quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Darwin no céu - Luis Fernando Verissimo

Talvez se encontrassem argumentos mais fortes a favor do tal design inteligente por trás de tudo no universo, segundo a tese antievolucionista, não nos seus triunfos, mas nos seus fracassos. Por exemplo: o que os salmões precisam fazer para terem direito a uma família, subindo rios contra a correnteza com grande esforço para chegarem ao seu local de origem e procriarem, é um típico projeto malpensado que já teria sido corrigido se a evolução fosse ao acaso, como queria Darwin, e premiasse com a sobrevivência quem tivesse desenvolvido um método mais simples de se reproduzir.
Como o dos salmões, há muitos outros casos de erros, contrassensos, anomalias, esquecimentos - os mamilos masculinos, por exemplo, ou a persistência das unhas do pé nos humanos, que não existiriam mais se Darwin tivesse razão - atestando a existência de um designer inteligente, só um pouco distraído.
Uma referência à "criação de Deus" que não estava na primeira edição de A Origem das Espécies de Darwin foi acrescentada nas edições seguintes, uma tentativa dos editores de atenuar a reação das igrejas cristãs à teoria revolucionária. Deve continuar nas edições atuais. A reação nunca diminuiu. Nos Estados Unidos, hoje, travam-se batalhas judiciais sobre a proibição de se ensinar o evolucionismo, ou a obrigação de se ensinar o criacionismo como alternativa ao evolucionismo, em redes escolares estaduais.
O fortalecimento político da direita religiosa americana devolveu à questão o imediatismo que tinha no século 19, quando a teoria era nova. Conceitos como o do design inteligente servem para atualizar pelo menos o vocabulário dos que pregam uma interpretação literal da Bíblia. Como a teoria do design não alude especificamente, só implicitamente, a Deus como o criador, ela pode proporcionar um começo de diálogo.
Dizem que Darwin entrou no céu cristão, para a sua grande surpresa, mas durante anos Deus recusou-se a recebê-lo, até que ele reconhecesse sua autoria das espécies, o que Darwin rechaçava. Agora já estariam conversando. Os dois teriam feito concessões, abandonando suas reivindicações radicais, e suas conversas começariam sempre com a frase "Admitamos, como hipótese, que...". A vida sexual dos salmões deve estar sendo muito citada.

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

O irmão mais velho de coração - Fabrício Carpinejar

O filho mais velho nem sempre é o mais velho. Pode ser o caçula ou o do meio. Há sempre um filho que assume a posição de segundo pai, que demonstra uma maior praticidade no ato de cuidar das contas e de fazer serviço de rua.

É o volante da família. Na ausência dos responsáveis, ele é quem determina o ritmo do mutirão e a partilha das tarefas. Não deixa a casa bagunçada e fora do eixo.

Age com a liberdade de um emancipado, com a responsabilidade e a retidão no acolhimento das obrigações. Não se nega a tarefas difíceis, como ir ao banco ou ao supermercado. Devolve o troco certinho e ainda explica o que gastou.

Gosta de resolver conflitos e apartar brigas. Será o primeiro a tirar carteira de motorista, a trabalhar, a namorar.

Não é uma criança que ri e se diverte. Já tem dentro de si uma seriedade adulta desde pequeno.

Sua influência na família não traz conexão com a idade, mas com a maturidade emocional. Não arma birra, não implica. É aquele que dá a mão para os irmãos menores na hora de passear. É aquele que cede o seu presente para não gerar inveja.

Toda família terá um filho que será o representante natural dos pais, com um bom comportamento precoce e até inexplicável.

Não assumi esse papel. De modo nenhum. Quando recebia um cheque para descontar, eu deixava no bolso da calça para deleite da máquina de lavar. Vivia distraído. Errava caminhos e chegava atrasado a compromissos. Mais próximo de uma ovelha desgarrada do que de pastor do rebanho. Tinha como único talento arrumar desculpas para os meus erros. Nisso fui perito: inventava cada história mirabolante para justificar as falhas que só me restava ser escritor. Tanto que os pais desistiram, em meus dez anos, de me passar encomenda ou pedir favor.

Rodrigo, o segundo de casa, era o irmão mais velho de cabeça e de coração. Entre os quatro filhos, disparava na frente na corrida para ajudar o outro. Acho que já nasceu com barba. Nem quando quebrou a perna chorou. Consolava quem sofria, medicava os nossos tombos com mercúrio cromo e gelol, exercia a mediação de nossos desejos na mesa de jantar e nos colocava para dormir levantando as nossas cobertas até o queixo e lendo livros para espantar os medos.

Mas olho para ele, hoje com 49 anos, perto dos 50, e sinto pena e gratidão ao mesmo tempo.

Ele não teve infância. Ele me deu a sua infância para que eu pudesse brincar em paz.

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Um café e um velho - Isabela Cogo

Todas as manhãs passo pelo mesmo lugar, mesmo horário, mesmo uniforme e quase sempre encontro as mesmas pessoas, andando como formigas indo para seus empregos, assim como eu. Rotina de pelo menos um ano. Hoje, de repente, me sinto atraída – mais que o normal –  pelo cheiro de café que vem de uma antiga panificadora de esquina, algumas quadras antes do meu trabalho. Por sorte, ainda é começo de mês e me restam uns trocados no bolso. Fui direto ao balcão e pedi um café preto amargo.
Sentei-me na mesa 4, bem ao centro das outras oito mesas. Tomei um gole do meu café, quente e amargo. Matei meu desejo. Agora sim começo a reparar nas pessoas ao meu redor e em outros detalhes.
Na mesa a minha frente, ao lado da janela, um senhor lendo um jornal, na mesa ao meu lado uma família e nas demais, se não vazias, têm dois ou três trabalhadores comendo apressados. Volto minha atenção ao senhor. Ele também tem um café e um prato grande com meia dúzia de bolachinhas redondas, daquelas que vem com uma geleia vermelha por cima. Ele estava com as pernas cruzadas. Bem magro, mas parecia saudável. Pele clara e olhos castanhos. Usava um sapato social gasto, mas bem cuidado e lustrado. Uma calça social que também parecia velha e uma camisa de manga comprida azul claro com listras finas por dentro da calça. A barba rala e grisalha. O cabelo parecia ter sido cortado uns dois dias atrás. Ele estava realmente bem arrumado.
Pensei em quem ele poderia ser e o que fazia da vida. Parecia-me um escritor, mas não desses modernos não, era mais estilo Machado de Assis. Estaria ele, ali, procurando uma inspiração? Ou distraindo-se da frustação de seus maus escritos? Poderia ser também um jornalista aposentado. Talvez um advogado ou juiz. Quem sabe nem era aposentado. E se fosse um médico? Um dentista? Um frentista ou motorista? Eu nunca saberia. Seria ele um viúvo? Ou apenas resolveu deixar a esposa em paz ao menos no café da manhã? Teriam os dois brigado? Eu nunca saberia. Tivera grandes amigos durante a vida ou sempre solitário, como agora? Que escolas ou faculdades frequentou? Quantas histórias tinha para contar? Mais alegrias ou mais mágoas? Sempre gostou de bolachinhas junto ao café? Eu nunca saberia.
Passados alguns minutos, senti como se estivesse saindo de um transe, tomei meu último gole de café, levantei-me da mesa, paguei a conta e segui meu caminho até o trabalho. Tive uma sensação boa e enquanto caminhava pensei em quem eu era e o que fazia da vida. Seria para sempre uma empregada? Ou uma escritora? Quem sabe uma jornalista? Seria eu, um dia, uma senhora estilosa, com um vestido azul escuro desbotado e sapatos sociais, lendo um jornal em uma panificadora qualquer? Ainda iria gostar de café amargo? Alguém, algum dia, se importaria?
Deixei o velho para trás e com ele as inúmeras histórias que inventei. Durante o dia, minhas tarefas não me permitiram pensar em mais nada. Mas agora, ao me deitar, me pergunto se o senhor estará amanhã novamente no mesmo lugar. Não importa. Mesmo que eu seja atraída pelo seu aroma, já não tenho mais trocados para o café.
O velho nunca saberia.

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Presas de vampiros -- Paulo Santana

Idiotamente, noto que as minhas unhas crescem, assim como crescem meus cabelos.
Ainda idiotamente, imagino que os dentes cresçam, mesmo os dentes de leite.
Temos então que as unhas, os cabelos e os dentes crescem.
Falo isso porque a unha do meu hálux (dedão do pé), ao crescer, por vezes encrava.
E, como se sabe, as unhas normalmente devem crescer sobre a pele. Quando elas porventura cresçam e se desviem para aprofundarem-se na carne, encravam.
E, quando encravam, as unhas doem.
E, para desencravar-se uma unha, recorre-se a um profissional que é denominado de podólogo.
Penso que o crescimento dos cabelos e dentes deva ser acompanhado pelos cabeleireiros e pelos dentistas.
Dentes brancos são de cor normal. Nunca vi qualquer dente de outra cor natural, os chamados dentes de ouro são encapados com a cor dourada.
Já os cabelos, quando embranquecem e ficam da cor da prata, denotam envelhecimento.
Meus cabelos brancos, por exemplo, são beijos de serenata que a lua mandou pra mim.
Os meus cabelos grisalhos, também, por exemplo, são pingos brancos de orvalho num tinteiro de nanquim.
Ocorre-me estranhamente que os defuntos não veem seus cabelos, suas unhas e seus dentes crescerem. Ou seja, tudo para quando sobrevém a morte.
Se, depois de morrer, em alguém continuam crescendo os cabelos ou as unhas, então é porque algo fenomenal está acontecendo, chamem depressa um anatomista para ver o que ocorre.
Houve apenas um caso de crescimento das unhas de um defunto, parece-me que em Glasgow, Escócia, em 1818: o cadáver foi examinado diuturnamente e verificou-se que suas unhas dos pés e das mãos cresciam dois centímetros por dia. Até hoje ninguém solucionou aquele impressionante mistério.
Outro mistério aconteceu em Londres, em 1641: um homem idoso, ao morrer, teve seus cabelos brancos imediatamente transformados para a cor preta, o que deixou seus sobreviventes perplexos: não era para menos, o homem acabara de remoçar depois de morto.
E, quanto a crescimento de dentes, é preciso destacar que, no caso dos vampiros, alguns de seus dentes crescem desmesuradamente e viram presas, exatamente as que sugam sangue de suas vítimas.

Um brinde às inimigas - Manuela Cantuária

  Duas amigas em uma mesa de bar. Uma delas ergue seu copo. "Um brinde às inimigas, que elas tenham saúde em dobro para aplaudir nosso ...