segunda-feira, 30 de março de 2020

A vida sem - Ruy Castro

Jesus Cristo nunca manuseou papel. Átila, Gengis Khan e Vlad, o Empalador, não conheceram o canhão. Dante, Chaucer e Boccaccio nunca souberam o que era a tipografia. Cleópatra nunca usou papel higiênico, nem Joana d'Arc escova de dentes. Jane Austen nunca saiu sozinha de casa. Balzac não conheceu a máquina de escrever e Flaubert nunca escreveu sob luz elétrica. D. João 6º nunca viajou de navio a vapor, D. Pedro 1º nunca andou de bicicleta e D. Pedro 2º nunca passeou de automóvel.
Santos-Dumont nunca tomou um avião, exceto os que ele construiu. Machado de Assis nunca usou caneta-tinteiro, nem Graciliano Ramos caneta esferográfica. Enrico Caruso não conheceu a gravação elétrica, Francisco Alves nunca gravou um LP e Carmen Miranda morreu antes do som estereofônico.
Rodolfo Valentino nunca tirou uma foto em cores e muito menos fez um filme colorido. Friedenreich jamais teve um gol transmitido pelo rádio, nem Leônidas da Silva pela televisão. Garrincha nunca se beneficiou do cartão amarelo contra os adversários que puxavam sua camisa. Zequinha de Abreu nunca veio ao Rio. Noel Rosa nunca foi a São Paulo.
Bach nunca compôs ao piano. Baudelaire nunca mandou ou recebeu um telegrama; Rimbaud nunca recebeu ou mandou um cartão postal. Maquiavel nunca ouviu a expressão "maquiavélico", nem Kafka "kafkiano". Freud e Trótski, assim como Rommel e Yamamoto, nunca souberam quem ganhou a 2ª Guerra. Getulio Vargas jamais pensou em Brasília. Aldous Huxley nem sequer imaginou a internet. Marilyn Monroe nunca soube que John Kennedy foi assassinado. Jean-Paul Sartre escapou de ser alvo do Me-Too. E, por questão de meses em 1990, Luiz Carlos Prestes deixou de ver o fim da URSS.
Ricardo Boechat, Bibi Ferreira e João Gilberto, entre nós até outro dia, nunca souberam do coronavírus.
Para sorte de todos eles, nada disso lhes fez falta.

domingo, 29 de março de 2020

Lavai as mãos - Drauzio Varella

De todas as recomendações maternas, a de lavar as mãos talvez seja a mais desobedecida. Parece pirraça. Na agitação de hoje, lavar as mãos antes de pegar nos alimentos virou luxo, esquisitice de gente cismada, mania de hipocondríaco.

É só entrar numa lanchonete da cidade, botequim de bairro ou restaurante caro e contar quantos tomam tal precaução higiênica antes de atacar o hambúrguer, a batata frita ou o pãozinho com patê. Na hora das refeições, a mão suja é universal, irmana trabalhadores braçais, moças bonitas e senhores de gravata.

No entanto, se todos lavassem as mãos com água e sabão (qualquer sabão) antes de manipular os alimentos, muitas doenças seriam evitadas. Perderíamos o medo de comer empadinha em padaria, pastel de feira, espetinho de camarão na praia e os tradicionais salgadinhos expostos em todos os bares brasileiros, que a religiosidade do povo houve por bem batizar de "Jesus me chama".

Nada ilustra melhor a eficiência das mãos na disseminação de infecções do que as gripes e resfriados. A pessoa chega na festa e avisa: "Não me beijem que estou gripada" - e sai apertando a mão de todos os convidados. Seria muito melhor que desse o rosto a beijar; na face, o vírus não está. Em compensação, as mãos estão repletas dele: quem fica gripado assoa e coça o nariz o tempo todo. Como consequência, os incautos que apertaram a mão infestada, ao coçar o nariz ou os olhos semearão as partículas virais diretamente nas mucosas.

É possível que sejamos tão renitentes em lavar as mãos porque vírus, fungos e bactérias são seres tão minúsculos, que, no fundo, não acreditamos na existência deles. Fica um pouco chato, entretanto, manter essa descrença mais de 300 anos depois da descoberta do microscópio.

Quando os ingleses aprenderam a acoplar lentes de aumento e construir microscópios rudimentares, ficaram interessados em enxergar o que era pouco visível: a cabeça dos mosquitos, a boca das abelhas ou os buracos existentes num pedaço de cortiça (de onde surgiu a palavra célula).

Em 1683, na Holanda, Antony van Leeuwenhoek, um dono de armarinho que se distraía montando lentes quando não havia fregueses, focalizou o microscópio para investigar o que nenhum cientista havia procurado. Em vez de usá-lo para magnificar pequenos seres conhecidos, Leeuwenhoek decidiu explorar o invisível: o que haveria no interior de uma gota de chuva?

O que seus olhos viram deixaram-no tão maravilhado, que escreveu uma carta para a Sociedade Real de Londres, a mais importante associação científica daquele tempo: "No ano de 1675, descobri pequenas criaturas na água da chuva colhida numa tina nova pintada de azul por dentro? esses pequenos animais, a meu ver, eram mais de 10 mil vezes menores do que a pulga d?água que se pode enxergar a olho nu?".

Essa demonstração cabal de que em ciência fazer a pergunta certa, às vezes, é mais importante do que buscar respostas, abriu as portas para o mundo das bactérias.

Duzentos anos depois de Antony van Leeuwenhoek, um cientista francês que não era médico, Louis Pasteur, visitou necrotérios para estudar por que tantas mulheres que davam à luz morriam de febre após o parto. Nas amostras de sangue e de secreções colhidas no útero dessas mulheres, identificou as pequenas criaturas descritas pelo holandês.

Uma noite, em 1879, numa reunião da Academia de Paris, um obstetra descartou com desprezo a hipótese de que a febre pós-parto fosse provocada por bactérias. Pasteur interrompeu: "A causa dessa doença são os médicos, que levam germes da paciente doente para a sadia".

Mais recentemente, a importância de esfregar as mãos com água e sabão foi bem caracterizada nas unidades de transplante de medula óssea. Nesse tipo de transplante, as defesas imunológicas ficam arrasadas por vários dias e o doente se torna vulnerável aos germes que o cercam.

Quando surgiram as primeiras unidades de transplante nos Estados Unidos, nos anos 80, para entrar no quarto do paciente era preciso colocar luva, gorro, máscara, avental e proteção para os pés. Além disso, de uma das paredes vinha um fluxo de ar contínuo que passava pela cama do doente e saía pela porta permanentemente aberta. Todos os que entravam no quarto eram proibidos de ficar entre a cama e essa parede, para impedir que a corrente de ar levasse os germes do visitante para o doente.

A experiência mostrou que tais medidas eram dispendiosas e descabidas. Hoje, nas unidades de transplante, pode-se chegar com a roupa da rua, mas é obrigatório lavar as mãos ao entrar e sair do quarto do transplantado, não importa o que o visitante tenha ido fazer lá dentro.

Uma medida tão simples como a lavagem das mãos tem grande importância em saúde pública. Por exemplo, se fosse possível convencer todos os que trabalham nos hospitais - principalmente médicos e enfermeiras - de que antes e depois de pegar numa pessoa doente as mãos precisam ser lavadas, estaria decretado o fim das infecções hospitalares. Se conseguíssemos ensinar as mães a tomarem o mesmo cuidado antes de tocar em qualquer coisa que vá à boca do bebê, talvez acabasse a mortalidade por diarreia infantil no país.

sexta-feira, 27 de março de 2020

Caro presidente, matei minha avó - Tati Bernardi



Eu amava minha avó, mas tive que matá-la. Na frente de casa tem uma agência bancária da qual gosto muito. É lá que vou quando preciso sacar dinheiro do caixa eletrônico que, diferente da minha finada avó, funciona 24 horas.
Minha avó começava a bocejar às seis da tarde e capotava de sono às nove da noite, seu tempo de operação era incomparável ao de um caixa eletrônico. Por isso, quando nosso presidente me mandou
escolher entre minha avó e a economia, matei minha avó.
Vovó fazia bastante carinho em meus cabelos. Ela também me elogiava: “Minha filha, você está cada dia mais bonita”. Mas, francamente, o salão de beleza do shopping faz muito mais por mim. Corta, lava, hidrata, escova, faz botox capilar, balayage e mechas californianas. Quando vou pagar a conta, me dizem o quanto sou chique, divina e poderosa.
Então, quando nosso presidente me mandou escolher entre minha avó e a economia, matei minha avó.
Sinto saudades, claro. Mas ela já caminhava com certa dificuldade e, segundo o médico, não tinha muito como melhorar. Já nosso ministro “Chicago boy” vive dizendo que a economia brasileira, hoje mais manca que minha finada vozinha, em breve estará correndo maratonas. Por isso, matei minha avó. Te aconselho a fazer o mesmo.
Não adianta só se vestir inteiro de verde e amarelo e ir pra Paulista mostrar que não tem medo de “gripezinha”. Arminha com a mão é para amadores. É preciso provar que é um verdadeiro patriota, matando sua avó.
Vovó falava mal dos irmãos, das amigas com quem viajava pra Serra Negra em excursão e, muito cá entre nós, metia o pau na minha mãe. Completamente diferente do pastor da igreja aqui do bairro. Esse aí só fala bem de todo mundo. Diz que somos escolhidos, abençoados, maravilhosos.
O presidente declarou que se não continuarmos lotando as igrejas… bem, ele não explicou exatamente o que isso tem a ver com a economia. Mas eu sei que tem porque não sou completamente idiota.
Então, entre uma velhinha fofoqueira e um dízimo salvador, eu preferi matar minha avó. Entre os R$ 100 que ela me dava no Natal e as facilidades que estão dando na hora de pagar as faturas dos cartões Havan, eu decidi matar a minha avó.
Entre seu afetuoso bolinho de bacalhau e o Baby Back Ribs com delicioso molho barbecue do Madero Steakhouse, escolhi dar cabo da velha.
Ah, eu estava cansada de ficar trancada aqui. Tudo pra quê? Evitar, como disse aquele empresário-apresentador (não à toa ele carrega justiça em seu nome) a morte de 10% a 15% de idosos?
Li em algum lugar que jovens também podem vir a óbito mas, francamente, só se eles não forem atléticos como o próprio empresário-apresentador e o nosso presidente-mito. A pessoa não malha e quem fica fraca é a economia?
Há dias em que saio bem cedo e volto bem tarde. Pelo caminho, encontro muita laranja e bananinha, um sinal divino de que estou no rumo certo. Claro que não é fácil! Estou péssima, deprimida, arrependida.
Nada no mundo compra o que eu sentia deitada no colo da minha avó (e, mesmo que comprasse, ainda está tudo fechado e pela internet pode demorar). Mas eu vejo uma luz no fim do túnel: acho que é uma agência de publicidade funcionando. Vai ficar tudo bem.

quarta-feira, 25 de março de 2020

Pragas, pestes e quarentena - Roberto DaMatta

Viver o isolamento obrigatório e racional: uma medida crítica contra um vírus mortal é, no mínimo, reitero, um duríssimo desafio cultural, pois contesta “hábitos” do “estar perto” ou “junto” e do “visitar” tidos e havidos como práticas “naturais”. Afinal, conforme estamos vendo e ainda veremos com mais força, a casa como afirmo no meu trabalho é a única instituição que funciona no Brasil.
As aparições em comissão (tudo no governo é em comissão porque um pode pôr o erro no outro) presididas pelo presidente Bolsonaro só fazem piorar o que já é uma calamidade social. O próprio governo precisa aprender a usar as suas máscaras e já deveria estar providenciando leitos para as vítimas da pandemia. 
Para quem roga a praga de que o Brasil daria errado porque foi assim desenhado, tudo se confirma. “Eu bem que dizia...” . Só que o momento não é brasileiro, é também mundial. Contudo, para confirmar a praga do “dar errado”, temos o clã dos Bolsonaros que não falha em engendrar crises.
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Não deixa de ser curioso que países europeus que inventaram a guerra moderna, com suas regras que tornam o matar algo não só legítimo, mas patriótico – produtor de promoções e medalhas –, tenham falado dessa peste como uma “guerra”. Não há dúvida que há luta, mas sua natureza é bem diversa. Guerreamos por mercado, território e honra ofendida num espaço exterior ao nosso corpo e contra pessoas que se diferenciam de nós somente pelo uniforme. Viraram inimigos perigosos, mas têm intenções e seus movimentos são previstos e planejados.
Mas esse desgarrado vírus tem, como as bruxarias, uma autoria inesperada. Num sistema marcado pela santidade da propriedade privada, ninguém sabe quem é o dono do vírus. Quem é o seu vil proprietário e responsável? Dizem que é coisa do demônio e não seria difícil, usando o mesmo argumento, dizer que é um castigo divino. 
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Se o caos é aquilo que nenhum sistema social pode aceitar, como lidar – neste mundo no qual pensamos saber tudo – com essa cruel surpresa sem apelar para o idioma moralista, cujo risco é promover uma pandemia de idiotices, como é o caso das teorias conspiratórias, típicas de sociedades fortemente aristocráticas e personalizadas nas quais o rei, os ricos, os bem-sucedidos e os conservadores e comunistas seriam os responsáveis por suas pragas. 
Ora, transformar a peste em praga é um assunto sociológico importante porque a peste é aleatória e a praga, sendo rogada, é intencional.
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O momento da peste produz referências óbvias ao livro de Albert Camus, A Peste, cuja leitura é escassa porque hoje os celulares – esses avatares da ignorância das letras – bloqueiam comodamente qualquer esforço maior de entendimento pela escrita. A tela impessoal não se abre como as páginas de um livro as quais, ao contrário, precisam de luz e se deixam possuir pelas mãos de quem nelas entra e vira leitor. As telas planas e lisas que não rasgam, mas quebram, são duras como as de uma televisão. Mas não são abrangentes como as de um cinema ou frágeis como as de um teatro. O celular permite uma solidão relativa e esse estado de espírito dificulta a concentração requerida pela leitura que exige solidão e isolamento.
As bibliotecas pediam um “silêncio” que elimina a falação ou a gritaria como pragas. Como algaravia que promove um pobre entendimento pelo excesso de comunicação. Num celular, você tem a (des)vantagem de estar falando e, ao mesmo tempo, recebendo mensagens que dividem sua atenção.
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Em plena quarentena, revejo um livro que me marcou profundamente: A Montanha Mágica, publicado em 1924 e escrito por Thomas Mann. Eis uma novela que, pelo poder de sugestão do seu título, é tão falada quanto pouco lida. Revejo suas passagens porque ele fala da ironia da visita de um jovem engenheiro, o herói Hans Castorp, a seu primo Joachim em um sanatório de tuberculosos isolados precisamente pela possibilidade de contágio de uma doença então incurável. Tempo, espaço e diferenças são destacados. Hans pretende ficar 7 dias, mas se descobre igualmente doente e termina permanecendo no isolamento coletivo por 7 anos! Ao final de seu entendimento de que a doença resulta de quando o corpo fala mais alto do que a alma e, após anos de aprendizado ideológico com Settembrini, Naphta e Peperkorn – e de amor com Clawdia –, ele deixa a montanha fora do mundo para entrar na cruel realidade de outra praga: a guerra. Essa peste para a qual até hoje não temos remédio ou cura. 
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Em profundo isolamento, escrevo essa crônica me acomodando aos desenganos do mundo.

Epidemia de malucos - Humbeto Werneck

Longe de mim querer ser desagradável, ainda mais num momento como este, em que chatices, aborrecimentos e dramas suplementares não nos faltam, mas desconfio que o coronavírus vai engordar as hostes dos malucos benignos, assunto aqui na semana passada. Sim, é bem provável que o confinamento a que estamos condenados faça proliferar entre nós comportamentos e manias que considerávamos atributos exclusivos de terceiros. Condições para isso, é óbvio, vêm se multiplicando com velocidade quase comparável à do vírus em questão. Mas fiquemos, por ora, com a maluquice benigna que já temos. Basta ver a enxurrada de informações e histórias suscitadas pela crônica da última terça-feira. 
A propósito, para começar, do sujeito que comprava pinturas em feiras de rua para a elas acrescentar detalhes, houve quem sacasse a história de uma senhora que, a bem da moral cristã, usou pincel e tinta para “sungar”, puxar para cima, um decote que num retrato a óleo lhe pareceu raso demais. 
Do amigo e colega Ignácio de Loyola Brandão me veio o caso de um camarada seu que jamais atende o telefone antes de soar o oitavo toque. Por que não antes do sétimo, ou do nono? Mistério. O fato de ser ele, como informa o Loyola, solteirão e misógino, não chega a explicar a esquisitice. Mais esquisito, só aquele sujeito que, também ele vítima de Transtorno Obsessivo Compulsivo, nunca usa a sigla TOC, e sim COT, por lhe parecer obrigatório respeitar a ordem, inclusive a alfabética.
Também o querido Loyola, revelemos, tem lá suas manias. Você talvez não saiba que o autor de Zero gosta de contar algo além de histórias. Passos, por exemplo. Convidado para escrever um livro comemorativo dos 100 anos da Paulista, em 1991, ele está em condições de nos dizer que de uma ponta a outra a avenida mede 3.181 passadas de Loyola. Saiba-se também que, para escrever, tudo no seu escritório tem que estar em ordem. O cesto de papel há de estar vazio. O colunista do Estadão não suporta “livro de cabeça para baixo”, nem “livro magro ao lado de livro gordo”. Alguns minutos de seu dia são gastos em organizar, também, por ordem crescente de valor, as notas de reais que tem no bolso – e mais: em ajeitar as cédulas de mesmo valor conforme a numeração. 
Nesse capítulo monetário, o Loyola faz lembrar um jornalista de minhas relações, que no banheiro não vê chance de as coisas funcionarem se ele não tiver algo para ler, ainda que seja a informação, no toalheiro, de que duas folhas de papel bastam para secar as mãos. Um dia, nem isso havia – e o camarada, em desespero de causa, abriu a carteira, sacou uma nota de 20 reais e se pôs a balbuciar: “República Federativa do Brasil. Banco Central do Brasil. Casa da Moeda do Brasil. Mico-leão-dourado”. Funcionou. Nem foi preciso recorrer às cédulas de 100 (garoupa), 50 (onça-pintada), 10 (arara), 5 (garça) e à de 2 reais, ilustrada com uma tartaruga, como em alusão a intestinos lerdos.
E há também o cidadão belo-horizontino de outros tempos, de quem me dá notícia o Frei Betto. Lá pelos anos 1920, 30, contava o avô do Betto, a figura em questão, toda semana, entrava no Banco da Lavoura de Minas Gerais, ia ao caixa, identificava-se como correntista e pedia para ver se o seu dinheiro estava em ordem. Contava nota por nota, e só então, tranquilizado, autorizava o atendente a recolher ao cofre seus caraminguás. 
Mas voltemos ao nunca assaz citado Ignácio de Loyola, que, toda manhã, espera encontrar o seu jornal tal como ele saiu da impressora, com os cadernos em ordem e sem folhas amassadas, o que pode não acontecer se passou antes um leitor menos cuidadoso. 
Nesse particular, o Loyola teve outrora uma alma gêmea, na pessoa de um cavalheiro – quem conta é o Ivan Angelo – que também detestava ver seu jornal espalhado em cadernos, ou com as páginas fora de ordem. Para prevenir o caos, ele criou o hábito de grampear cada caderno na margem direita, de alto a baixo, tão logo recebia o jornal. 
E não era esta a sua única mania, acrescenta o Ivan: “Funcionário aposentado, ele fazia a barba de manhã, almoçava cedo, botava camisa branca limpa, meias, sapatos, gravata, paletó, pronto para ir trabalhar... e ficava em casa, lendo jornais na sala ou na varanda. Às 5 e meia da tarde, subia ao quarto, tirava os sapatos, a gravata, calçava chinelos, vestia um robe de seda, que ele chamava de chambre, e ia ouvir rádio, à espera do jantar”.
É também o Ivan Angelo quem nos traz outra ilustração de maluquice benigna. Trata-se de uma criatura que ao chegar em casa, tarde da noite, vai limpar a cozinha, desconfiada de que pode ter trafegado ali uma barata. Incapaz de passar por uma pia sem lavar as mãos, é de imaginar o frenesi higiênico que ela estará vivendo nestes tempos de coronavírus. Lava roupa todo dia – não há manhã em que não ponha na máquina os lençóis e as fronhas ainda quentes. E não é pouco pano, pois em sua cama de casal ela e o marido têm, cada um, o seu lençol de cima, a sua colcha, o seu cobertor.
“É para evitar o puxa pra lá, puxa pra cá”, explica o esposo, cujas manias de alcova, em regime de comunhão de bens, não param por aí. Ao se recolher, ele ajeita o seu lado da cama, empilha três travesseiros – e, em vez de se enfiar nos lençóis, vai se deitar no chão, “para esfriar o corpo”. Cama, só no meio da noite, e ainda assim nem tanto, pois deixa os dois pés para fora do colchão – o que, segundo más línguas, seria explicação para o fato de tratar-se de um irremediável pé-frio. 
De manhã, antes de usá-la, ele lava e enxuga a pia. Neurose de limpeza como tem esse casal, convenhamos, talvez nem mesmo uma falecida tia-avó da leitora Denise, a qual, quando já não tinha mais o que esfregar ou polir, fazia uma buchinha de pano para limpar por dentro as fechaduras, daquelas antigas, com chaves enormes.
E há, por fim, curioso além de edificante, o depoimento que me deu a Ana Maria, a qual, acossada por uma fartura de solicitações simultâneas, adotou o hábito de orar enquanto dirige. Só não reza em túnel, por medo de que a conexão com Deus possa cair. Também não reza de ré, pois a palavra remete a retrocesso. Para tais ocasiões, chegou a bolar versões rebobinadas de algumas preces, mas acabou concluindo que arranjos arrevesados como “Deus de mãe, Maria Santa” ou “Tentação em cair deixeis nos não” talvez não soem bem nos ouvidos do Senhor.

sábado, 21 de março de 2020

Brrrrrrrrrrrrrrrrrr - Marcelo Rubens Paiva


Há uns dias, num metrô abarrotado, na época em que andávamos despreocupados de metrô, voltando altinho de um jantar regado de vinho rosé, na época em que saíamos para jantar, vi uma imagem nas telas dos monitores dos vagões, um desenho, um delírio utópico, num mundo em pânico: os Jetsons em seu carro voador, que mais parecia um disco voador, que fazia um barulho que toda criança da minha geração imitava com a vibração dos lábios ao correr, um agudo “brrrrrrrrrrrrrrrrrr”, que diminuía ao pousar. 
O desenho estreou no começo dos anos 1960, antes dos Beatles, o mundo tinha fé em si mesmo, depois de séculos de guerras globais, e a geração boomer estava na escola pública. George Jetson tinha um emprego estável. Jane, a mãe, era do lar, vivia a subserviência da sociedade patriarcal e dividia as tarefas com uma robô que usava avental. 
George trabalhava por apenas três horas na Spacely Sprockets, em que chegava por uma esteira. O casal de filhos, Judy e Elroy, completava o retrato de família ideal do sonho americano branca (são todos loiros ou ruivos). Os negros na vida real continuavam segregados no Sul, e o movimento dos direitos civis começava a ganhar força. 
O mundo vivia um boom econômico. Na abertura, papai vai em sua nave catapultando os filhos na escola. Elroy fica na Little Dipper (Fraldinha), Judy, na Orbit High School. Jane rouba sua carteira e fica no shopping center.
A atração de Hanna Barbera exibida pela Globo se passa em 2062 e foi o primeiro programa em cores da ABC. Minha geração imaginava que, sim, o futuro seria exatamente como aquele: torres redondas suspensas que pareciam tocar as nuvens, carros voadores, domésticos robôs, comida pronta que sai de uma máquina ao apertar um botão. 
Em Os Jetsons, usam escovas elétricas, as ruas espaciais estão congestionadas, voam a 2 mil milhas/hora, e as pessoas são brutas e praguejam no trânsito. Ao chegar em casa reclamando da jornada estressante de três horas, papai toma um dry martini e fuma um cigarro. Oferecidos por uma máquina. 
O resgate do desenho foi um tremendo achado num mundo distópico. Em que a previsão do seriado de 60 anos atrás acertou, e até aonde fomos?
Temos internet das coisas; Jane ejeta o marido da cama por uma espécie de controlador na cozinha. Alexia e o assistente do Google controlam uma casa. Robôs falam e interagem com os humanos. Aspiradores robóticos estão disponíveis em qualquer birosca de eletrônicos. Inteligência artificial e algoritmos são as leis da rotina atual.
Mas carro não soltaria fumacinha. Seria elétrico, a plasma ou à base de hidrogênio líquido (soltaria água). A Jane atual não rouba a carteira de um marido, e pode ser casada com outra mulher, trabalhar em jornada dupla. Porém, shopping center virou um templo de consumo no mundo todo. A TV do seriado é 3D e plana. Acertaram. Jane está sempre de dieta e vê com amigos o ídolo pop pela TV. Acertaram. 
Todos usam roupa de helanca. Mas George trabalharia hoje em dia 15 horas por dia num office que não é dele, iria num carro que não é dele. A comida viria de um aplicativo. Muitas vezes em casa, pelo celular, com direitos trabalhistas reduzidos, provavelmente autônomo, pagando um plano de saúde caro, num mundo hiperconectado não imaginado pelos roteiristas, não fumaria. 
Num dos episódios, feito quando as viagens espaciais começavam, Elroy vai à Lua. O último homem a pousar lá foi o geólogo Jack Schmitt em dezembro de 1972 na Apollo 17. Por enquanto, muitas promessas turísticas de empresas privadas autorizadas pela Nasa: voos suborbitais, como os da Virgin, Boeing e SpaceX, de Elon Musk. 
Carro voador existe em protótipo aos montes. Mas nenhum em linha de produção. Nem se sabe se o espaço é melhor estrada que o mundo subterrâneo com vias descongestionadas, como planeja Musk. O casal falava via vídeo com a família e o trabalho. Nesse ponto, acertaram em cheio. Mais e mais, fazemos chats via internet, especialmente via celular.
George planejou se clonar, para que outro George fosse ao trabalho. Depois da ovelha Dolly, questões éticas sobre a clonagem humana foram levantadas. As pesquisas não avançaram, até onde sabemos. 
Mas o que mais nos fascinava eram as torres flutuantes, com apartamentos cheios de janelões, e o elevador a vácuo, como um tubo num parque de diversões. Na “futurista” Barra da Tijuca, pensaram em torres redondas como as do desenho. Poucas vingaram. O Hotel Nacional, em São Conrado, faliu. Vidigal e Rocinha, favelas vizinhas, cresceram e dominam a paisagem. A arquitetura vislumbrou, urbanistas planejaram, mas esbarraram numa política econômica que empurra muitos para a pobreza. Há 60 anos.
O desenho é uma luz de otimismo diante do que vivemos: catástrofe climática, derretimento das calotas, abundância de CO2 na atmosfera, queimadas, aumento do nível dos oceanos, entulhados de plástico, escassez de água potável, aumento da desigualdade social, xenofobia, ódio em redes sociais, fake news, depressão entre adolescentes e jovens viciados em internet, ascensão de regimes autoritários, nacionalismo e, agora, a pandemia de um vírus mutante desconhecido muito letal. 
A família Jetson nunca deixará de fazer parte do nosso imaginário. Quem sabe, se sairmos dessa, podemos nos reorganizar e viver numa sociedade pura e harmônica, como a de um desenho dos anos 1960, com igualdade racial e de gênero.




terça-feira, 17 de março de 2020

Felicidade - Jaime Cimenti

Meio pretensioso falar de felicidade em 3.700 caracteres, mas o importante é ser feliz, e disso eu e as torcidas do mundo não abrimos mão. Tem gente que se atreveu a falar de felicidade em uma palavra ou uma frase. Há quem fale de felicidade apenas com um sorriso silencioso. Precisa mais?
Do javali no jantar na caverna, com a família e as histórias ao pé do fogo, até os atuais infindáveis objetos de desejo e de consumo e a insatisfação civilizada freudiana, muita conversa filosófica, religiosa, sociológica, psicológica e de mesa de bar rolou e rola sobre o tema, que, claro, é subjetivo e infinito como o amor, o sentido da vida e as perguntas:
Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Alguns filósofos gregos associaram a felicidade com aguentar firme (estoicos), outros, com virtude ou prazer e na antiga China, Lao Tse falou em união com as forças da natureza, enquanto Confúcio relacionou felicidade com dever, cortesia e generosidade. Imagina Confúcio hoje por aí! Os budistas pensam em felicidade como superação dos desejos e a atitude mental que ilumine o que nos deixa felizes ou infelizes. Cristo pensou que felicidade é o amor, enquanto que Maomé enfatizou que seria a caridade e a vida após a morte.
Os ingleses dos séculos XVIII e XIX do utilitarismo, refletiram que a felicidade move os humanos e que os governos deviam buscar a felicidade coletiva. O positivismo francês de Comte dos séculos XIII e XIX colocou a felicidade ao lado da razão e da ciência, do altruísmo e da solidariedade. Depois vieram Marx, com a ideia de sociedade igualitária relacionada com a felicidade, e Sigmund Freud, com seu "o princípio do prazer" e a conclusão de que seremos só parcialmente felizes.
Pois é, o mundo e as pessoas teimam em não ser aquilo que a gente imagina e quer. Einstein disse que é tudo relativo. E aí seguimos, com ideias e desejos de Pibão, inflação baixa, alta renda per capita, poucas doenças, bem-estar e sonhos de morar no Canadá, na Nova Zelândia, na Austrália ou nos países nórdicos, onde - dizem - tem mais felicidade. Sim, lá tem problemas também, rolos com imigrantes, alguns crimes e loucuras humanas. Nada, ninguém e nenhum lugar é perfeito. Pensando bem, a perfeição seria muito chata. Melhor assim, demasiadamente humanos e seres imperfeitos.
Cuidar do corpo, da mente e do espírito, amar, ter família e amigos, trabalhar no que gosta, fazer exercícios, ajudar os outros, adaptar-se, rebelar-se, comer bem, transformar a tristeza, a depressão e as emoções ruins em coisas que prestem, como atitudes positivas, trabalho, arte, esporte e bom convívio; saber que a gente ganha a discussão não começando a discutir; sorrir e lembrar que rir é o melhor remédio; levar a sério a brincadeira, como sérias brincam as crianças; ter forte identidade étnica, pertencer a grupos mas com independência pessoal; gostar do que se é e do que se tem; ser delicado, gentil e prestativo; e, claro, buscar formas individuais e pessoais para ser feliz, que a lista da felicidade jamais será completa, são algumas dicas.
A propósito...
Ser feliz é, também, como disse a Jackie Kennedy, emagrecer alguns quilos e cortar o cabelo, especialmente se for com um cabeleireiro competente como o Marlus Lisboa, que ama sua profissão e trabalha feliz. Ser feliz é não figurar na lista do Janot e saber que o japonês da federal não vai bater na nossa porta nem por engano.
Ser feliz é chegar em casa de noite vivo, encontrar a família viva, comer uva pensando em Bento Gonçalves, sozinho ou junto com a galera, e ouvir o Tony Bennet, a Amy Winehouse e a Lady Gaga.
Pensando bem, mas pensando muito bem, ser feliz é quando a gente não pensa no assunto e simplesmente aproveita aqueles momentos fugazes e eternos para esquecer da morte, lembrar da vida e sorrir, sem medo do lugar-comum.



Publicada em 18/03/2017

Histórias - Luis Fernando Verissimo

Ele contou na roda que tinha sido preso por questões políticas mas não tinha sido torturado. Pelo menos não fisicamente. Ninguém lhe tocara um dedo.
Mas o colocaram numa cela com um homem enorme, que tinha mais de peito do que ele de altura. O nome do homem, e a razão para ele estar preso, nunca ficara sabendo. Só lhe disseram que o apelido do homem era Animal. E que ele gostava de ouvir histórias.
Histórias? É. O Animal gostava de histórias. Ele deveria contar histórias ao Animal e só parar quando o Animal dissesse “Pare”. Se parasse antes, ó...
E lhe mostraram o que o Animal faria com o seu crânio, apertando-o entre suas mãos. Se parasse de contar histórias por mais de um minuto, seu crânio viraria um tomate entre as mãos gigantescas do Animal.
Mas que tipo de histórias deveria contar ao Animal? Se vire, disseram. E o trancaram na cela com o Animal. Ele ensaiou um bom-dia. O Animal quieto. Ele disse seu nome, esticou a mão para apertar a mão do Animal. O Animal imóvel. Olhando fixo para um ponto na sua testa. Talvez, pensou ele, calculando a pressão que precisaria para esmagar sua cabeça. Quando o Animal deu um passo na sua direção, ele disse, rápido:
– Era uma vez... O Animal recuou e sentou-se no seu catre para ouvir a história. Ele continuou, tentando desesperadamente improvisar uma narrativa:
– ... uma princesa que morava num castelo. Um dia, um passarinho chegou na janela da princesa e...
Seria aquele o tipo de história de que o Animal gostava? A cara impassível do Animal não lhe dizia nada. Só o que mudara era que ele agora olhava para a boca do outro, em vez de um ponto na sua testa. O narrador continuou improvisando. Durante muitas horas, contou sua história, tentando adivinhar o que agradava e não agradava ao Animal. Mais romance ou mais ação? Mais ou menos sangue? O Animal não fazia um som.
Entrou de tudo na história. Príncipe. Madrasta. Lobo. Sapo. Dragão. Anão. Vovozinha. Várias vezes o narrador sugeriu que a história tinha terminado.
– E viveram felizes para sempre...
Mas o Animal não dizia nada. E ele, apavorado, emendava outra história.
– Enquanto isso, em outro castelo, longe dali... Contou todas as histórias de fada que conhecia e inventou mais algumas.
Quando não sabia o que mais inventar, começou a contar filmes, romances, todos os enredos de que conseguia se lembrar. O dia raiou e o Animal continuava olhando para a sua boca, sem dizer uma palavra. Ele espremia a própria cabeça, metaforicamente, para se lembrar de mais histórias. Já esgotara todos os enredos possíveis. Recorrera à Bíblia, às Mil e uma Noites, a Dom Quixote, a Homero, a Janete Clair.
Começou a recontar histórias, variando alguns detalhes para o Animal não desconfiar. Na nova versão, a vovozinha comia o lobo. Misturou histórias. Sinbad e Peter Pan contra invasores de Marte. Pinóquio, o Rei Arthur e o Capitão Nemo juntando-se aos Três Mosqueteiros nas estepes numa emboscada para o mensageiro do Tzar... Os dias passavam e o Animal não desgrudava os olhos da sua boca. E ele não tinha mais voz!
Decidiu contar histórias com mais conteúdo psicológico do que ação, para ver se o Animal se aborrecia e dizia “Pare”. Ou se dormia. Mas o Animal nem piscava. Finalmente, ele se atirou contra as grades e gritou – ou sussurrou, com a pouca voz que lhe sobrava – que não aguentava mais, que o tirassem dali, que confessaria tudo. Confessaria o que quisessem!
E ele contou que mais tarde, depois que o soltaram, encontrara alguém que estivera preso na mesma época e este lhe perguntara: – Também botaram você na cela com o surdo-mudo?



Malucos benignos - Humberto Werneck

Um bom rótulo para aquele camarada talvez seja “sistemático”, no sentido que em Minas Gerais se dá a esta palavra, sob medida para qualificar gente por demais metódica. Sobraria até para Carlos Drummond de Andrade, com seu hábito diário de tesourar papéis, reduzindo-os a pedaços cada vez menores, antes de fazer deles um embrulho em folha de jornal, finalizado com barbante e em seguida despejado na lixeira. Mas o mineirês, a gente sabe, nem sempre é compreensível em outras unidades da Federação; agora em maio vai fazer meio século que me transplantei para São Paulo, e nesse tempo todo raras vezes encontrei quem soubesse, por exemplo, o que é estar “apertado de costura” - originalmente, o argumento da costureira para explicar à freguesa que, por se achar empencada de encomendas, não está em condições de dar barra no vestido.
Mas eu falava de um camarada sistemático - sistemático paulista, aliás. Como não estamos em Minas, vamos chamá-lo de maluco benigno. 
Veja se não é mesmo. No cinema, prefere nem ver o filme se não encontrar poltrona junto à saída. “Sou bobo nada”, explica, “só vou morrer se a porta desabar em cima de mim”. Jamais embarca sozinho num elevador, por medo de despencar sem companhia. Avião, canoa, balsa? Sem chance: meios de transporte, para ele, apenas aqueles que lhe garantam terra firme sob os pés. 
Para tudo isso, tem prontinha uma enigmática filosofia de vida, que vive repetindo: “Presença de espírito e ausência de coisa!”.
*
Deve ser de família, pois um de seus irmãos também é maluco benigno. Por mais que insistam no oferecimento, não come “doce que treme”, do tipo gelatina. Motorista habilitado desde a mocidade, não esperem dele que dê marcha à ré. Questão de princípio, pois acredita que um homem nunca deve voltar atrás, nem mesmo em circunstâncias motorísticas. Por isso, jamais empunha o volante de seu carro, uma idosa Vemaguete, se não puder contar com a assistência da mulher, filho ou neto, para quando seja indispensável fazer uma baliza. 
Se você acha que nesse caso a maluquice já bateu no teto, fique sabendo de outra bizarrice da mesma criatura. 
Na falta de assunto da aposentadoria, tomou gosto pela pintura - para, depois de gastar os tubos, não só de tinta, entregar os pontos: não consegue, admite, conceber um quadro, pois a tela em branco, assustadora, lhe traz paralisia. Perdeu essa veleidade, trocada ultimamente pelo hábito de ir a feiras de arte, como a da Praça da República, no centro de São Paulo, de onde volta com alguma obra já emoldurada - à qual, depois de muito matutar, acrescenta aquilo que lhe parece faltar à composição. “Minha coisa”, assume, “são os detalhes, nisso sou bom”. 
Pincéis na mão, ele se põe meditativo, de pé em frente ao cavalete, o corpo apoiado na perna direita, numa postura corporal que lhe parece própria de um legítimo pintor. Aí vêm vindo as iluminações da criação artística. Nesta curva da estradinha vai bem uma choupana. Não cairiam mal dois coqueiros esguios com os pescoços entrelaçados. Um regato a serpentear - quase se pode ouvir o gorgolejar das águas cristalinas! Um sol que justifique a luz da tela. E neste canto aqui, é claro, a minha assinatura, depois de apagar a de quem fracassou no intento de produzir obra com todos os detalhes. 
Não é impossível, pensei outro dia, que o imaginativo pintor, sem o saber, esteja na trip de artistas famosos dados a fazer “intervenções” em quadro alheio. Com certeza existe algum assim, bem cotado nas galerias e museus. Mas quem? Preciso consultar o Claudio Cretti, a Germana Monte-Mór, quem sabe o Rodrigo Naves.
*
Aquele ali se arrepiava todo quando via pela casa um sapato com a sola virada para cima. Se fosse um par, então... Dava azar, dizia, poderia provocar a morte da mãe de quem se permitisse tal descuido. Por que a mãe e não o dono do pisante? Sei lá, desconversava ele. Um dia, tendo brigado com a mulher, foi à sapateira revirou tudo - o que, no caso dos calçados de salto alto, lhe custou um trabalhão. Só então se deu conta de que não iria funcionar, pelo simples fato de que a sogra, aliás gente boa, já tinha batido as botas.
Ainda no capítulo calçados, tem aquele outro, de quem já falei, que não consegue pegar no sono se ao lado da cama os dois pés de chinelo não estiverem emparelhados com o maior rigor. Só assim, explica ele, seus artelhos conseguirão encontrar de primeira os chinelos e neles se encaixar, sem necessidade de tatear às cegas no breu da madrugada. 
E a isso não se resume seu invulgar comportamento de alcova, entrega a mulher. O marido jamais se deita para dormir sem antes dispor no criado-mudo, com rigor igual ao empregado no quesito chinelos, duas ou três barrinhas de cereais. Vício contraído, explica ele, de tanto viajar pela Gol quando o serviço de bordo da companhia era uma barra. Apaga prontamente - para despertar no meio da madrugada, quando também o estômago se põe a roncar. Voraz, dá cabo então das barrinhas, num crunch-crunch-crunch que não só arranca do sono a mulher como a precipita numa enraivecida insônia - enquanto ele retoma, bicho saciado, sua outra modalidade de ronco.
*
Naquela casa, ninguém chegava da rua sem imediatamente lavar as mãos. Todos na família se adoravam, mas nem por isso se permitiam contatos corporais. Duas bochechas, ali, jamais colidiam, por maior que fossem - e eram - o afeto e o carinho de seus donos. Em vez disso, praticava-se o que alguém (vá lá: o autor destas linhas) chamou de “telebeijo”, com pelo menos um centímetro a separar as duas superfícies de carne humana. A justificativa, além do imperativo de assepsia cristã, eram remotos casos de tuberculose no histórico do clã. Tocar gente ou coisa envolvia riscos. O dono da casa, então, esse era radical. Se comia alguma coisa sem auxílio de talher, jamais traçava todo o bocado. De uma fatia de bolo ou queijo, por exemplo, ele discretamente descartava uma parte, aquela em que seus dedos, neuroticamente lavados, houvessem tocado.
*
Falei, falei, falei - e não dei conta do assunto. Se você não se opuser, voltarei ao tema, mesmo sabendo que a reincidência poderá escancarar o que seria a minha própria maluquice benigna. Em todo caso, não reclame: é isso ou um tal de coronavírus, já ouviu falar? 

sexta-feira, 13 de março de 2020

Mãos ao alto! - Paulo Sant'Ana

As autoridades policiais aconselham as pessoas que são assaltadas a que não reajam no momento em que são abordadas pelos ladrões.
Parece-me um conselho sábio. Mas ele contém em contrapartida uma vantagem para os ladrões, que assim assaltam mais facilmente.
Fico imaginando os ladrões se reunindo para assaltar e um deles observa que a vítima pode reagir, ao que o outro meliante diz que não existe essa possibilidade, ela foi aconselhada já pela polícia a não reagir.
Não sei se no manual de conselhos das autoridades está contido o de que a única forma de reagir é quando a vítima conta com recursos superiores aos dos ladrões para o enfrentamento: um exemplo, os ladrões vêm armados de facas e a vítima porta um revólver que pode ser com rapidez sacado.
Nesse caso, a autoridade não aconselhará, mesmo assim, a vítima a reagir?
O revoltante nesses milhares de assaltos verificados entre nós nos últimos anos é a malha de casos em que a vítima não reage, entrega todos os seus pertences e mesmo assim é assassinada friamente.
O que será que pensa um assaltante que mata uma vítima indefesa num assalto? Se é que ele pensa alguma coisa.
Mas as estatísticas provam a sobejo que as vítimas que não reagem têm quase que ilimitadas chances de não serem mortas ou feridas.
E as estatísticas também atestam que as vítimas que reagem a assaltos possuem chances enormes de saírem mortas ou feridas.
Na maioria dos casos, as vítimas que reagem a assaltos o fazem por considerarem de grande valor financeiro ou estimativo o que lhes vai ser roubado.
O certo é não prezar esse valor e entender que o maior valor é a sua vida, que preservará se não reagir.
Mas é na hora que a pessoa pensa o que vai fazer. Muitas vezes leu o manual que aconselha a não reagir e reage mesmo assim.
Um conselho que eu agregaria a esse manual é que, ao estar sendo assaltada, a vítima não faça nenhum gesto brusco que possa produzir no assaltante a impressão de que vai reagir. Se puder, levante as mãos e diga ao assaltante que ele pode levar tudo, que concorda em ser roubada.
É importante pôr na cabeça que não vai reagir, porque nos dias que correm, em nosso meio, são cada vez mais assustadoramente frequentes os assaltos, com o que aumenta geometricamente a possibilidade de que qualquer de nós venha a ser assaltado.
Eu até ousaria dizer que a população esteja sempre pronta para ser assaltada.
E tomara que para todos, caso haja o assalto, haja-o e... pronto.


Publicada em 02/03/2014

Mário - Fabricio Corsaletti


Pra espantar um banzo de vários dias, levantei da cama assim que abri os olhos, tomei um banho como quem recebe um passe, virei uma jarra de café com leite e chamei um Uber. Destino: rua Lopes Chaves, 546, Barra Funda, São Paulo, onde de 1921 a 1945, ano da sua morte, viveu o poeta Mário de Andrade.
O sobrado foi restaurado e é hoje (na verdade, desde os anos 90) a Oficina Cultural Casa Mário de Andrade, que oferece cursos, palestras e outras atividades bacanas, além de ser um museu em homenagem ao autor de "Macunaíma".
Eu nunca tinha ido lá. Fui e me surpreendi. É tudo muito bem cuidado. Mofo zero e zero naftalina. Nenhum cartaz pendurado torto. Luz natural no assoalho polido. Um guia simpático que fez a lição de casa e tem prazer em conversar a respeito.
Na entrada há um armário com fotos, cartas e documentos de Mário. Um longo bilhete destinado à mãe, com quem morava, chama a atenção: nele, o grande intérprete do Brasil dá triviais porém minuciosas instruções sobre a maneira como seus ternos e camisas deveriam ser passados. Seria cômico, se não fosse comovente, por ser tão neuroticamente humano.
Na sala ao lado, no alto das paredes brancas, uma faixa de 30 centímetros de reboco escavado nos permite ver o cor-de-rosa adornado com flores —um costume da época, segundo o guia— da pintura original. Isso me fez lembrar que uma vez bebi num bar do Cambuci com o mesmo tipo de enfeite; nesse caso, porém, o pintor não era anônimo, mas Alfredo Volpi, o gênio das bandeirinhas de São João.
O piano no qual Mário dava as aulas que lhe garantiam o sustento também está lá. Mas confesso que sempre acho estranho topar com um instrumento musical num museu. Não que seja contra qualquer museu da música. Mas sensações são sensações (seja lá o que isso signifique), e sinto que um instrumento musical é algo vivo, algo que não merece ser confinado. Basta observar um violão por um instante pra perceber que ele só precisa de alguém que saiba tocá-lo —ao contrário de nós, um violão só pensa em ser feliz.
Diante do piano de Mário de Andrade essa ideia se tornou ainda mais forte. Ou o seu dono ressuscitava dos mortos ou então era melhor chamar o Arrigo Barnabé pra cantar Lupicínio.
O ponto alto da visita foi sem dúvida poder entrar no escritório de um dos heróis dos meus 20 anos, um cômodo no andar de cima com duas janelas azuis abertas pra rua. Então foi aqui, pensei, enquanto repassava mentalmente a última estrofe do poema de abertura da "Lira Paulistana": "Minha viola quebrada,/ Raiva, anseios, lutas, vida,/ Miséria, tudo passou-se/ Em São Paulo". E foi apenas aqui: na solidão povoada que é a cabeça de todo escritor.
Agora o ar circula sem segredos. O guia nos conta que a mesa, que a máquina de escrever, que ao lado do quarto da irmã, ou da tia... Finjo que presto atenção. A falação termina. Agradeço e vou embora a pé, cruzando a cidade, "costureira de malditos", neste mundo velho sem Deus.

Um brinde às inimigas - Manuela Cantuária

  Duas amigas em uma mesa de bar. Uma delas ergue seu copo. "Um brinde às inimigas, que elas tenham saúde em dobro para aplaudir nosso ...