não precisar de dinheiro para então
poder escrever o tempo todo para
não ter que pagar aluguel, condomínio ou contas de telefone
esquecer a morte precoce de pais e tios para então
ficar livre de esperar cuidados; fracasso para
amar objetos
encontrar neles qualquer valor; fracasso para
preservar objetos
comprar objetos e
agora deixar caídos na sarjeta; fracasso para
pensar em poemas como objetos
pensar o corpo como um objeto; fracasso para
acreditar; fracasso para
saber nada; fracasso para
saber tudo; fracasso para
lembrar como soletrar fracasso; fracasso para
acreditar no dicionário & que há algo para
alcançar; fracasso para
ensinar direito; fracasso para
acreditar no ensino para
só achar que todo mundo sabe tudo
que não é o meu fracasso; eu sei que todo mundo sabe; fracasso para
ver que não todo mundo acredita nesse saber e
pensar que não podemos durar até o sucesso do saber
lavar toda a louça leva apenas dez minutos
escrever mil poemas em uma hora para
fazer um épico, abra a janela suja para
deixar entrar você sabe quem e para
expirar pensamentos e poemas longe dos problemas para
deixar a gente saber, a gente deixa para
pintar seus tetos & paredes de graça
______________________________________________________________________________
Failures in Infinitives
Bernadette Mayer
why am i doing this? Failure
to keep my work in order so as
to be able to find things
to paint the house
to earn enough money to live on
to reorganize the house so as
to be able to paint the house &
to be able to find things and
earn enough money so as
to be able to put books together
to publish works and books
to have time
to answer mail & phone calls
to wash the windows
to make the kitchen better to work in
to have the money to buy a simple radio
to listen to while working in the kitchen
to know enough to do grownups work in the world
to transcend my attitude
to an enforced poverty
to be able to expect my checks
to arrive on time in the mail
to not always expect that they will not
to forget my mother’s attitudes on humility or
to continue
to assume them without suffering
to forget how my mother taunted my father
about money, my sister about i cant say it
failure to forget mother and father enough
to be older, to forget them
to forget my obsessive uncle
to remember them some other way
to remember their bigotry accurately
to cease to dream about lions which always is
to dream about them, I put my hand in the lion’s mouth
to assuage its anger, this is not a failure
to notice that’s how they were; failure
to repot the plants
to be neat
to create & maintain clear surfaces
to let a couch or a chair be a place for sitting down
and not a table
to let a table be a place for eating & not a desk
to listen to more popular music
to learn the lyrics
to not need money so as
to be able to write all the time
to not have to pay rent, con ed or telephone bills
to forget parents’ and uncle’s early deaths so as
to be free of expecting care; failure
to love objects
to find them valuable in any way; failure
to preserve objects
to buy them and
to now let them fall by the wayside; failure
to think of poems as objects
to think of the body as an object; failure
to believe; failure
to know nothing; failure
to know everything; failure
to remember how to spell failure; failure
to believe the dictionary & that there is anything
to teach; failure
to teach properly; failure
to believe in teaching
to just think that everybody knows everything
which is not my failure; I know everyone does; failure
to see not everyone believes this knowing and
to think we cannot last till the success of knowing
to wash all the dishes only takes ten minutes
to write a thousand poems in an hour
to do an epic, open the unwashed window
to let in you know who and
to spirit thoughts and poems away from concerns
to just let us know, we will
to paint your ceilings & walls for free

segunda-feira, 18 de março de 2019

O cabelo verde - Martha Medeiros

Ela tinha o rosto coberto por sardas, especialmente no nariz e nas bochechas. Contou que, quando era criança, a garotada do colégio pegava muito no pé dela - naquela época, ainda não se falava em bullying. Cresceu odiando ser chamada de sardenta. Eu disse a ela para não se estressar, as sardas davam a ela um ar juvenil, e quer saber? "Eu nem tinha reparado que você tinha sardas antes de você comentar". Ela começou a rir. "Claro que você não reparou, por que acha que uso o cabelo verde?".

O cabelo dela era mais verde que um gramado de estádio de futebol em jogo de estreia da Copa, não havia quem não notasse.

Desde então, quando vejo uma mulher com o cabelo muito colorido, penso: como ela é incrível, quanta personalidade - e então fico buscando as sardas ou seja o que for que ela esteja tentando esconder.

Não estrague a brincadeira. Óbvio que muita gente pinta um arco-íris no cabelo porque gosta, apenas porque gosta, sem que seja um subterfúgio. Mas com subterfúgio tem mais graça e inventamos um assunto.

Outro dia vi uma garota toda tatuada - muito, muito. Os dois braços inteiros, as duas pernas tomadas, as costas sem espaço para nem mais um desenho. Se alguém não soubesse o nome dela, como a identificaria? "Aquela menina tatuada". Ninguém diria "aquela menina gorda" - não só porque seria grosseiro, mas porque o fato de ela pesar quase 100 quilos havia se tornado secundário diante da pele hipergrafitada.

Será que também privilegiamos algo na nossa aparência a fim de camuflar aquilo que não queremos que ganhe destaque? Tive uma colega da faculdade que costumava frequentar as aulas com camisas e vestidos superdecotados. Ela tinha seios lindos, poderosos. Pois agora estou lembrando que ela tinha também um nariz de respeito. Considero os narigudos e narigudas o suprassumo do charme, mas é provável que ela discordasse do meu senso estético - na época, encontrou um jeito de desviar a atenção para o seu colo e funcionou.

Tem gente que consegue esse câmbio de foco sem envolver o visual. Escreve livros a fim de disfarçar a timidez, é exibicionista para que não reparem sua insegurança, está sempre correndo de um lado para o outro para que ninguém perceba que não tem nada pra fazer. É a velha história: enquanto um lado fica iluminado, o outro permanece convenientemente na sombra.

Mas voltando ao cabelo: pintar, tosar, descolorir é bem mais fácil do que fazer um tratamento de pele, emagrecer 20 quilos, colocar silicone, operar o nariz. Fica autêntico, divertido e ainda distrai daquilo que consideramos uma imperfeição - mesmo correndo o risco de estarmos mascarando o que há de mais bonito em nós.

Sorrisos - Luis Fernando Verissimo

Li no jornal inglês The Guardian que está em exposição em Florença, na Itália, a única escultura feita por Leonardo da Vinci – sem contar o grande cavalo que o mestre esculpiu um dia, provavelmente só para mostrar que podia. A atribuição da escultura a Da Vinci não é unânime: está, mesmo, havendo uma briga feia entre experts e acadêmicos sobre sua autoria: os curadores da exposição em Florença, e outros entusiastas da descoberta, contra os céticos. Os que acreditam que a singela escultura da Virgem com Jesus no colo seja do Leonardo têm até uma biografia pronta da obra, realizada, segundo eles, quando o artista tinha 19 ou 20 anos e ainda era um pupilo no atelier do florentino Andrea Del Verrocchio.
*
Na escultura de Leonardo da Vinci ou de quem quer que seja, Jesus olha para Maria, Maria olha para o filho. Os dois estão sorrindo. Nada mais raro na iconografia religiosa do século 15 do que uma Virgem Maria e um Menino Jesus sorrindo. Os dois sorrindo um para o outro, então, beirava o escândalo. Que cumplicidade era aquela entre mãe e filho que não incluía o resto do mundo, que era um pacto só deles, um carinhoso trato fechado? E sorrindo por que, se aquela história acabava tão mal, com tanto sofrimento e sangue?
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Se nada mais na escultura pode ser atribuído, sem discussão, a Leonardo da Vinci, os sorrisos não deixam dúvidas. O sorriso de Maria é precursor dos outros sorrisos intrigantes espalhados por Da Vinci pela sua obra, culminando no famoso sorriso da Monalisa, exposto no Louvre atrás de camadas de japoneses. Para os 500 anos da morte de Da Vinci, o Louvre prepara uma exposição para este ano que também conterá controvérsias, como um desenho caricato da Monalisa chamada Mona Vanna, ou Mona Vaidosa, que pode ou não pode ser uma autogozação do próprio Da Vinci. 
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Os sorrisos do Da Vinci são frequentemente chamados de “enigmáticos”. Talvez porque não tenham “mensagens” a serem procuradas, ou código a serem decifrados, além do prazer da grande arte. Se bem que já ouvi atribuírem o plácido sorriso da Monalisa a um desconforto gástrico. 

Visionária Virginia - Sérgio Augusto

Quando tomo conhecimento de uma cafajestada dos filhos do presidente, eu me lembro de Virginia Woolf – de quem eles, assim como o pai, não devem ter medo, pois talvez nem de nome a conheçam. Quando soube da prisão dos assassinos de Marielle e Anderson, terça-feira passada, também me lembrei de Virginia Woolf. Não por causa de seu lesbianismo, mas por suas irrefutáveis reflexões sobre a tendência dos homens à prática e à curtição da violência. 
As mulheres podem não ser de Vênus, mas muitos homens, definitivamente, são de Marte e de morte. Quantos atentados e chacinas, como a de Suzano, foram praticados por mulheres, nos últimos tempos? Ou melhor, em qualquer tempo. Será que alguém ainda duvida que a maioria esmagadora dos haters em atividade na internet seja do sexo masculino? A gente conhece miliciano e feminicídio, mas nunca ouvi falar de miliciana e masculinicídio.
Quem sabe por uma diferença de glândulas, de hormônios, ou por deformação psicológica causada pela educação, o fato, estatisticamente comprovado, é que o homem mata mais – gente e animais. Existe uma estreita conexão entre masculinismo e militarismo, entre patriarcado e regimes ditatoriais, argumentou Virginia Woolf em Três Guinéus, que, acho, só agora será traduzido aqui, e pela mesma editora (Autêntica) que há dias lançou uma pequena antologia de textos feministas dela: As Mulheres Devem Chorar... Ou se Unir Contra a Guerra – Patriarcado e Militarismo
O reticente título é insípido, mas isso é o de menos. Muito bem organizado, traduzido e enriquecido com notas contextualizadoras de Tomaz Tadeu, o livro entrelaça em 160 páginas um conto (de 1920), uma palestra (de 1931), duas cartas fictícias e um ensaio de 1930. O conto, Society (que tanto pode significar sociedade como associação), antecipa certos temas mais tarde desenvolvidos em Os Três Guinéus e Um Teto Todo Seu, e um deles é a necessidade de as mulheres pesquisarem as razões últimas da dominação masculina. 
A palestra foi para uma guilda destinada a promover o acesso das mulheres ao mercado de trabalho. O ensaio examina o papel da classe operária no processo de transformação social e o relacionamento nada paternalístico (ok, maternalístico) da escritora, “filha de um pai instruído”, com as mulheres de uma classe social inferior à sua.
“Embora muitos instintos sejam tidos, em maior ou menor grau, como comuns a ambos sexos, guerrear tem sido, desde sempre, hábito de homem, não da mulher”, escreveu Virginia, respondendo à consulta de um fictício “homem instruído” sobre qual seria a melhor maneira de evitar a guerra. A consulta foi feita há exatos cem anos, com os traumas e as feridas da Grande Guerra ainda latejando e a desconfiança geral de que outra sobreviria – o que afinal ocorreu 20 anos mais tarde, quando Hitler, outro varão (e ex-soldado) incendiou a Europa.
Resulta dessa indagação uma estimulante conversa sobre as pessoas e a política, a guerra e a paz, o barbarismo e a civilização. Pinçando trechos de memórias de soldados e do poeta britânico Wilfrid Owen (morto em ação, uma semana antes da assinatura do armistício), Virginia mostra como os homens procuram, no ato de guerrear, alguma glória, alguma necessidade, alguma satisfação, que as mulheres nunca sentiram. Mas a elas não cabe apenas chorar em casa, à espera de um cadáver trazido dos campos de batalha. Virginia sabe como uni-las contra a violência e a guerra: um novo tipo de educação, para uma nova e revolucionária faculdade feminina. 
Quem desconfiou que as ideias dela sobre “o tipo de educação que se faz necessário” me trouxeram à memória aquele colombiano obscurantista entronizado no ministério da Educação, desconfiou certo. 
Virginia tinha em mente uma faculdade experimental, ousada, construída de acordo com diretrizes próprias, “não com pedras esculpidas e vitrais”, mas algum material barato, para evitar, sinta a ironia, o acúmulo de poeira e a perpetuação de paralisantes tradições. E nada de capelas, museus e bibliotecas com limitado acesso a determinados livros. 
Nela “não se ensinaria a arte de dominar outras pessoas, de mandar, de matar, de acumular terra e capital, artes que exigem muitíssimas despesas extraordinárias, soldos, uniformes e cerimônias”. Só haveria lugar para o que pode ser ensinado de maneira barata e praticado por pessoas pobres, tais como medicina, matemática, música, pintura e literatura. Vale dizer, a arte das relações humanas, de compreender a vida, a mente e os hábitos de outros povos, a arte de combinar, miscigenar, jamais segregar, explorando, em suma, as formas pelas quais “a mente e o corpo podem ser postos a cooperar, a descobrir que combinações novas produzem totalidades novas na vida humana”.
Professoras seriam recrutadas tanto entre as pessoas que sabem viver quanto entre as que sabem pensar. A competição seria abolida. As pessoas que gostam de aprender por aprender iriam para lá com prazer. Musicistas, pintoras e escritoras dariam aulas cobrando pouco, porque elas também iriam aprender. Seria livre a associação entre as pessoas, não mais divididas pelas “deploráveis distinções entre rico e pobre, inteligente e estúpido”, em que “todos os diferentes graus e tipos de mente, corpo e alma seriam considerados dignos de dar sua contribuição”.
Virginia, quero crer, anteviu a educação sonhada por Paulo Freire e Darcy Ribeiro. Aqui seria massacrada, diariamente, pelos Cro-Magnons das redes sociais. 

sábado, 16 de março de 2019

Os corvos crocitam - Paulo Sant'ana

Não lhes parece estranho que os sapos coaxem? Ou lhes parece então muito mais estranho que os carneiros balem?
É que a língua portuguesa classificou tim-tim por tim-tim todos os sons emitidos pelas gargantas dos animais.
O termo mais excêntrico entre todos os animais é sem dúvida o dos urubus: eles crocitam? Ora bolas, crocitam.
Como diz o poeta Augusto dos Anjos, “um urubu pousou na minha sorte”.
E eu respondo que é verdade e que todas as noites ouço o urubu, pousado no meu ombro e crocitando.
Sendo assim, a cobra sibila e a galinha cacareja. O porco grunhe e o pássaro chilreia.
O lobo uiva na encosta da montanha enquanto o leão ruge. O ganso e o pato grasnam.
Já a nossa divina e bíblica pomba nada mais faz do que arrulhar, mais adiante o cabrito berra e o macaco guincha.
O inseto zumbe e gato mia, o cão late.
Já a hiena, esse bicho horrível e maldito, ulula.
O tigre, pensei que igual ao leão rugia, mas não, o tigre ronca. E eu que pensei que só quem roncava era o homem.
A abelha zumbe. O grilo simplesmente canta. Já o burro zurra. Que bonito, durmo em minha casa enquanto lá fora os burros zurram.
Eu não sabia que um burro que fala todos os dias num programa de debates radiofônicos zurrava, vejam só.
O papagaio palra. Deve ser por isso que se criou, para os homens que gostam de conversar, que eles palram.
Mas o mais pitoresco e esdrúxulo de todos os cantares animais é o do peru: ele gruguleja. Ficou onomatopaicamente impecável o título do som do peru, é bem como ele faz.
E uma mulher que vive xingando muito o marido dá direito a ele de dizer que nunca viu uma mulher grasnar tanto, que mulher que crocita, essa, o diabo dessa mulher não para de guinchar.
Já a mulher pode se queixar de seu marido dizendo que ele vive rugindo, não cessa de mugir e de uivar.
Já o Pavarotti, o nosso grande tenor (barítono é que ele não era), ficou sublime ao simplesmente cantar. Era famosíssimo o agudo do Pavarotti, era daqueles agudos que quando pronunciados chegavam a quebrar os copos de cristal.
Interessante que tanto os homens quanto os animais usam a fonética para exprimirem-se.
Nós é que não conseguimos decifrar a linguagem dos animais. É uma pena, se soubéssemos o que querem dizer quando emitem seus sons, os compreenderíamos muito melhor.

quinta-feira, 14 de março de 2019

Pensar não é agir - Martha Medeiros

Nunca esquecerei minha professora de História. Seu maior desejo era conhecer Roma. Era tão apaixonada por esse sonho que chegou a memorizar o mapa da cidade, julgava-se capaz de caminhar por suas vias com mais desembaraço do que um morador local.
Ela retinha a cidade em pensamento. Sentia o aroma de suas trattorias, a fuligem deixada pelas scooters, a imponência de suas edificações. Aprendeu italiano e adquiriu fluência no idioma. Tinha a viagem formatada dentro de sua cabeça, até parecia que já tinha ido. Mas morreu sem jamais sair do Brasil.
Da mesma forma, lembro uma tia distante que na adolescência se apaixonou por um garoto e decretou para si mesma que, se não casasse com ele, não casaria com ninguém mais. Nunca namoraram, mas ela criava os diálogos de seus encontros, sentia a mão dele segurando a sua dentro do cinema, imaginava seu vestido de noiva, escolhia nome para os filhos que teriam.
O rapaz casou com outra e ela continuava visualizando o sobrado em que morariam, os cuidados que teriam com o jardim, o apoio que dariam um ao outro quando a vida exigisse. Essa minha tia faleceu com mais de 80 anos. Virgem.
Dois casos extremos. Porém, longe das extremidades, na vida mundana de cada um, também há desejos desse naipe, que se realizam apenas dentro da imaginação, se é que o verbo realizar aqui se aplica.
A fantasia é um recurso luxuoso. A fantasia ameniza frustrações. A fantasia alimenta a autoestima sem danificá-la. A fantasia quase substitui o ato concreto.
Quase.
O pensamento fantasioso obedece ao script que determinamos, mas não basta. A realidade é muito mais poderosa. Acontece a nossa revelia, sem cumprir os requisitos que nossa mente inventou. A fantasia é um subterfúgio legítimo, porém os fatos que fantasiamos não merecerão uma única linha na nossa biografia. O que vale é a experiência. Sofrida. Vingada. Curtida. Exaltada. O que for. Mas vivida.
Está aí mais uma coisa que se aprende com a passagem do tempo: pensar não é agir. Pensar é pensar, é proteger nossa vontade, embalá-la, encarcerá-la no idealismo e se conformar com um prazer hipotético. Pensar é sem gosto, sem tato, sem cheiro, sem risco. Vale a pena uma vida sem risco?
Agir, não. Agir é um salto sem rede. Agir é uma viagem, uma vertigem. É ficar disponível para o bem e o mal. Agir é para os audaciosos, corajosos, merecedores do lugar mais alto do pódio. Agir é para quem tem autoconfiança e, no caso de tudo dar errado, ter também o humor necessário para se consolar e seguir adiante. Agir é o mais potente afrodisíaco.
São poéticos aqueles que vivem no sonho, mas tornam-se imunes à sedução.

segunda-feira, 11 de março de 2019

Reencarnação - Luis Fernando Verissimo

Platão encerra a sua República com a descrição que Sócrates faz dos heróis de Homero escolhendo suas vidas futuras, ou os seres que suas almas habitarão depois da morte. Orfeu escolhe voltar como um cisne, Ajax, um leão, Agamemnon, uma águia. Muitos preferem reencarnações de acordo com seu passado. O corredor Atalanta, por exemplo, quer voltar como atleta.
O construtor do cavalo de Troia quer ser uma artesã, com o mesmo ofício mas outro sexo. Um bufão escolhe voltar como macaco. Ulisses prefere voltar como um homem comum. O herói maior da Odisseia escolhe para o futuro da sua alma ser um animal simples, um anti-Ulisses que nenhuma aventura tirará de casa.
Quem acredita em reencarnação e pesquisa sobre suas vidas passadas geralmente descobre que foi, senão um herói homérico, nunca menos do que um faraó, uma rainha ou um artista famoso. Ninguém admite ter sido um bandido ou uma faxineira em Versalhes. E todos têm um consolo para a sua atual condição: não passam de uma etapa, uma alma em transição entre um grande personagem e outro, fazendo estágio como apenas ele. O mito socrático introduz a ideia de que podemos escolher nossa próxima vida (primeirão massagista de miss!), mas o que fascina é a opção de Ulisses pela mediocridade confortável, a pacatez como um refúgio seguro.
Ulisses não quer ser mais ninguém, quer ficar a salvo da vida e da História. Ao contrário de quem não se conforma de não ter sido alguma coisa mais do que é, em algum lugar do passado, ele opta por não mais ser nem Ulisses, nem coisa parecida, no futuro.
Afinal, toda a Odisseia não passa da história de alguém querendo voltar para a paz dos braços da patroa.
CUIDADO
A ideia da reencarnação das almas provoca algumas considerações interessantes. Quem acredita mesmo em reencarnação deve ter extremo cuidado no trato com insetos, por exemplo. O próximo mosquito que matar pode ter sido um parente. A crença em reencarnação determina cuidados, também, com a dieta alimentar. A pessoa não pode comer carne de espécie alguma, pois quem assegura que o boi sacrificado para fazer o bife não foi, em outra geração, o tio Olavo?
Haveria casos de a degola de uma galinha ser interrompida porque alguém vê traços de alguém na sua cara (“Parem! Parem! É a tia Elvira!”). Enfim, o respeito aos antepassados seria total, mesmo que tivessem voltado como porcos.

domingo, 10 de março de 2019

O pescador português - Luis Fernando Verissimo

No dia 14 de agosto de 1945, o marinheiro George Mendonsa, filho de imigrantes portugueses, e eu, estávamos juntos em Nova York, mas em circunstâncias completamente diferentes. Eu prestes a fazer 9 anos de idade, de passagem por NY para pegar um navio que nos traria de volta ao Brasil depois de dois anos na Califórnia, George com 23 anos, ocupado em beijar quem aparecesse na sua frente de saia, para comemorar a rendição do Japão e o fim da Segunda Guerra Mundial. Não, não vi o marinheiro em ação e só depois fiquei sabendo que uma das fotos do beijoqueiro tiradas na Times Square – ele dobrando uma enfermeira ao meio num beijo cinematográfico – tinha se tornado famosa como símbolo da euforia daqueles dias. A revista Life fez uma edição especial da vitória com a foto na capa. O curioso é que o marinheiro e a enfermeira só foram se rever anos depois, quando a identidade dos dois foi posta em dúvida. Como a foto deu dinheiro e as feições do casal se beijando não apareciam com clareza, muita gente reivindicou o que não lhe cabia. O próprio fotógrafo não ganhara muito com seu flagrante histórico. 
*
Outra coisa estava acontecendo, em meio àqueles festejos. No dia 6 de agosto, uma bomba atômica tinha sido lançada em Hiroshima. Dias depois, outra bomba atômica arrasara Nagasaki. Poucos na multidão que lotava a Times Square no dia 14 saberiam dizer onde ficavam Hiroshima e Nagasaki, ou discutiriam a importância de usar qualquer arma, em qualquer grau de horror, para acabar com uma guerra que já matara tantos. Depois da festa, veio a reflexão, quando a decisão de usar ou não usar bombas nucleares sobre zonas habitadas deixou a história das frias opções militares e passou a pertencer à história moral do século. O argumento de que só a ameaça de usar as bombas, em demonstrações sem vítimas, convenceria o Japão a se render, não prosperou. Ou só foi opção quando mais 200 mil já tinham morrido.
*
Nem George Mendonsa nem a multidão na Times Square no dia 14 sabiam da existência do Manhattan Project, o programa ultrassecreto americano que produziu o par de bombas que, literalmente, estouraram sem aviso em nossas vidas. George morreu na semana passada, aos 96 anos de idade. Segundo o New York Times, depois da Marinha, ele tentou fazer várias coisas, mas nada muito excitante parece ter lhe acontecido depois daquele beijo. George acabou indo trabalhar com o pai, como pescador. 

sábado, 9 de março de 2019

Sociedade Betta - Marcelo Rubens Paiva

Há um ano, logo depois da barraca de pastel, parada obrigatória das quartas-feiras, uma ambulante boliviana vendia peixes ornamentais na saída da feira em sacos plásticos claustrofóbicos. De dar dó. 
Achei que eram peixes dos Andes, ou da Amazônia boliviana. Foi a primeira e última vez que a vi. Sua venda está conosco até hoje. Afinal, eu costumo levar os filhos para o pastel com caldo de cana das quartas-feiras. 
Meu filho Tião é a pessoa mais popular da feira. Todos o chamam para provar suas frutas. O que ele faz com gosto. Desde os 2 anos, eu o solto e fico atrás escutando: “Tião, Tião!”.
Se Tião tem gosto por comida, e dá gosto vê-lo comer, Joaquim tem por cores, pintar, esculpir na madeira e montar estruturas. Os peixes eram de um azul, verde e roxo de destaque, alguns com a cauda maior do que o corpo, o que chamou sua atenção. Ele escolheu um roxo macho com a maior cauda.
Ao chegar em casa, logo descobrimos que se tratava de um Betta, o “lutador siamês”, e que vive em poças e arrozais da Tailândia, Sudoeste Asiático, não em rios ou lagos andinos. O solitário siamês, pois é um peixe de briga que mata seus oponentes, até a fêmea com quem procria, se ela der bobeira e não cair fora após o abraço nupcial, tem um gênio assustador, que intrigou meu filho, o menino mais sociável do bairro, que cultiva amizades como poucos. 
O Betta quer o isolamento. Odeia seus pares.
Para mim, bastariam uma jarra de vidro, água da torneira e migalhas de pão, e ele sobreviveria uns dias, e todos nos esqueceríamos dele. Que nada. Numa loja pet franqueada, quase fui preso pela inquisição ambiental. 
Pão tem fermento: eu o envenenava. Ele só come ração balanceada própria com 33% de nível proteico e alta digestibilidade, bolinhas minúsculas, alimento extrusado e balanceado de carnitina, vitamina C e carotenoides, que cheira a ração de cachorro.
Vive na água, que deve ser limpa mensalmente por conta dos excrementos (como não pensei nisso?), precisa de um jato eventual de Protect Plus de “alto rendimento”, que “não faz espuma” e “não deixa cheiro”, coloide orgânico que forma uma capa protetora sobre o muco natural do peixe, neutraliza compostos nocivos a ele, como metais pesados, cloro, e diminui o estresse.
A vendedora vigilante, que deve gostar mais de animais de que dos humanos, apesar de vender para humanos, orientou que o peixe não pode ficar mais do que dois dias sem comer, e só podemos dar no máximo três bolinhas por dia. 
Um Betta azul da amiguinha do Joaquim é sem rabo. Uma mutação? Não. Ele comeu o próprio rabo, pois ficou uma semana sem ração. E lógico que sempre dou cinco bolinhas; sou de origem italiana. Agora, vizinhos têm a missão de alimentá-lo quando viajamos.
Ele é carnívoro. Chegamos a catar aranhas e insetos vivos para atirá-los no aquário, que agora é profissional, e vê-lo em ação. Mas o fantasma da vendedora xiita, que deve ser budista e vegetariana, e vê monges reencarnados em qualquer animal, me persegue como o pai de Hamlet. 
Achei que o gesto atormentaria o sensível artista de 5 anos, que chorou quando a mãe matou uma barata a chineladas e gritou: “Morre, desgraçada!”.
Não sou bom para nomes de animais. Tive gatos que se chamaram Kátia, Deise, Otavio, Mário, Hugo, Fábio. Meu amigo Otavio Frias Filho quis conhecer o Otavio, quando soube que eu tinha um gato homônimo. E sempre perguntava dele. Foram apresentados. Mas nunca contei que meu Otavio depois caiu do décimo primeiro andar da janela em que eu morava nas Perdizes. Mário também desabou e morreu. Depois disso, gatos só com redes nas varandas e janelas.
Como sou pouco criativo para nomes, deixei a tarefa a Joaquim. Escolheu Fly-in. Não Flying. O nome pegou. Uma vizinha o chama de Fly-in Rubens Paiva. 
Acontece que Fly-in me reconhece. Quando chego, ele fica feliz. Abana a cauda. Gruda no vidro. Se coloco a mão, ele se aproxima. Ninguém acredita em mim. Se colocarmos um parente, ele mata. Uma namorada, ele mata. Fly-in me ama.
Peixes reconhecem faces humanas com uma precisão surpreendente. A experiência foi feita com um peixe arqueiro (toxotes chatareus) pela Universidade de Oxford. Mostraram um rosto e deram comida. Depois, mostraram 44 outros rostos ao lado do que significava comida. Ele só borrifava água no que dava comida.
“O estudo não apenas demonstra que o arqueiro tem impressionantes habilidades de discriminação, mas também fornece evidências de que um vertebrado sem neocórtex e sem prerrogativa evolutiva de discriminar rostos humanos pode fazê-lo com alto grau de precisão”, publicaram no Scientific Reports.
E eu o amo. Me vejo na sua solidão. Ele está na estante do meu escritório, me vê escrever, o gesto solitário e camuflado de se comunicar de dentro de um aquário com milhões: roteiros, crônicas, posts, mensagens, livros, peças.
Não invejo seu ódio. Ele me lembra os lobos solitários de redes sociais, que atacam pessoas, pedem comida por aplicativos, namoram virtualmente sem vínculo, tornam-se membros ativos e ativistas da sociedade Betta: a rede antissocial. 
“A internet transformou a humanidade de muitas maneiras, deixou muitas coisas mais fáceis e eficientes, mas estamos mais sozinhos e desconectados do que nunca”, disse Orkut Büyükkökten, inventor da primeira grande rede social, ao Canaltech.
A cultura do narcisismo e ódio é criada pelos “cercados de espelhos, que refletem não verdadeiramente como nos sentimos, mas o que queremos que o mundo veja em nós”.

quarta-feira, 6 de março de 2019

A tristeza de ser a única pessoa certa do mundo - Leandro Karnal

Quando os oficiais chegaram à residência, havia um corpo no primeiro andar. Sem vida, Marc-Antoine Calas encarnaria uma disputa maior do que sua mísera existência. Era um jovem que não completara os estudos e que tinha dívidas de jogos de azar, um fracassado. Morreu na casa de seus pais. A primeira versão era a de que havia sido assassinado. Na falta de suspeito melhor, o próprio pai foi preso e, na cadeia, mudou a história originalmente contada. Passou a sustentar que seu filho cometera suicídio, mas que a família, ao descobrir o corpo, resolvera simular um homicídio.
Estamos na França do século XVIII e, realmente, tirar a vida era visto como uma maldição, o corpo nem sequer poderia encontrar descanso eterno em solo consagrado. Os Calas, juravam, não haviam matado o filho, mas buscavam dissimular sua morte para tentar salvar sua alma. O juiz do caso não se convenceu. Sentenciou Jean Calas à roda e a uma série de outras torturas. Com o corpo todo quebrado e torturado, o comerciante deu seu último suspiro em 10 de março de 1762.
A peça que estava faltando nesse enredo: ele era protestante e a França, um país de maioria católica. O próprio Voltaire analisou o caso e tentou interceder por Calas, mostrando o quanto de intolerância religiosa motivava a condenação. Não foi o suficiente. As suspeitas (infundadas) de que Jean Calas não só era um huguenote como um ativista anticatólico eram fortes. Seu filho mais velho já abandonara a família e se convertera à fé de Roma. Para evitar que o segundo seguisse o mesmo caminho, o pai o matara, diziam. Voltaire mostrou o suicídio e expôs a motivação (dívidas, a falta de formação porque, como protestante, Marc-Antoine fora barrado de completar seus estudos). De que valia escutar a razão se o preconceito era mais reconfortante?
No ano seguinte, o filósofo publicou seu Tratado Sobre a Tolerância, no qual argumentava o quão prejudicial era todo tipo de fanatismo religioso e como identificar tais posições. Acima de tudo, conclamava os religiosos a irmanarem-se em vez de se atacarem. O texto chegou ao rei que, postumamente, perdoou Calas, restabeleceu o bom nome da família, e dispensou o juiz do caso.
Não era a primeira publicação sobre o tema e não seria a última. Décadas antes, por exemplo, em seu exílio na Holanda, John Locke escreveu uma carta a seu amigo Phillip van Limborch, sobre a tolerância. Sem seu consentimento, o texto foi publicado em Londres no tumultuado ano de 1689. No texto, o filósofo inglês argumentava que Estado e Igreja são coisas de natureza e função absolutamente distintas. A primeira era criação humana para cuidar das coisas mundanas e materiais, tendo o poder de coação com quem fugia da lei. A segunda era voltada à Salvação, uma manifestação pública de um compromisso privado de Salvação, de ordem celestial, sem poder coercitivo. Ninguém deveria obedecer à Igreja por medo de coerção, mas por prerrogativa de fé. Logo, um magistrado (um oficial do Estado) nada deveria legislar ou punir em matéria de fé. Um sacerdote, por sua vez, não deveria se intrometer em assuntos de Estado. Locke mantinha fora de sua tolerância os “papistas” e os ateus. Mesmo com essa nota de intolerância, suas ideias inspiraram o Parlamento a aprovar o Ato da Tolerância, que concedeu liberdade de culto aos não conformistas (ainda que com muitos senões).
Uma das grandes construções da modernidade é a separação entre Estado e Igreja. A fé passa ao lugar onde ela tem sentido e até beleza: o foro íntimo, a comunidade no máximo. Deixa de estar amparada pela pompa do Estado e pelo embasamento jurídico. Cada um cultua (ou nega culto) a quem ou ao que desejar. Dentro da lei, todas as liturgias, orações, convicções sobre alma ou anjos saem dos tribunais oficiais e migram para a consciência de cada um. Houve séculos de luta no Brasil, por exemplo, para que uma simples igreja protestante pudesse ter torre, algo só obtido com a República e o fim do Catolicismo como religião oficial no país. Os crentes e não crentes, devotos de religiões de matriz africana, judeus e islâmicos, católicos e evangélicos são unidos pelo denominador comum: cidadãos brasileiros. A liberdade de culto protege os fiéis de ataques de não fiéis e protege todos do discurso totalitário daqueles que querem impor sua vontade a outros. Em países, crenças e formações distintas, tanto Voltaire quanto Locke entenderam o valor da tolerância ativa, a defesa decisiva da liberdade de opiniões. Ela supera o mal tóxico da intolerância. Da mesma forma, evita-se o veneno suave da tolerância passiva: “Respeito suas ideias, mas não se aproxime de mim!” A tolerância ativa é mais do que isso: eu preciso que alguém seja diferente de mim, pois é na diferença que sou obrigado a pensar minha própria forma de ser, alargar meus horizontes, questionar minhas certezas. É uma conquista que garante paz e progresso, desenvolvimento e ordem a todas as sociedades, como a da pioneira Holanda, que entendem que o Estado é a reunião de cidadãos e não assembleia de devotos. Separar Igreja de Estado é um avanço extraordinário. Aprofundar a tolerância ativa é o desafio de todas as gerações. É preciso ter esperança.

Até a Bolsa deu samba - Humberto Werneck

Muita coisa se passou com as bolsas de valores desde o ano de 1602, quando, em Amsterdã, a Companhia Holandesa das Índias Orientais decidiu instituir e comercializar as primeiras ações a serem colocadas num estabelecimento financeiro. Organismos vivos, nunca lhes faltou o ingrediente da emoção, motor de uma gangorra em cujas pontas riqueza e ruína travam perpétua luta para estar no alto. Na verdade, houve de tudo com as bolsas de valores nesses quatro séculos — até mesmo o dia em que uma delas, no Brasil, é claro, literalmente deu samba, por artes de Chico Buarque. 
Aconteceu há quase meio século, num contexto em que a palavra lira remetia menos à poesia do que à desvalorizada moeda italiana de então. Se não se engana o cronista, antes de Chico, apenas um poeta havia investido nessa insuspeitada musa, a bolsa de valores: Joaquim de Sousa Andrade, o “Sousândrade”, escritor maranhense que, vivendo em Nova York no século 19, lá escreveu os versos de O Inferno de Wall Street, nos quais investe contra o “almighty dollar”, a já então reverenciada moeda americana.
Não por acaso, o samba de Chico, Bolsa de Amores, foi composto em 1971, ano que ficaria marcado no Brasil por um fragoroso crash da bolsa de valores. Em pleno “milagre econômico”, investir no mercado de ações tinha se tornado febre, fazendo ferver uma insensata especulação que culminou num desastre cujos efeitos levariam anos para serem remediados. 
Na época daquele vendaval, dominava a cena a hoje extinta Bolsa de Valores do Rio de Janeiro – e era ali que costumava aplicar suas economias uma figura cult da música popular brasileira, o cantor Mário Reis, cujo modo desempostado de interpretar teria influenciado a voz confidencial com que João Gilberto embalou a Bossa Nova. Em meio a gorjeios tremelicantes e a imperiosos dós-de-peito, sem os quais ninguém podia até então ser considerado um cantor genuíno, Mário foi precursor. É provavelmente a ele que se refere Eulálio d’Assumpção, o personagem do romance Leite Derramado, de Chico Buarque, quando menciona um “cantor com voz de maricas” a desfiar o Jura de Noel Rosa. 
Filho de família abastada, Mário Reis não chegava a ser um milionário, mas, solteirão bon vivant, podia dar-se o luxo de morar no Copacabana Palace, de onde sairia para morrer. Como nos palcos, também ali marcou época. Muitos anos depois de sua morte, ainda havia no Copa quem se lembrasse do discreto e frugal ocupante do apartamento 140, cujo café da manhã, confidenciou ao cronista um antigo camareiro, não ia além de “um cafezinho e um brioche”. Sem prejuízo da elegância com que se vestia, todo o seu guarda-roupa “não enchia mais que uma dessas velhas malas de papelão – e não incluía pijamas nem cuecas”. Era um pouco por amor ao jogo, dizia-se, mais que por amor ao dinheiro, que Mário Reis gostava de aplicar na bolsa suas economias – hábito do qual Chico se lembraria quando o veterano cantor lhe pediu uma canção para o disco que, para encerrar longo jejum fonográfico, planejara lançar em 1971. 
Às voltas com a encomenda, o compositor, em busca de inspiração, se pôs a repassar os discos de Mário Reis, decidido a fazer algo sob medida para o encomendante. Procurou sintonizar com coisas que estavam na moda naquele início de anos 1970. Entre elas, a bolsa. 
Além de trocar “valores” por amores”, o samba tiraria sua graça do duplo sentido do verbo “investir”, aplicável tanto a recursos financeiros como a impulsos amorosos – à maneira, aliás, do que haviam feito Antônio Almeida e João de Barro com a moreninha da famosa marcha, ao equipará-la maliciosamente a outra paixão nacional, a cerveja: “A tua ardência é que me assombra/ Desta maneira /só mesmo te botando/ numa geladeira”. 
Também na brincadeira de Chico para Mário Reis havia uma morena:
Comprei na bolsa de amores/ As ações melhores/ Que encontrei por lá/ Ações de uma morena dessas/ Que dão lucro à beça.
O problema é que o mercado entrou em baixa: 
Já perdi meu lote/ Minha morena me esquecendo/ Não deu dividendo/ Nem deixou filhote/ E eu que queria/ De coração/ Ganhar um dia/ Alguma bonificação/ Bem que dizia / Meu corretor/ A moça é fria/ Ao portador.
Previsivelmente, a Censura do regime militar leu com maus bofes os versos de Bolsa de Amores. Entre os compositores em atividade, nenhum a ocupava mais do que Chico Buarque. Era como inimigo desafiador que a ditadura o via – razão pela qual, como se sabe, ele foi preso em casa, de madrugada, quando veio o AI-5, em dezembro de 1968, e levado para extenuante interrogatório, violência que o fez partir para um autoexílio na Itália. 
Na volta, em março de 1970, Chico não encontrou panorama melhor. Seguia sendo o alvo preferencial da Censura. Se alguma dúvida houvesse, teria sido desfeita pelo episódio Bolsa de Amores. “A comparação entre a ‘moça fria e ordinária’ com o mercado de ações na época em que se vivia o ‘Milagre Brasileiro’ fez com que o samba fosse taxado de ofensivo à imagem da mulher brasileira”, relata Ricardo Cravo Alvin em seu Dicionário da Música Brasileira. 
A gravação original de Bolsa de Amores só seria lançada em 1993, mais de dez anos após a morte do cantor, no CD Mário Reis Canta Suas Criações em Hi-fi, que reúne seus LPs de 1960 e 1971. Na voz de Chico, porém, o samba até hoje não ganhou registro em disco. Não será por falta de investidores chegados em cifras, sejam elas musicais ou não.

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