sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Um café e um velho - Isabela Cogo

Todas as manhãs passo pelo mesmo lugar, mesmo horário, mesmo uniforme e quase sempre encontro as mesmas pessoas, andando como formigas indo para seus empregos, assim como eu. Rotina de pelo menos um ano. Hoje, de repente, me sinto atraída – mais que o normal –  pelo cheiro de café que vem de uma antiga panificadora de esquina, algumas quadras antes do meu trabalho. Por sorte, ainda é começo de mês e me restam uns trocados no bolso. Fui direto ao balcão e pedi um café preto amargo.
Sentei-me na mesa 4, bem ao centro das outras oito mesas. Tomei um gole do meu café, quente e amargo. Matei meu desejo. Agora sim começo a reparar nas pessoas ao meu redor e em outros detalhes.
Na mesa a minha frente, ao lado da janela, um senhor lendo um jornal, na mesa ao meu lado uma família e nas demais, se não vazias, têm dois ou três trabalhadores comendo apressados. Volto minha atenção ao senhor. Ele também tem um café e um prato grande com meia dúzia de bolachinhas redondas, daquelas que vem com uma geleia vermelha por cima. Ele estava com as pernas cruzadas. Bem magro, mas parecia saudável. Pele clara e olhos castanhos. Usava um sapato social gasto, mas bem cuidado e lustrado. Uma calça social que também parecia velha e uma camisa de manga comprida azul claro com listras finas por dentro da calça. A barba rala e grisalha. O cabelo parecia ter sido cortado uns dois dias atrás. Ele estava realmente bem arrumado.
Pensei em quem ele poderia ser e o que fazia da vida. Parecia-me um escritor, mas não desses modernos não, era mais estilo Machado de Assis. Estaria ele, ali, procurando uma inspiração? Ou distraindo-se da frustação de seus maus escritos? Poderia ser também um jornalista aposentado. Talvez um advogado ou juiz. Quem sabe nem era aposentado. E se fosse um médico? Um dentista? Um frentista ou motorista? Eu nunca saberia. Seria ele um viúvo? Ou apenas resolveu deixar a esposa em paz ao menos no café da manhã? Teriam os dois brigado? Eu nunca saberia. Tivera grandes amigos durante a vida ou sempre solitário, como agora? Que escolas ou faculdades frequentou? Quantas histórias tinha para contar? Mais alegrias ou mais mágoas? Sempre gostou de bolachinhas junto ao café? Eu nunca saberia.
Passados alguns minutos, senti como se estivesse saindo de um transe, tomei meu último gole de café, levantei-me da mesa, paguei a conta e segui meu caminho até o trabalho. Tive uma sensação boa e enquanto caminhava pensei em quem eu era e o que fazia da vida. Seria para sempre uma empregada? Ou uma escritora? Quem sabe uma jornalista? Seria eu, um dia, uma senhora estilosa, com um vestido azul escuro desbotado e sapatos sociais, lendo um jornal em uma panificadora qualquer? Ainda iria gostar de café amargo? Alguém, algum dia, se importaria?
Deixei o velho para trás e com ele as inúmeras histórias que inventei. Durante o dia, minhas tarefas não me permitiram pensar em mais nada. Mas agora, ao me deitar, me pergunto se o senhor estará amanhã novamente no mesmo lugar. Não importa. Mesmo que eu seja atraída pelo seu aroma, já não tenho mais trocados para o café.
O velho nunca saberia.

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