quarta-feira, 6 de março de 2019

Até a Bolsa deu samba - Humberto Werneck

Muita coisa se passou com as bolsas de valores desde o ano de 1602, quando, em Amsterdã, a Companhia Holandesa das Índias Orientais decidiu instituir e comercializar as primeiras ações a serem colocadas num estabelecimento financeiro. Organismos vivos, nunca lhes faltou o ingrediente da emoção, motor de uma gangorra em cujas pontas riqueza e ruína travam perpétua luta para estar no alto. Na verdade, houve de tudo com as bolsas de valores nesses quatro séculos — até mesmo o dia em que uma delas, no Brasil, é claro, literalmente deu samba, por artes de Chico Buarque. 
Aconteceu há quase meio século, num contexto em que a palavra lira remetia menos à poesia do que à desvalorizada moeda italiana de então. Se não se engana o cronista, antes de Chico, apenas um poeta havia investido nessa insuspeitada musa, a bolsa de valores: Joaquim de Sousa Andrade, o “Sousândrade”, escritor maranhense que, vivendo em Nova York no século 19, lá escreveu os versos de O Inferno de Wall Street, nos quais investe contra o “almighty dollar”, a já então reverenciada moeda americana.
Não por acaso, o samba de Chico, Bolsa de Amores, foi composto em 1971, ano que ficaria marcado no Brasil por um fragoroso crash da bolsa de valores. Em pleno “milagre econômico”, investir no mercado de ações tinha se tornado febre, fazendo ferver uma insensata especulação que culminou num desastre cujos efeitos levariam anos para serem remediados. 
Na época daquele vendaval, dominava a cena a hoje extinta Bolsa de Valores do Rio de Janeiro – e era ali que costumava aplicar suas economias uma figura cult da música popular brasileira, o cantor Mário Reis, cujo modo desempostado de interpretar teria influenciado a voz confidencial com que João Gilberto embalou a Bossa Nova. Em meio a gorjeios tremelicantes e a imperiosos dós-de-peito, sem os quais ninguém podia até então ser considerado um cantor genuíno, Mário foi precursor. É provavelmente a ele que se refere Eulálio d’Assumpção, o personagem do romance Leite Derramado, de Chico Buarque, quando menciona um “cantor com voz de maricas” a desfiar o Jura de Noel Rosa. 
Filho de família abastada, Mário Reis não chegava a ser um milionário, mas, solteirão bon vivant, podia dar-se o luxo de morar no Copacabana Palace, de onde sairia para morrer. Como nos palcos, também ali marcou época. Muitos anos depois de sua morte, ainda havia no Copa quem se lembrasse do discreto e frugal ocupante do apartamento 140, cujo café da manhã, confidenciou ao cronista um antigo camareiro, não ia além de “um cafezinho e um brioche”. Sem prejuízo da elegância com que se vestia, todo o seu guarda-roupa “não enchia mais que uma dessas velhas malas de papelão – e não incluía pijamas nem cuecas”. Era um pouco por amor ao jogo, dizia-se, mais que por amor ao dinheiro, que Mário Reis gostava de aplicar na bolsa suas economias – hábito do qual Chico se lembraria quando o veterano cantor lhe pediu uma canção para o disco que, para encerrar longo jejum fonográfico, planejara lançar em 1971. 
Às voltas com a encomenda, o compositor, em busca de inspiração, se pôs a repassar os discos de Mário Reis, decidido a fazer algo sob medida para o encomendante. Procurou sintonizar com coisas que estavam na moda naquele início de anos 1970. Entre elas, a bolsa. 
Além de trocar “valores” por amores”, o samba tiraria sua graça do duplo sentido do verbo “investir”, aplicável tanto a recursos financeiros como a impulsos amorosos – à maneira, aliás, do que haviam feito Antônio Almeida e João de Barro com a moreninha da famosa marcha, ao equipará-la maliciosamente a outra paixão nacional, a cerveja: “A tua ardência é que me assombra/ Desta maneira /só mesmo te botando/ numa geladeira”. 
Também na brincadeira de Chico para Mário Reis havia uma morena:
Comprei na bolsa de amores/ As ações melhores/ Que encontrei por lá/ Ações de uma morena dessas/ Que dão lucro à beça.
O problema é que o mercado entrou em baixa: 
Já perdi meu lote/ Minha morena me esquecendo/ Não deu dividendo/ Nem deixou filhote/ E eu que queria/ De coração/ Ganhar um dia/ Alguma bonificação/ Bem que dizia / Meu corretor/ A moça é fria/ Ao portador.
Previsivelmente, a Censura do regime militar leu com maus bofes os versos de Bolsa de Amores. Entre os compositores em atividade, nenhum a ocupava mais do que Chico Buarque. Era como inimigo desafiador que a ditadura o via – razão pela qual, como se sabe, ele foi preso em casa, de madrugada, quando veio o AI-5, em dezembro de 1968, e levado para extenuante interrogatório, violência que o fez partir para um autoexílio na Itália. 
Na volta, em março de 1970, Chico não encontrou panorama melhor. Seguia sendo o alvo preferencial da Censura. Se alguma dúvida houvesse, teria sido desfeita pelo episódio Bolsa de Amores. “A comparação entre a ‘moça fria e ordinária’ com o mercado de ações na época em que se vivia o ‘Milagre Brasileiro’ fez com que o samba fosse taxado de ofensivo à imagem da mulher brasileira”, relata Ricardo Cravo Alvin em seu Dicionário da Música Brasileira. 
A gravação original de Bolsa de Amores só seria lançada em 1993, mais de dez anos após a morte do cantor, no CD Mário Reis Canta Suas Criações em Hi-fi, que reúne seus LPs de 1960 e 1971. Na voz de Chico, porém, o samba até hoje não ganhou registro em disco. Não será por falta de investidores chegados em cifras, sejam elas musicais ou não.

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