terça-feira, 3 de maio de 2022

Cada coisa tem seu cada qual - Gilberto Amendola

 A moeda que caiu no vão do sofá – é sozinha.

O brigadeiro pisado no carpete felpudo – é sozinho.

A garrafa pet que navega o Tietê – é sozinha.

Uma tampa de caneta Bic mordida – é sozinha.

O guarda-chuva pingando na entrada da loja – é sozinho.

Um fone de ouvido quebrado – é silêncio.

O calendário do ano passado – é memória.

Um passaporte vencido – é saudade.

O buraco na parede – é ausência.

Um relógio sem ponteiros – é meio-dia.

O barulho da geladeira – é meia-noite. 

Um copo sujo de café – é futuro.

A bengala cinza encostada na parede – é passado.

Fotografias de um amor perdido – é castigo

Um livro não lido – é ficção.

Um celular no modo avião – é viagem.

Um All Star desamarrado – é juventude. 

Uma cortina que voa – é Aladdin.

Uma tesoura sem ponta – é precaução.

Um dedo postiço – é mágica (e também serve para nos lembrar que nem tudo precisa ter utilidade). 

Cada coisa tem o seu cada qual. Ou pelo menos tinha. Não sei se hoje ainda é assim.

Antigamente, atrás da tampinha de Coca-Cola tinha uma figurinha ou um brinde – e isso era esperança.

Antigamente, nos palitos de sorvete a gente lia que havia outro picolé nos esperando – e isso também era esperança.

Antigamente, eu esperava horas até carregar uma foto de mulher pelada no meu computador – e isso era resiliência (e esperança também).

Antigamente, para não pagar a viagem de ônibus, a gente descia por trás. 

Antigamente, eu tinha uma vitrola da Gradiente. Nela, minha mãe ouvia Álibi, um disco lindo da Maria Bethânia – e desde muito novo cantava com ela: “de noite eu rondo a cidade e lá, lá, lá...” 

Antigamente, a gente “andava de cavalinho” nos ombros do pai; aprendia a fazer barulho de peido com a avó (assoprando as costas da mão) e a beber espuminha de cerveja com o tio.

Antigamente, a gente escrevia cartas para o Papai Noel, para parentes do exterior, para garotas impossíveis e para o Porta da Esperança.

O e-mail guardado na caixa de rascunhos não é nada – e nem ninguém.

A mensagem no site pede para que eu confirme, com um clique, que eu não sou um robô. Que eu não sou.

A mão treme

Às vezes.


Foto: Tiago Queiroz


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