terça-feira, 27 de outubro de 2020

Passo o ponto - Gilberto Amendola

 

Foto: Daniel Teixeira (Estadão)


Eu ando pelo bairro contabilizando placas de “Aluga-se” ou “Passo o Ponto”. A cada portão fechado, uma fagulha de memória acende alguma coisa dentro de mim. 

Um bar fechado não é só um bar fechado. 

As cadeiras estão empilhadas sobre um balcão em que eu já me debrucei. Dos quadros na parede, sobraram apenas pregos solitários onde fantasmas ainda se balançam.

O papel no chão mostra tudo o que consumimos (e, eventualmente, aquilo que nos consumiu). Quanto gastamos naquela noite? Quanto gastamos nos iludindo que tudo seria pra sempre – como nossos empregos, amores e projetos de festim. Uma conta no chão, uma conta que ainda não foi varrida. Quem vai pagar por isso? 

O colarinho do chope era perfeito. Dois dedos de colarinho. E tinha um bigode de espuma no meu rosto embasbacado. 

Quantas vezes eu me levantei para ir ao banheiro?

Uma porção de fritas também é poesia. 

Eu paro para ouvir o vazio dos salões. O riso do amigo contando uma vantagem mentirosa, a discussão que o álcool regou por muitas rodadas. A flor áspera das nossas ilusões plantada em uma mesa de perna bamba. 

Agora, quando fecho os olhos, o som que ouço me lembra o de um respirador, são como apitos, alertas de uma UTI, iguais aos do quarto em que meu pai estava internado. 

Um restaurante fechado não é só um restaurante fechado.

Eu ainda te vejo sentada na mesma mesa, demorando para fazer o pedido, invejando meu prato e se arrependendo da escolha que havia acabado de fazer. O vinho era sempre do mais barato. A conta era dividida sem cerimônia.

A gente achava o garçom a melhor pessoa do mundo. E ele era, sem nenhuma dúvida, a melhor pessoa do mundo. Um dia você disse que “garçons eram anjos fazendo estágio na Terra”. A gente riu e deixou uma caixinha generosa.

Não tinha delivery. Mas a gente levava uma quentinha para depois. Era o nosso “restô dontê”. Como era boa a nossa vida quando ainda existia um “restô dontê”. 

Um barbeiro fechado não é só um barbeiro fechado. 

Eu queria mudar um pouco. Passar a máquina. Ficar careca. E acordar no ano que vem.

As placas de “Aluga-se” balançam com o vento. Uma tempestade está se formando. Na banca de jornal, leio que o presidente avisou que não irá comprar a vacina chinesa.

Passo o ponto. Passo o ponto também.



A lenda do bode velho - Luis Fernando Verissimo

 Uma jovem pobre de grande beleza atraiu a atenção de um jovem nobre que passeava entre as tendas do bazar sobre o seu flamante cavalo, atropelando pessoas e cachorros, pois não conseguia tirar os olhos da jovem.

- Preciso ter essa mulher – pensou o jovem nobre. – E esta noite.

O jovem nobre deu ordens a sua equipe. Era para descobrirem o nome da moça, seu endereço, a situação financeira da sua família, seus hábitos, seus gostos, se era virgem e se tinha namorado. 

De posse destes dados, o jovem nobre bateu na porta da modesta casa onde a moça morava com a família e foi recebido pelo seu pai, que o convidou para entrar, sentar-se e conversar, enquanto a mãe ficava perto para não perder nada da conversa e eventualmente servir um licor. O jovem se apresentou:

– Sou o primogênito dos vinte e quatro filhos do sultão e o favorito dele, e dizem que sou o mais bonito. Vi sua filha no bazar e fiquei encantado.

– A Jenifer?

– Tem outra?

– Jeni, a mais velha.

– É a Jenifer. Quero dormir com ela,

– O...qu-que?

– Se possível, esta noite. Para começar.

– Você quer casar com a Jenifer, é isso?

– Casar, talvez depois, dependendo de como correrem as coisas esta noite. Estou disposto a pagar o que o senhor pedir. Sem esquecer que a Jenifer estará dormindo com um nobre. Com um deus. Vá lá, um semideus. Sou o primeiro na lista de sucessão do meu pai. Eu sou o poder. O senhor precisa me ver em cima de um cavalo, e sem máscara.

Acertadas as contas, passaram a acertar os detalhes. Jenifer dormiria com o nobre sempre no escuro. Assim, se preservaria um mínimo da honra da família. Mas não contavam com a Jeni e sua inveja. Foi Jeni quem lembrou a lenda, que talvez não fosse lenda, sobre o primogênito do sultão se transformar num bode velho sempre que fazia sexo. Só havia uma maneira de descobrir se a lenda era verdadeira: na primeira oportunidade que teve, Jenifer levou um lampião para a cama e esperou o jovem nobre dormir antes de iluminar seu rosto. Quando viu que estava na cama com um bode velho, deu um grito e saiu correndo, pensando “é preciso mudar as leis da sucessão!” 

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Já pode beijar na boca? - Gilberto Amendola

 O meu primeiro beijo foi no período Paleolítico. Mesmo que eu tenha treinado nas costas da minha própria mão ou em laranjas sensuais, o beijo inaugural foi atrapalhado, estranho e claudicante (me ocorreu agora que, ironicamente, o nome dela era Cláudia).

Teve aquele choquinho entre os dentes, línguas fora de sintonia e a dúvida entre fechar os olhos ou mantê-los abertos. Aliás, no meu primeiro beijo, eu ainda usava aparelho. Lembro do receio de machucar a boca da minha namoradinha e terminar passando vexame em um hospital.

Eis que agora, uns 30 anos depois, o frisson do primeiro beijo volta a fazer parte da vida de milhares de solteiros pelo mundo. Os meses pandêmicos e de isolamento, criaram um vácuo, um vão, entre o último beijo antes da covid e o próximo.

E o próximo, mon dieu, como será? Será que na Fase Verde do Plano São Paulo já pode beijar na boca? Flexibilizamos os desejos ou ainda não? A retomada dessa intimidade entre duas (três, quatro...) pessoas vai ser uma das grandes questões do pós-corona (que é um momento que ainda não vivemos). Vamos levar o tema ao divã e aos infectologistas. Vamos pautá-lo. Vamos escrever sobre isso. 

Como é que beija agora? Tesão não é vacina, infelizmente.

A retomada gradual e segura do beijo muito me interessa. Beijinhos jogados ao léu não sobrevivem no ar, são bloqueados pelas máscaras, minguam no meio-fio, esmolando a atenção de quem passa.

Beijos com distanciamento, sem aglomeração linguística, seguindo os protocolos e recomendações da Organização Mundial da Saúde; beijos mergulhados em saliva de álcool em gel; beijos pelo Zoom; beijos que apontam para um QR-Code imaginário; beijos com limites de horário; beijos fiscalizados pela pela Guarda Civil...

Bocas fechadas. Bocas com placas de aluga-se. Bocas que quebraram. Bocas que faliram. Bocas que não conseguiram financiamento para permanecerem abertas. Bocas sem auxílio emergencial? Bocas que o vírus calou.

Pergunto de novo: já pode beijar na boca? 

Artistas - Marcelo Rubens Paiva

 Por que conservadores odeiam artistas? Por que a cultura entrou em rota de colisão com os ideais do Poder? Por que as leis de incentivo eram o alvo preferido da campanha eleitoral, para demonizar a classe artística? 

Porque, sim, somos vagabundos, e incomodamos. Atrapalhamos. Somos do contra. Preguiçosos, queremos patrocínio, como Mozart, Beethoven, Bach, Chopin, para não trabalharmos, não nos alistarmos, covardes que somos, fujões e beberrões.

Farrearmos, nos entupimos de entorpecentes e paixões estúpidas e malditas, e compomos depois de um pacto com o capeta umas bobagens que logo serão esquecidas, diferentemente dos grandes generais, coronéis, capitães, os verdadeiros heróis da pátria.

Somos inúteis escritores, poetas, viciados, degenerados. Merecemos a masmorra, a tortura, a censura, a Inquisição.

E, por sermos vagabundos, temos tempo de sobra para pintar o teto da Capela Sistina, a Santa Ceia numa parede, esculpir Davi, buscar o sorriso enigmático de Monalisa, representar o horror da guerra em Guernica, pintar o vento, com o Van Gogh, esvaziarmos os cofres públicos para atentarmos contra os bons costumes.

Somos uns inúteis, passamos um tempo precioso e com a grana de outrem fazendo da vida, poesia, questionando a existência, provocando, subvertendo, tornar desconfortável o que era para ser enaltecido.

Questionamos Deus, sexo, tabus, miséria, escravidão, inventamos cores, invertemos formas. Narramos histórias em que baleias gigantes se vingam da caça implacável por seu óleo valioso, que iluminava cidades, ganância que quase as exterminaram. 

Narramos vinganças de Godzillas modificados por desastres nucleares criados pelo progresso, de gorilas gigantes que queriam ficar em paz na floresta, de dinossauros que não tinham nada que ser ressuscitados geneticamente. 

Mostramos cavaleiros lutando contra delírios, mulheres entediadas no casamento, adúlteras, herdeiros que não encontram um sentido na vida, cangaceiro que se apaixona por outro, homens que se transformam em mulheres, que se perguntam “se Deus não existe, tudo é permitido”, e que anunciam que nada faz sentido se a essência vier antes da existência.

É vagabundo, sim, quem escreve, aos 16 anos, “lá ia eu, de mãos nos bolsos rasgados, meu paletó também se tornava um trapo, sob o céu, Musa, eu fui teu súdito leal, caramba!, a sonhar amores destemidos! O meu único par de calças tinha furos. Pequeno Polegar do sonho ao meu redor. Rimas espalho. Me hospedo sob a Ursa Maior. Os meus astros no céu me dão trovões...” 

Vai trabalhar, francesinho vagabundo, andante, que não queria se casar, fugiu da escola, andava seduzindo, provocando sem rumo, e ainda namorou um homem bem mais velho. Revolucionou a poesia. Inventou o modernismo. E daí? Mais útil aquele que inventou o canhão, a dinamite, a cadeira elétrica. Com as quais, se enriqueceram.

Vagabundo e pretensioso o cara que fez do bidê, arte, da banana e Sopa Campbell, artes, da arte abstrata, arte, de um quadro cheio de riscos, arte, da pichação, arte, do grafite, arte, da HQ, arte. 

São uns bêbados, drogados, comunistas, libertinos, fazem recitais com orgias, é o fim da Civilização Ocidental, é a barbárie! 

Pilantra o autor que pintou o tédio no balcão de bar, que cantou pedindo a liberação da maconha, que disse que era mais popular que Jesus Cristo, que pelado na cama pediu paz. Pilantra, pretensioso, vagabundo, inútil, devasso, hedonista, má influência, desprezível, pária, fumou coisa proibida, cheirou todas, perturba a ordem, deve ser banido, censurado, exilado, queimado, como uma bruxa. 

Ressuscitem o inquisidor. Desenterrem a guilhotina. Acendam as fogueiras. Queimem tudo. Não suportamos o questionamento, a dúvida, o avesso. Nossa verdade sólida está em livros sagrados, nas escrituras. Queimem tudo o resto!

A pátria e a família em primeiro lugar. Cancelem figuras proeminentes do pensamento corruptor. Nada de dança que provoque a libido, que nos faça sentir. Não queremos sentir, queremos trabalhar, plantar, minerar, extrair riquezas do solo, construir, aumentar a renda, fazer negócios.

Onde já se viu fotografar homens pelados, casais se beijando, garimpeiros exaustos, a floresta se queimando, consumida pelo progresso?

Queimem os entediados artistas que duvidam de nossas verdades, acabem com eles! Pelotão de fuzilamento. Cortem a língua dos poetas, furem os olhos dos pintores, esmaguem o crânio de escritores, fechem teatros e cinemas, quebrem as editoras. 

O Estado não tem nada com isso. O Estado não quer arte, artista. O Estado quer crescer, ampliar! Quer pão. Deixe o Estado trabalhar.

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

A geração corona - Gilberto Amendola

 Filhos gerados durante o isolamento, no lockdown quentinho dos quartos, o futuro é de vocês.

Filhos do medo do beijo, do toque, do álcool em gel ao lado da cama e das máscaras enroladas e perdidas no lençol branco, o futuro é de vocês. 

Crianças que quase nunca viram um sorriso sem focinheira. Crianças que sabem ler os olhos de quem fala (e serão ótimos jogadores de pôquer), o futuro é de vocês.

Crianças que não sabem de quantos dentes é feito um sorriso. Crianças que não mostram a língua. Crianças que sabem lidar com o tédio e brincam sozinhas. Crianças auto suficientes, o futuro é de vocês. 

Crianças desmaterializadas, presentes no ar, no Zoom. Crianças não presenciais. Crianças que não se aglomeram na fila do escorrega. Crianças que aprendem, desde muito cedo, o valor de manter “uma certa distância”. O futuro é de vocês.

Filhos do home office, um dia vocês vão sair de casa e romper a casca. O futuro é de vocês. 

O que será da geração corona? Quantos artistas estão se formando nesse ambiente? Quantos poetas vão escrever odes à vacina? E quantos crescerão negacionistas? Quantas delas serão epidemiologistas? Contadores? Zeladores? Urbanistas?

O que será da geração corona? Quantos políticos estão sendo forjados? Irão acreditar em quê? Em nome de quem? 

A geração corona vai preferir sua parte em dinheiro ou amor? Abraçar árvore ou depositar em dinheiro vivo? 

E o sexo, como vai ser? 

Qual o legado da geração corona? A marca futura? O que estarão prontos para inventar? O que essa geração vai destruir?

Quantos erros irão perpetuar e repetir.

O futuro é de vocês, crianças. Façam bom proveito. Lambuzem-se. Vou ser um velho pré-covid, pré-histórico, daqueles que nunca perdem a oportunidade de lembrar como “no meu tempo era melhor”.

Calem minha boca, por favor. 

O futuro é de vocês. 

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Miles e Juliette - Luis Fernando Verissimo




 Não sei se existe uma tradução em português da autobiografia do Miles Davis. Imagino que a questão de como traduzir o adjetivo “motherfucker”, que Miles usa para qualificar amigo ou inimigo e homem ou mulher, tenha dissuadido tradutores em potencial. Miles distribui “motherfuckers” do começo ao fim do seu livro. Só poupa uma pessoa, a cantora Juliette Gréco, que morreu há dias, com 93 anos de idade, e só não foi sua namoradinha parisiense porque ninguém ousaria chamar a musa do existencialismo de “namoradinha” de quem quer que fosse. 

Miles e Juliette tiveram não um namoro, mas um tórrido romance. Miles conta que caminhavam abraçados pela beira do Sena e, como nem ele falava francês nem ela falava inglês, passavam o tempo se beijando. Recomeçavam o romance sempre que Miles ia a Paris, como na vez em que foi convidado pelo diretor Louis Malle para improvisar a trilha sonora do seu filme Ascensor Para o Cadafalso. Uma vez, se reencontraram em Nova York. Juliette fora contratada para atuar num filme americano baseado num livro do Hemingway e os produtores a colocaram no hotel Waldorf-Astoria, onde seria assinado o contrato. Miles levou o baterista Art Taylor na sua visita a Juliette no hotel grã-fino, e os dois causaram grande sensação – que Miles descreve com evidente prazer – na sua passagem pelo saguão, vestidos, segundo o próprio Miles, como gigolôs do Harlem, entre caras brancas espantadas.

Um companheiro constante do casal nos cafés e porões do Quartier Latin era Jean-Paul Sartre. Foi Sartre quem sugeriu que Miles e Juliette se casassem. Subentendido na sugestão de Sartre estava o convite para Miles ficar morando em Paris, ou pelo menos na Europa, como já faziam tantos músicos afro-americanos, para fugir do racismo dos Estados Unidos, entre outras coisas. Americanos autoexilados em Paris constituem, há anos, uma categoria artístico-literária que se solidificou num clichê, que persiste. Miles não aceitou a proposta do “motherfucker” Sartre de se mudar para Paris e viver com Juliette como num clichê. Passeios e beijos pela beira do Sena em visitas esporádicas lhe pareceram uma ideia muito melhor.




Um brinde às inimigas - Manuela Cantuária

  Duas amigas em uma mesa de bar. Uma delas ergue seu copo. "Um brinde às inimigas, que elas tenham saúde em dobro para aplaudir nosso ...