quinta-feira, 30 de agosto de 2018

O Náufrago - Luis Fernando Verissimo

Um náufrago é resgatado de uma ilha deserta. Não consegue dizer quanto tempo passou na ilha. Perdeu a noção do tempo. Pelo seu aspecto ao ser encontrado a barba quase no umbigo, as roupas reduzidas a fiapos, a pele curtida pelo sol e o sal foram muitos anos. Mas quantos? Ele não se lembra do naufrágio. Não se lembra do nome do navio, do tipo do navio, do que fazia a bordo... Não se lembra nem de onde é.
– Que língua eu estou falando? – Inglês. Mas com sotaque. – Sotaque de onde?
– É difícil dizer... – Estranho. Não me ocorre nenhuma outra língua além do inglês, embora eu sinta que não é a minha língua materna. Talvez seja por causa de Pamela...– Pamela? – A mulher que eu fiz, de areia. – Você fez uma mulher de areia?
– Você não sabe o que é a solidão numa ilha deserta.
Ele precisava de companhia humana. No princípio, só precisava de sexo. Fizera um buraco na areia. Mas, com o tempo, sentira que precisava de mais do que apenas um buraco. Construiu um corpo de mulher em torno do buraco. Seios, grandes seios. Quadris, uma cintura delgada, coxas longas. Sempre gostara de coxas longas. Mas logo sentira que ainda faltava algo. E fizera uma cabeça para sua mulher de areia. Um rosto, com feições, nariz, boca.
Um rosto bonito, cuidadosamente esculpido, e que ele retocava constantemente, consertando os estragos feitos pelos caranguejos e o vento. O rosto de uma mulher satisfeita. O rosto de uma mulher que o amava, que mal podia esperar pelas noites de paixão sob as estrelas, com ele. Mas...
– Mas o quê? – O corpo desmentia o rosto. O corpo era estático e sem vida. Não se mexia, não acompanhava o meu ardor, permanecia ausente e frio. O corpo negava o brilho faiscante das conchas azuis que eram os olhos de Pamela. – Por que “Pamela”?
– Porque decidi que, fria daquela jeito, só podia ser inglesa. Eu tinha feito uma inglesa! Deve ser por isso que conservei o meu inglês. Era a língua com a qual eu fazia declarações de amor a Pamela e tentava despertar no seu corpo a calidez que o rosto prometia. Ela não reagia. Ela não me respondia. Ficava muda e distante. Também não respondeu quando eu comecei a gritar com ela, e a xingá-la, e acusá-la.
– Acusá-la de quê? – De me trair. Pamela estava me enganando.
– A mulher de areia estava enganando você? – Estava! – Com quem?
– Não tenho a menor ideia. Eu só não tinha dúvida de que, com o outro, ou com os outros, ela se mexia. Uma loucura, eu sei. Mas eu tinha pedido aquilo. Eu tinha criado o meu próprio tormento. Não se tem companhia humana impunemente. Onde há um outro, há confusão, há conflito, há desgosto. E há traição.
– O que você fez?
– Um dia, destruí a Pamela a pontapés. Só deixei o buraco no chão. Mas no dia seguinte a reconstruí, os grandes seios, as longas coxas, pedindo perdão, jurando que aquilo nunca mais aconteceria. E no dia seguinte a destruí a pontapés outra vez.
– Grego. – Hein? – O seu sotaque. Pode ser grego. – Hmmm. Grego. É possível. Me sinto muito antigo. – Qual é a última lembrança que você tem do mundo, antes de naufragar?
– Deixa ver... Rita Pavone. Não tinha uma Rita Pavone?
Decidiram não contar nada ao náufrago sobre o 11/9 e a Rita Pavone até ele estar completamente recuperado. E o resgataram, apesar da sua insistência em levar o buraco junto.

Assassinos culturais - João Pereira Coutinho

Angelo Abu/Folhapress



Sou um assassino cultural. Não faça essa cara. Você também é. Eu sei que é romântico chorar quando uma livraria fecha as portas. Não sou alheio a essas lágrimas.
Mas convém não abusar do romantismo —e da hipocrisia. Fomos nós que matamos aquela livraria e o crime não nos pesa muito na consciência.
Falo por mim. Os livros físicos que entram lá em casa são cada vez mais ofertas —de amigos ou editoras.
De vez em quando, mais por razões estéticas que intelectuais, ainda cedo ao vício, sobretudo na ficção. Mas é um vício caro, cansativo, redundante. Já não tenho 20 anos.
Aos 20, quando viajava por territórios estranhos, entrava nas livrarias locais como um faminto na capoeira. Comprava tanto e carregava tanto que desconfio que o meu problema de ciática é, na sua essência, um problema livresco. Hoje?
Gosto da flânerie. Mas depois, em gesto que horroriza qualquer erudito, fotografo capas com o meu celular antes de regressar para o divã. É no conforto doméstico que expresso os meus desejos ao psicanalista —o famoso dr. Kindle—, esperando uma cura imediata. Que sempre vem.
Culpado? Um pouco. E em minha defesa só posso afirmar que pago pelos meus vícios. Não sou como alguns leitores que, em sessões de autógrafos, já me apresentaram fotocópias dos meus livros para eu assinar.
Entenda: não é o abuso e o roubo que me perturbam. É a inteligência deles. Se são meus leitores e procedem dessa forma, o que é que isso diz sobre mim como autor?
E quem fala em livrarias, fala em todo o resto. Eu não matei apenas a Borders, por exemplo. Eu ajudei a matar a Tower Records e a VirginMegastore. Havia lá dentro uma bizarria chamada CD —você se lembra?
Hoje, com o Spotify, tenho uma espécie de discoteca de Alexandria onde escuto os meus clássicos e descubro novos clássicos —todos os dias, a todas as horas.
Se juntarmos ao pacote os filmes do iTunes e as séries da Netflix, você percebe por que motivo eu também tenho o sangue dos cinemas e dos blocksbusters nas mãos.
Eis a realidade: vivemos a desmaterialização da cultura como nossos antepassados viveram a revolução da impressão com Gutenberg.
Mas não é apenas a cultura que se desmaterializa, deixando mais vazias as nossas salas e estantes. É a nossa relação com ela. Não somos mais proprietários de "coisas"; somos apenas consumidores e, palavra importante, assinantes.
Um livro recente, que obviamente comprei via Kindle, analisa o fenômeno sem abusar do jargão técnico: "Subscribed", de Tien Tzuo. É uma reflexão sobre a "economia de assinaturas" que conquista a economia global.
Conta o autor que mais de metade das empresas que apareciam na famosa lista das 500 da Fortune já não existiam em 2017. O que tinham em comum?
O objetivo meritório de vender "coisas" —muitas coisas, para muita gente, como sempre aconteceu desde os primórdios do capitalismo.
Pelo contrário: as empresas que sobreviveram e as novas que entraram na lista souberam se adaptar à economia digital, vendendo serviços (ou, de forma mais precisa, acessos).
A Netflix, que até 2007 vendia DVDs, optou sensatamente pelo streaming e conseguiu 120 milhões de assinantes em 11 anos. Ao mesmo tempo, revitalizou a indústria, manteve os profissionais em atividade —e ofereceu-nos "House of Cards", "Peaky Blinders" ou "Alias Grace".
O Spotify, que surgiu quando a indústria discográfica afundava sem hipótese de salvação, representa agora mais de 20% das receitas.
Claro que na mudança algo se perde —e eu, de temperamento conservador, sei disso. O desaparecimento das livrarias, que não acredito que seja total no futuro (e ainda bem), diminui as hipóteses de acasos felizes. Tive vários —e se hoje leio autores como Agnes Repplier, Renata Adler ou Ivan Illich (não, não é esse em que você está pensando) é também porque os descobri.
Além disso, ler no papel não é o mesmo que ler no écran, razão pela qual não tenciono me desfazer já da biblioteca.
Mas o interesse do livro de Tien Tzuo não está apenas nos números; está no retrato de uma nova geração para quem a experiência cultural é mais importante do que a mera posse de objetos.
Há quem veja aqui um retrocesso. Mas também é possível ver um avanço —ou, para sermos bem filosóficos, o triunfo do espírito sobre a matéria.
E não será essa, no fim das contas, a vocação mais autêntica da cultura?

Semiótica do chapéu - Ricardo Araújo Pereira

Luiza Pannunzio/Folhapress


Não sei quem foi que, um dia, pelo final dos anos 1950, saiu de casa sem chapéu e disse: "Chega. Eu nunca mais vou usar isso na cabeça". Mas, pelos vistos, a rebeldia daquele gesto era tão urgente que todo o mundo concordou bem rápido.
Até ali, as pessoas andavam na rua de chapéu, iam ao teatro de chapéu, iam comprar chapéu de chapéu. De repente, passaram a andar de cabeça descoberta. O calvário do chapéu não é um fenômeno de moda. A moda faz com que as camisas de hoje sejam diferentes —para pior, normalmente— do que eram há dez anos.

Mas os estilistas não ousam propor a extinção das camisas. Ora, foi isso que aconteceu ao chapéu. De um dia para o outro, acabou rejeitado, mas não por falta de qualidade, de beleza, ou até de utilidade. Os fabricantes de chapéus devem ter precisado de apoio psicológico. Por que é que as pessoas tinham deixado de querer usar chapéus? Por que é que não tinham ganho aversão às calças? Ninguém sabia.
Na verdade, foi uma injustiça. Há gestos dramáticos que só se podem fazer com o chapéu. O que é que a gente atira ao ar na formatura, ou quando alguém faz um gol depois de driblar a zaga toda? Até nós, que nunca usamos chapéu, sentimos uma vontade incontrolável de atirar alguma coisa ao ar nessas ocasiões, mas não sabemos o quê.
O chapéu era todo um sistema de comunicação. Usado de forma normal, revelava dignidade. Inclinado para trás, indicava descontração e simplicidade. E, inclinado para a frente, exprimia mistério e sedução. Sem chapéu temos, além disso, de encontrar uma solução urgente para, por exemplo, quando estamos a cavalo e queremos despedir-nos de alguém ao longe. Antigamente, era só agitar o chapéu enquanto nos afastávamos, a caminho do pôr-do-sol.
Agora, é um momento constrangedor, só superado por aquele em que alguém morre à nossa frente. Costumava ser fácil: a gente tirava o chapéu e punha os olhos no chão. Era ótimo: o chapéu oferecia humildade, respeito e uma ocupação para as mãos. Era a peça de roupa que melhor rendia homenagens. Tirar o chapéu quando alguém morre sempre foi muito melhor do que, por exemplo, descalçar um sapato. Eu experimentei. Ficamos órfãos do serviço do chapéu. Gostaria, por isso, de tirar o chapéu ao chapéu. Infelizmente não posso, porque não uso.

O rapa - Contardo Calligaris

Mariza Dias Costa/Folhapress



Passei a noite de quarta-feira da semana retrasada no cruzamento da rua Major Diogo com o viaduto Júlio de Mesquita Filho, em São Paulo.
O viaduto, nessa altura, oferece centenas de metros quadrados de teto, embaixo dos quais vive uma comunidade de moradores de rua, ao abrigo das chuvas e do pior frio.
Digo que é uma comunidade porque, de fato, os moradores compartilham um fogão comunitário, e há um campinho de futebol administrado, com horários de jogo para jovens, veteranos etc. Só não verifiquei se há ou não jogos de futebol feminino.
Fora as áreas comuns (como o campo de futebol e a cozinha), o espaço embaixo do viaduto é dividido em lotes que configuram pequenas casas: cada morador ou núcleo (familiar ou de amigos) decora sua parcela com restos do desperdício urbano (camas, sofás, tapetes, armários que contêm a roupa e outros bens garimpados na rua).
Em suma, os moradores sob o viaduto não são propriamente sem teto: não só porque o viaduto os ampara, mas porque, de fato, eles vivem em pequenos lares.
O lixo, que se acumula às margens dessa vila urbana, contrasta com a limpeza dos espaços habitados. Você encontra um sofá sobre um tapete varrido (ou seja, a sala de uma casa, em que só faltam as paredes e a TV) e, a poucos metros de distância, ao longo da mureta que separa a rua dessa área habitada, você esbarra em uma acumulação de papéis, plásticos, dejetos e restos de comida apodrecendo, com o inevitável rato morto.
Chegando ao cruzamento, perguntei-me, aliás, por que o lixo não estava sendo coletado naquelas áreas...
Eu logo encontraria uma resposta. Mas, antes disso, é preciso explicar: naquela noite, toda a equipe da quarta temporada de "PSI" (HBO) estava gravando uma cena em que uma ex-moradora de rua reencontra amigos do passado.
A gente, como é normal, tinha conseguido a autorização da Subprefeitura da Sé, e nossa equipe de arte tinha preparado o cenário (nada extravagante, só uma daquelas áreas de vida mobiliadas por restos urbanos que descrevi antes —mais uma, parecida com as outras).
As gravações terminaram lá pelas 6h. Desmontamos o set e deixamos nossa "mobília" com um segurança (um morador do viaduto), pois voltaríamos no dia seguinte para completar as gravações da cena.
Depois de nossa saída, pelas 8h, aconteceu algo banal e, ao mesmo tempo, extraordinário por sua violência: um rapa. Ou seja, chegou um caminhão de lixo da prefeitura acompanhado por um carro da PM; os moradores do viaduto foram alinhados contra um muro e só lhes foi permitido levar consigo uma mochila e um pertence.
O resto (os móveis, os ornamentos, os utensílios de cozinha, a roupa, os objetos, o fogão comunitário, os botijões de gás etc.) foi triturado pelo caminhão do lixo na frente dos próprios moradores de rua.
Nosso mobiliário cenográfico não foi poupado: de nada adiantou o segurança mostrar o atestado de que estávamos filmando. Mas isso, diante da destruição dos móveis reais dos moradores de rua, é o que menos importa.
Para eles, era como se a sociedade destruísse com afinco (periódica e sistematicamente) os pequenos passos que conseguem dar na direção de uma morada, de um lar.
Entendi então por que a coleta do lixo não acontece regularmente nos lugares onde vivem os sem-teto. É como se, ao redor deles, a cidade deixasse o lixo se acumular propositalmente, para afogá-los, eles e seus poucos bens, na sarjeta, ou melhor, para poder confundi-los com o lixo e, quem sabe um dia, coletá-los do mesmo jeito.
Rapar significa tirar tudo, limpar as excrescências com uma lâmina rente ao chão; o rapa termina com um caminhão-pipa que passa um jato poderoso de água, para desinfestar. Na área de moradias quase urbanas, tratadas como lixo, não sobra nada.
Enfim, sobram os sem-teto, desarraigados e condenados ao nomadismo.
Cuidado, não acho que os viadutos sejam a solução à falta de moradias praticáveis. E não penso apenas nos moradores de rua: também sou solidário com os vizinhos que contemplam com um misto de medo e nojo a concentração de uma vila de sem-teto perto de sua casa.
Mas há uma malvadez perversa no ato de destruir aqueles semblantes de casas.
Na manhã de quinta, eu só conseguia pensar nos cretinos que, quando eu era criança, passeavam pela praia e, de propósito, demoliam os castelos de areia que a gente construía.

30.ago.2018
Contardo Calligaris
Psicanalista, autor de “Hello, Brasil!” e criador da série PSI (HBO)

Conversa de domingo - Cristovão Tezza

Vânia Medeiros/Folhapress



Enquanto não decido em quem votar, neste largo leque brasileiro que vai de um ectoplasma militar da década de 1930 até a voz de Antônio Conselheiro na cadeia (preciso reler "Os Sertões", de Euclydes da Cunha, porque depois do desastre da era Dilma, parece que o século 20 começa a chegar ao país), leio livros e vejo filmes, em busca da civilização.
O amigo vizinho me recomendou "Vocês, os Vivos" (2009), do sueco Roy Andersson. "Rende uma coluna", garantiu ele. Metódico, fui conferir todos os filmes do cineasta (não são muitos), começando pelo começo: "Uma História de Amor Sueca" (1970).
Sinto uma atração especial por 1970; por obsessão pessoal, acho que tudo que acontece hoje, no Brasil e no mundo, veio daquela passagem turbulenta. O filme é a história da iniciação amorosa de um menino e uma menina, contada com delicadeza, numa sucessão de cenas isoladas.
Os pais são "quadrados" mas são, enfim, gente boa. A história é embebida de um otimismo suave. Um mundo caipira descobre a motocicleta (sem usar capacete). Sim, os suecos são liberais. Ninguém leva cascudo em casa, mas há uma cena de bullying entre colegas.
A onisciência se esvai; o olhar é apenas um conjunto de impressões, e a cadeia narrativa, com causas e consequências, começa a se esgarçar.
Em 1975, Andersson lançou "Giliap". Aqui o prazer da cena isolada começa a desmontar a solidez narrativa; ninguém tem mais a leveza das crianças, mas se imagina que sim; e se sente a influência deletéria da nouvelle vague francesa.
O problema é que uma figura em silêncio durante dois minutos sob a câmera parada não funciona sem Paris ao fundo.
O tédio de um francês é uma pose estudada, um pôster charmoso; o de um nórdico é uma terrível angústia metafísica. Nada tem pé nem cabeça; trata-se de um ornitorrinco estético que, aos trancos, se quer levar a sério.
Em seguida, o cineasta ficou 25 anos sem filmar longas, enriquecendo com a publicidade, uma decisão sábia; as últimas duas décadas do século 20 foram artisticamente miseráveis no mundo inteiro.
Nesse período, o simpático porra-louca dos anos 1970 oficializou-se e entronizou-se na pretensão, uma vez que tudo, de fato, passou a ser permitido, numa escala industrial.
A poetização escapista do mundo e os direitos subjetivos, mimados até o último traço do kitsch, passaram a ser a régua universal de referência.
Ou falava-se de si mesmo como se o mundo não existisse, ou do mundo como objeto do qual não fazemos parte. (Na literatura brasileira, foi o duradouro vácuo entre o fim dos clássicos do século 20, que se esgotaram na década de 1970, e a renovação contemporânea.)
Em "Canções do Segundo Andar", do ano 2000, aparece um novo Andersson, agora perfeitamente maduro.
A câmera parada já não serve como manifestação de performance subjetiva mais ou menos aleatória, mas como instrumento rigoroso de composição pictórica; o filme todo se faz por uma sequência de quadros praticamente autônomos, esquetes visuais de impacto.
O humor e o grotesco como que perdem suas fronteiras próprias: um velho nazista à morte, demente, numa cama de bebê, um jovem com a corda de enforcado no pescoço, espancamentos públicos sob o olhar de indiferença de pessoas numa fila. Tudo é expressão de pesadelos nítidos e exatos que se contemplam.
Se fosse escritor, Andersson seria um contista, um Dalton Trevisan do gelo. Como acontece às vezes com o cinema fortemente autoral, quando maduro (o caso clássico é Fellini), já não distinguimos um filme do outro; a obra se transforma em linguagem.
Chego enfim a "Vocês, os Vivos", de 2007, e o vizinho tem razão: é o melhor filme dele, com a unidade narrativa mais sólida. A música —uma banda de coreto, em que a tuba é o personagem principal— é um fio que vai ligando as cenas.
Sente-se o eco de influências simultâneas, nas composições rigorosas: figuras obesas de Botero sob angústia beckettiana, solidões de Edward Hopper submetidas ao humor de Jacques Tati e ressonâncias de crítica social que se congelam, inúteis, no prazer da perfeição estética. Transparece um certo niilismo publicitário, que continua presente, desde o título, em "Um Pombo Pousou num Galho Refletindo sobre a Existência", de 2014, que tem a sombra da morte como figura central. Quase meio século depois de 1970, pressente-se a nostalgia do perdido narrador.
(Não sei se rendeu uma boa coluna, mas foi um prazer descobrir Roy Andersson. Obrigado, vizinho!)

UMA HISTÓRIA DE AMOR SUECA (1970)   

CANÇÕES DO SEGUNDO ANDAR (2000)

VOCÊS, OS VIVOS (2007)
http://filmescult.com.br/voces-os-vivos-2007/

UM POMBO POUSOU NUM GALHO REFLETINDO SOBRE A EXISTÊNCIA (2014)
http://filmescult.com.br/um-pombo-pousou-num-galho-refletindo-sobre-a-existencia-2014/

terça-feira, 28 de agosto de 2018

Falta de estoque - Martha Medeiros

Preciso de aconchego e prazer, e o prazer vem do que é visual, tátil, perfumado, saboroso, sonoro. Sem o uso lascivo dos sentidos, que graça tem?
Outro dia quis dar de presente para um amigo um álbum com algumas fotos que sei que ele iria gostar. Não um álbum digitalizado, mas daqueles em que colocamos as fotos nos compartimentos plastificados. Que via-crúcis. A maioria dos álbuns que encontrei nas lojas era de bebês e de noivas. Por fim, encontrei um como eu queria, de capa lisa e com a dimensão desejada. Quando ele recebeu, abriu um sorriso daqueles: disse que fazia tempo que não era surpreendido, e acreditei. Quem ainda se dá o trabalho de revelar fotos?
Ao mesmo tempo, soube de uma livraria em Paris que funciona numa sala onde há apenas uma Espresso Book Machine – uma máquina que imprime livros na hora. Você entra, escolhe o que deseja num cardápio com cerca de 5 mil títulos e em poucos minutos leva para casa seu produto. Como tirar uma Xerox numa casa lotérica.
Os álbuns de fotos estão rareando no mercado. Os livros impressos ainda existem, mas começam a ser automatizados. Discos também ainda existem, mesmo a gente baixando música direto de aplicativos. Cadernos, agendas, revistas, canetas, lápis: tudo em vias de virar quinquilharia inútil, objetos de culto, no máximo.
O mundo físico está se diluindo. E estoque é palavra que cairá em desuso rapidinho.
Observo minha casa e não imagino as paredes sem estarem tomadas por livros até o teto, as estantes entupidas de CDs, as dezenas de canetas enfiadas em potes, minha coleção de cartões-postais, os móveis amparando objetos trazidos de viagens, vários quadros pendurados, o chão forrado de tapetes diversos, os sofás cobertos de almofadas, lenhas e nós de pinho aguardando a hora de arder dentro da lareira. Um armazém doméstico.
Não guardo papelada inútil e rancores antigos, aprendi a deletar rapidinho tudo que é peso morto – para alguma coisa tinha que servir essa tal de maturidade. Mas preciso de aconchego e prazer, e o prazer vem do que é visual, tátil, perfumado, saboroso, sonoro. Sem o uso lascivo dos sentidos, que graça tem?
Entrar numa livraria onde só existe uma impressora me parece a descrição de um pesadelo. Digo o mesmo de uma casa onde tudo é monocromático, futurista, com muitos espaços vazios sem um cisco à vista, os móveis apenas dois ou três. Afinal, é um hospital ou um lar?
As pessoas andam meio piradas, e acho que essa assepsia só piora o quadro. Não limpem tanto a área, deixem as coisas se amontoarem: pela manutenção das prateleiras, ao menos. Quero poder procurar, furungar e encontrar o que quero, não apenas dar um toque numa tela. É o meu singelo manifesto contra a higienização dos nossos hábitos.

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Incompatibilidade de gênios - Eduardo Bueno

Já fui filiado ao PT. A forma como tudo se deu foi um tanto tortuosa - mas também foi engraçada. Além de elucidativa, é claro.

Em fins da década de 1970, fui contratado pela TV Globo a peso de ouro (no caso, o peso do meu irmão, mais fornido). Pode ter sido erro de casting: buscavam um garoto-prodígio, mas, ao invés de Robin, levaram Peninha. A questão é que, embora eu tenha sido mui bem tratado e jamais voltasse a perceber salário tão alto, estávamos em pleno regime militar. E, como todos sabiam, a Globo apoiara o golpe - e ainda faltavam 25 anos para que ela pedisse desculpas. Por isso, julguei que lá não era o lugar adequado para um velho rebelde de 20 anos como eu exercer seu ofício. Nove meses depois, pedi demissão. Abandonei o salário de 65 mil cruzeiros e vim ganhar 16 mil no Coojornal, em Porto Alegre.

De início, me senti Maiakovski em 1917: trabalhava numa cooperativa, em nome da revolução. Então, no verão de 1980, um colega se aproximou e, em tom sedicioso e camuflado - simultaneamente melífluo e autoritário, como era o tom da época -, disse-me ao pé do ouvido: "Vamos formar um novo partido. O Partido dos Trabalhadores". Gostei da ideia. Eu trabalhava desde os 18 anos: era um trabalhador! O caso é que eu havia lido A Desobediência Civil, de Thoreau, venerava Bob Dylan e considerava Jack Kerouac um deus. Julgava, por isso, já ter meu próprio partido. Apoiaria aquele que surgia, mas filiar-me a ele não estava nos planos.

Só que o ponto era justamente este: "Já temos gente em todos os bairros...". Seguiu-se uma pausa dramática e veio o touché: "Menos no Moinhos de Vento...". Talvez o agente recrutador estivesse se referindo a seções eleitorais, ou mentindo, mas o fato é que, com o olhar a lançar chamas e a voz férrea, ele mencionou, quase soletrando, o nome do lugar onde eu havia nascido, crescido e morava. E estendeu a ficha. E eu a assinei.

Não precisei de mais de um mês para descobrir que a rebeldia de Thoreau era tida como "infantil" e que, por serem norte-americanos, Dylan e Kerouac não eram bem-vistos nem bem-vindos. Fui instruído a substituí-los por Eduardo Galeano, Chico Buarque e Darcy Ribeiro. Ok, eu gostava desses também - e até do Gonzaguinha. Mas então, certo dia, ao lusco-fusco, caí no erro de aparecer com Gilberto Freyre sob o braço. Nem lembrava que, como a Globo, ele também apoiara "os milicos". Precipitou-se ali a crise definitiva, que redundou em divórcio litigioso, com ambas as partes alegando "incompatibilidade de gênios".

Sigo achando que meus gênios eram melhores do que os deles.

De todo modo, sou grato ao PT: dois anos depois, fui sorteado para ser mesário, mas, como fora filiado, dispensaram-me. Mas tem mais: naquela época, os militantes do PT pelo menos sabiam quem Thoreau, Dylan, Kerouac eram. Os integrantes dos outros partidos, não. E esses, ao contrário da Globo, ainda não pediram desculpas por terem apoiado tanta coisa ruim.

Um zoológico de amores - Mário Corso

Tentando consolar a filha por uma perda, o pai sai com a frase: "Todo mundo morre, minha filha, homem, bicho, cavalo...".

Nem é preciso dizer que o autor da frase é um gaúcho, desses que levam o pampa gravado na alma. Dá para imaginá-lo mateando e bombeando o horizonte, enquanto filosofa sobre o inevitável.

A dica está na sua peculiar classificação: cavalo não entraria na categoria animal. Seria algo à parte, a terceira possibilidade da existência. Desvelando algo que não é só dele, mas de todo homem do campo. Afinal, o cavalo é a obra-prima da domesticação. Alia beleza à utilidade e força à fidelidade.

Das coisas que não vivi, me ressinto da falta de intimidade com cavalos. Andar ocasionalmente a cavalo não é o mesmo que ter um cavalo, ter feito uma jornada juntos; curtir o cansaço de horas de marcha, tendo apenas um ao outro por companhia.

Ao menos tive muitos e excelentes cães. Cada um com sua personalidade ímpar. Eram companheiros de aventuras, amigos para qualquer hora. Com sua energia impetuosa, o cachorro dá uma alma extra a qualquer casa.

Ter ou adotar não é um verbo correto para felinos. Convivi com inúmeros gatos de mentes esquivas e labirínticas. Eles são um exercício mental, nunca se deixam decifrar por completo. Passeiam pela casa como fantasmas benignos, arrastando uma elegância esculpida em pelos. São companheiros do sono, do silêncio, da mansidão, da preguiça ao sol.

Acho a maior tristeza uma infância sem animais. Mais do que o apelo lúdico, valem como experiência de alteridade. Descentram as crianças do eixo do humano, treinam sua empatia com outra espécie, as fazem decodificar uma mente estrangeira em todos os sentidos. São uma porta para entender a natureza e a nossa própria natureza, que vivemos a negar.

Mas tanta conversa só para dizer que não entendo o exclusivismo na paixão por animais: quem gosta apenas de uma espécie. Ou então, quem faz aquelas classificações tolas: gostar de cães versus gostar de gatos. Como se isso dissesse algo de alguém. A convivência com um animal é abertura para a diversidade, por que restringir-se a um tipo?

Nos afastamos da natureza no espírito e na prática. A magia do mistério da vida - e sua extraordinária pluralidade - já não faz parte do cotidiano. Estamos imersos no asfalto, vemos mais postes do que árvores. Os pets são a familiaridade possível com a vida animal, o que sobrou para alguém engaiolado no 10º andar.

Os pets são uma paixão controlada, uma natureza bonsai, mera amostra de um mundo abandonado. Mas é o que temos. Perdemos a floresta e criamos uma samambaia; longe da imensa fauna, nos contentamos com um poodle. Fazemos como as crianças, brincamos com mundos em miniatura. Elas, para treinarem para o futuro. Nós, para nos conectarmos com o passado.

São todos nossos filhos - Marcos Piangers

Não tenho problema algum com comentários maldosos, acho-os divertidos, consigo ver a graça na perversidade, desde que inofensiva. Imagino como é prazeroso, para uma pessoa sem filhos, comentar sobre o filho dos outros. "Aquele é uma pestinha!", dizem alguns. "Sabe uma creche boa para aquele ali? A prisão!", já ouvi de uma amiga. Acho graça, quero crer que é brincadeira. Malvadezas colocam pra fora esses nossos demônios. Todos os temos.

Me incomoda, apenas quando, de tanto nos permitirmos falar barbaridades, acabamos nos tornando bárbaros. Cuidado com o que finge ser, pois você é aquilo que finge ser, disse o escritor. Nossas brincadeiras a respeito das crianças, de vez em quando, escorregam pra realidade. Gritamos com crianças, arrancamos-lhes coisas das mãos, damos castigos, batemos nelas. Reclamamos de crianças em viagens de avião, odiamos pequenos nos restaurantes, criamos ambientes onde é proibida a presença de menores. Odiamos, assim, nós mesmos. Fomos todos crianças um dia, talvez piores do que estas.

Em primeiro lugar, crianças são o reflexo dos pais. Crianças mal-educadas são sempre uma derivação quase impecável do comportamento adulto. São muitos os lugares onde é proibido entrar crianças, cheios de adultos se comportando mal. Hotéis e restaurantes onde você vai pra se ver longe dos filhos, cheios de adultos inconvenientes, bebendo e falando alto.

Segundo, crianças mal-educadas são a minoria. A maioria das crianças é dócil, amável, está em processo de aprendizado. Choram quando estão desconfortáveis, derramam líquidos tentando equilibrá-los. São filhos de todos nós. Estamos juntos nessa: é responsabilidade de todos criá-los. "Problema é da mãe", já ouvi. Maldade. O problema é de todos nós. Crianças serão a sociedade que queremos no futuro. Cuidarão (ou não) de nós quando formos velhos. Formá-las educadas, amáveis e justas é cuidar de todos nós.

Ajudar uma mãe no aeroporto, ao invés de julgá-la. Respeitar um pai que precisa faltar ao trabalho pra ficar com o filho, ao invés de diminuí-lo. Conversar com crianças com gentileza quando não se comportam. Ajudar a cuidar de todas as crianças que aparecem na nossa frente, sem achar que é obrigação apenas da mãe ou da escola. É um exercício diário de ir contra nosso instinto malvado. De cuidar de todos como se fôssemos um. Somos todos pais da próxima geração.

Vodu dos documentos - Fabricio Carpinejar

Em todas as vezes em que eu fui tirar a foto para um documento, o mundo desabou, o carro estragou, passei a noite em claro.

É uma sina. No passaporte, a minha cara é de traficante. Na identidade, a minha lata é de terrorista. Nunca dou sorte. Ainda mais agora que não há mais como levar fotinho 3x4 e encomendar um layout mais simpático. As fotografias são feitas nas repartições na hora e baixadas imediatamente sem compaixão e repescagem.

Perdemos o romantismo do banquinho e do fundo branco dos estúdios. Minhas melhores fotinhos são da infância, quando os pais me levavam, todo arrumado, para os cliques do lambe-lambe da avenida Protásio Alves.

Mobilizei esforços para caprichar na carteira de motorista. Mas, para variar, a escrita torta do destino usou novamente o seu garrancho comigo. Não dormi preso no banheiro, com dores de barriga, depois de um churrasco exagerado de madrugada com amigos do futebol. Juro que a minha feição é de febre amarela, cadavérica, olhos sugados pelas olheiras, pele de iogurte vencido. É retrato adequado para aposentadoria por invalidez na Previdência, não para mostrar que sou capaz ao volante. Talvez, numa blitz, os guardas tenham pena de mim e chamem o Samu.

Serão cinco anos tendo que lidar com essa imagem fúnebre e hospitalar. O triste de renovar documentos é que eles duram muito tempo e não existe como intervir com filtros e Photoshop.

Pode reparar, na identidade, ninguém é bonito como no Instagram.

Acabei por produzir provas contra mim.

Quando estava cadastrando as minhas digitais e posto no paredão da câmera, na cabine ao meu lado uma mulher pediu para ver como ficou a sua foto. Nem esperou o atendente responder, virou o monitor do computador para si e gritou:

- Nunca será! Estou uma bruxa. Só ex vai gostar disso.

Pegou a sua bolsa e explicou para o funcionário:

- Vou para a casa me maquiar e já volto.

E saiu para colorir o livro dos seus traços. Pena que não partilhei da mesma coragem.

Ô Madalena - Ruth Manus

Querida Madalena, essa semana você completou seu primeiro mês de vida. Fez muito frio aí em São Paulo nessas últimas semanas, pelo que sei. Mas fique tranquila que, normalmente, não é assim não. Na maior parte dos dias você poderá ficar com seus bracinhos gorduchos de fora e uma calça de algodão levinha. Vai ser gostoso, pode apostar.
Eu sou aquela tia que você só viu duas vezes. Na primeira chorei muito, você talvez tenha se assustado um pouco. Mas no dia em que você tiver uma melhor amiga, como eu tenho a sua mãe, e ela tiver um bebê, você vai ver que é muito difícil segurar o choro. Na segunda eu já estava mais calma. Só chorei no carro, indo embora, você nem viu. Chorei porque não queria ficar muito tempo sem te ver, nem queria estar com a sua mãe só através das mensagens de WhatsApp.
Eu sou a tia que mora muito longe, do outro lado do mar. Você ainda não conhece o mar, mas ele é muito bonito. Às vezes é azul, outras vezes esverdeado e, em alguns lugares, meio cinzento. Quando a gente olha pro mar, a vida parece diferente. Mais calma e talvez um pouco melancólica. Talvez isso aconteça porque a gente não sabe bem o que tem depois dele. Mas saiba que o que tem depois do seu mar, sou eu. Então você não precisa ter medo.
Você nasceu no Brasil mais bagunçado que eu já vi, Madalena. Nasceu num Brasil triste onde já não temos muita certeza de nada. Quando você tiver 3 meses, o Brasil vai escolher um novo presidente. Mas fique tranquila, eu, sua mãe, seu pai e tantas outras pessoas boas não deixaremos que um homem mau, que grita, não gosta das meninas e gosta de armas seja o escolhido. Vamos reconstruir um bom Brasil pra você, pode acreditar. Eu estou te prometendo.
Assim que você puder tomar picolé, eu vou te levar na padaria. Eu gosto muito do de coco. O de limão e o de uva também são bons. Podemos nos sentar no degrau e ir comendo ali, enquanto umas gotinhas vão pingando no chão. E – segredo – se você quiser outro quando o seu acabar, eu compro e a gente não conta pros seus pais. Eles nunca vão ficar sabendo, combinado?
Tem uma música muito bonita com o seu nome. Seus pais já devem cantar para você. Ela tem umas partes meio tristes, não dê bola pra elas. Mas tenha certeza da parte em que dizem que o nosso amor existe, forte ou fraco, alegre ou triste. Na verdade, esqueça a parte do amor fraco. Nosso amor vai ser sempre forte, mesmo de longe, tá bom?
Eu não sou muito boa com fraldas, papinhas e bolos. Mas prometo escrever os cartões de aniversário mais bonitos que você vai receber. Vamos fazer uma coleção, ano após ano. E quando você for adulta talvez você goste deles. Enquanto você é pequena prometo te dar presentes baratos: bolinhas coloridas que pulam, legumes que têm velcro no meio e que você finge cortar com uma faquinha de plástico, carrinhos daqueles que quando a gente puxa pra trás, depois ele anda sozinho pra frente. 
E o mais valioso: te prometo tempo. Prometo me sentar para brincar com você em vez de te dar os brinquedos e ir embora. Essa é a parte mais difícil, mas a gente vai dar um jeito. Porque eu sei que não adianta ter cartão bonito, nem cenoura de plástico, nem texto em jornal se eu não te mostrar com os olhos e com os braços o tamanhão do meu amor. Esse é um erro muito comum no século em que você nasceu. As pessoas acham que dá pra amar de jeitos que, na verdade, não dá.
Às vezes vamos ter que brincar por Skype, Facetime, chamada de vídeo. Mas eu estarei aí. Você vai ouvir minha voz e eu vou te ensinar a dança do malucossauro. A gente vai dar um jeito, você vai ver. Não se preocupe com nada, por enquanto. Apenas mame, durma, sorria e faça cocô. Do resto, cuidamos nós. Do país, do mar, do tempo, dos cartões, dos choros, da distância e dos picolés. E saiba: nós estamos aqui.

Perversidade - Luis Fernando Verissimo

Trabalhadores do mundo, uni-vos – não que vá fazer alguma diferença. Os trabalhadores do mundo são vítimas da globalização perversa, que aboliu as fronteiras para empregadores atrás de mão de obra barata e desregulada, mas não para eles. Nenhuma solidariedade é possível num mundo em que o capital vai atrás do lucro onde quer e o único internacionalismo permitido ao trabalho é a migração ilegal e o tráfego tétrico de empregos exportados cruzando com desemprego importado.
Economistas neoclássicos dizem que o exercício continuado do livre-comércio dará razão ao ur-clássico David Ricardo, que no século 18 teorizou que Estados nacionais explorando suas respectivas vantagens em recursos naturais, capacidade industrial e mão de obra acabariam se complementando e todos ganhariam com isso, inclusive os trabalhadores, no melhor de todos os modelos econômicos possíveis. Mas o Ricardão tinha outra teoria, que chamava de “a lei férrea dos salários”. Para ele, mesmo no melhor dos mundos teóricos, os salários tenderiam a se estabilizar ao nível da subsistência mínima, já que o trabalho é um recurso universalmente disponível e infinitamente substituível.
A organização do trabalho a partir do século 19 e o crescimento dos sindicatos parecia desmentir esse fatalismo de Ricardo, pois os trabalhadores aos poucos deixaram de ser o lado indefeso do modelo ideal. A legislação social, em maior ou menor grau, nos países industrializados – ou em países como o Brasil, em que a legislação de Vargas precedeu a industrialização – inviabilizava a teoria de Ricardo, pelo menos em tese, e retirava as condições para a confirmação da sua lei férrea. A globalização perversa está restaurando essas condições. O trabalho organizado perde a sua força até em países como a França e a Alemanha, onde sindicatos e movimentos sociais sempre tiveram grande participação política, e a receita para “responsabilidade” econômica aqui no quintal passa pela flexibilização de leis trabalhistas e outros eufemismos para roubar do trabalho o seu poder de barganha. Trabalhadores do mundo inteiro, hoje incapazes de se unir, só têm a perder uns 200 anos de luta, mais ou menos. 

Renê - Luis Fernando Verissimo

Lilian desconfiou que Artur iria deixá-la. Ele dormia de costas para ela e não a chamava mais de Lili. Lilian decidiu que a solução era provocar ciúmes em Artur. Como? Comprou um buquê de flores, escreveu num cartãozinho “Lilian: me diga quando e onde...”, assinou – depois de pensar muito num bom nome para amante – “Renê”, e mandou entregarem o buquê com o cartãozinho no seu próprio endereço.
Deu certo. Foi o Artur quem recebeu as flores na porta. Disse:
– Flores para você.
Lilian, fingindo surpresa:
– Flores? Para mim?
– E um cartãozinho.
– Um cartãozinho?
– Posso abrir?
– Não! Deixa que eu...
Mas Artur já estava lendo o cartãozinho.
– Muito bem. Quem é Renê?
– Renê?
– “Lilian, diga quando e onde”. Assinado, Renê.
– Eu não tenho a menor...
– “Diga quando e onde” o quê? Hein? Hein? E quem é esse Renê?
– Eu...
O tapa foi tão forte que Lilian caiu de costas no sofá. Quando se ergueu estava sorrindo. O Artur sentia ciúmes. O Artur ainda a amava, afinal. O Artur ainda a amava! Gritou:
– É uma brincadeira! Fui eu que mandei as flores. Fui eu que escrevi o ...
Não pôde terminar porque o Artur começou a sufocá-la com uma almofada do sofá.
*
Lilian não entendia a raça dos homens. Não sabia que homem não tem ciúmes porque ama. Ciúmes nunca é uma questão entre o homem e a pessoa que ama. Ou é, mas a pessoa que ele ama é ele mesmo. Ciúmes é sempre entre o homem e ele mesmo.
– Quem é esse Renê? Hein? Hein?
Súbito, o Artur parou de sufocá-la com a almofada. Levantou-se.
Tinha se dado conta de uma coisa. Disse:
– Eu sei quem é esse Renê. Eu conheço esse Renê!
A Lilian ainda tentou chamá-lo de volta.
– Não existe nenhum Renê! Fui eu que inventei!
Mas o Artur já tinha saído de casa, depois de passar no quarto e pegar o revólver da gaveta da mesinha de cabeceira.
*
Lilian passou o resto do dia rondando pela casa, nervosíssima.
Quando ouviu o ruído da chave na fechadura, correu para a porta. O Artur entrou sem olhar para ela.
– Onde você estava? O que aconteceu?
Artur não respondeu. Foi para o quarto trocar de roupa. Lilian foi atrás. Havia respingo de sangue na camisa do Arthur. O tiro fora de perto. Ele não trouxera o revólver de volta. Provavelmente o jogara em algum matagal. Lilian:
– O Renê do cartãozinho...
Artur tapou a sua boca com a mão. Disse:
– Não se fala mais nesse nome nesta casa. Nunca mais. Está ouvindo?
E depois:
– Esse aprendeu a não se meter com a mulher dos outros.
*
Naquela noite, nenhum dos dois dormiu. Lilian pensando “Renê, Renê... Quem é que eu conheço com esse nome? Quem é esse Renê, meu Deus? Ou quem era?”
De madrugada, amaram-se loucamente. O Artur dizendo:
– Viu o que eu faço por você? Viu?
Era a primeira vez que se amavam assim em pelo menos três meses. Ele até a chamou outra vez de Lili.
*
A felicidade voltara ao seu lar, pensou Lilian. Fosse quem fosse o Renê, morrera por uma boa causa.

sábado, 25 de agosto de 2018

A Nudez - Marcelo Rubens Paiva

A Angela Merkel, como muitos alemães, adepta do nudismo, aparece numa foto, jovem, em nu frontal, com duas amigas numa praia. Governa a maior economia da Europa desde 2005. O partido? União Democrata-Cristã. Sua carreira política nunca foi abalada pela “afronta puritana”.
Muitos compravam a revista francesa Photo, para xeretar o nu artístico que costumava vir acompanhado de anúncios de lentes, filmes, tripés e câmeras. Francesas apareciam nuas em filmes da Nouvelle Vague. Vão à praia e piscinas públicas de topless, liberdade que uma mulher brasileira não consegue exercer nos nossos 7,4 mil quilômetros de litoral sem ser assediada.
Glauber Rocha atendia nu jornalistas e amigos. Por vezes, com um baseado na boca. Meu pai andava nu pela casa. Por vezes, cobria as partes com o jornal. Colecionava a Playboy americana. Empilhava-as sob a cama. Eu e minhas irmãs nos divertíamos folheando. 
Atrizes ganharam muito dinheiro tirando a roupa para Playboy brasileira. Musas do cinema, teatro e televisão: Sônia Braga, Bruna Lombardi, Betty Faria, Lídia Brondi, Lucélia Santos, Sandra Bréa, Vera Fischer, Carla Camurati, Christiane Torloni, Maria Padilha, Marisa Orth.
Modelos como Xuxa, Luísa Brunet, Pietra, as cantoras Tânia Alves, Marina Lima, Rosemary, Elba Ramalho, Simony, a rainha do basquete, Hortência, jornalistas, socialites, apresentadoras de TV, até uma paquita, menor antecipada, Luciana Vendramini, apareceram em alguns ensaios fotográficos.
O autor de A Parte Que Falta, Shel Silverstein, sucesso editorial infantil e adulto, era cartunista da revista, que perdeu o rumo, como a cultura brasileira, e se fixou nas cantoras de axé, assistentes de palco de programas populares, que vendeu bem, mas tirou o status de uma das melhores revistas do mercado. 
Ela empregava os melhores fotógrafos. Bob Wolfenson fez dois ensaios antológicos: Maitê Proença, em preto e branco, andando nua pelas ruas de uma viela da Sicília sem ser incomodada, e Alexandra Negrini representando uma prostituta de rua.
J.R. Duran era o grande fotógrafo das mulheres. Fez 90 ensaios para a revista, um em cada cinco edições. É dele o com Adriana Galisteu, dos memoráveis e dos que mais venderam. Quem não se lembra da foto dela se depilando?
Luma de Oliveira esteve cinco vezes na capa da Playboy. No auge da estabilidade econômica, Tiazinha, Feiticeira e Dançarinas do Tchan, Sheilas Carvalho e Mello, bateram recorde de vendagem. 
Mas a revista perdeu o glamour, a exclusividade, o ineditismo. Vulgarizou-se. A internet vazou fotos restritas aos leitores. Todas as fotografadas se viram circulando peladas pelas redes. Nanda Costa foi das últimas grandes atrizes a sair. Elas perderam o interesse. Mendigata, Gari Gata, Chica Poderosa foram das últimas capas. A revista fechou. O mundo mudou. Perdeu, playboy.
O que nos leva a consumir sua nudez? Curiosidade, tara, admiração, comparação? Objetivamos a personagem. Na Renascença, escultores queriam mostrar as belezas naturais, clássica, do povo italiano, ou provocar a libido?
Na peça Carne de Mulher, a atriz Paula Cohen faz a plateia rir e se incomodar, ao declamar sarcasticamente o Monólogo da Puta no Manicômio, texto dos anos 1970 de Dario Fo e Franca Rame. 
“Encontrei um livro com um desenho de uma mulher nua dividida em partes, como esses desenhos pendurados nas paredes do açougue: uma vaca pintada por regiões. Cada zona do corpo da mulher estava pintada com cores diferentes, dependendo da sensibilidade mais ou menos forte ao tato do macho. Por exemplo, a zona do lombo, aqui, pintada de vermelho… Sensibilidade máxima. Depois, a parte daqui de trás do pescoço, de violeta, sabe, essa parte que quem vende frios chama de copa. Depois, as costas, que é a alcatra, cheia de pintinhas laranjas. E mais embaixo, a picanha e o coxão mole... A paleta produz um estremecimento erótico de morrer. Quase como se tocasse o nosso rosbife, que na verdade é o músculo transverso, que seria a parte interior da coxa.”
Revista de mulher nua tornou-se um contrassenso às conquistas femininas. Se a mulher pede que paremos de olhá-la como objeto de consumo, como carne, como desejo, se pede o fim do assédio, da cultura do estupro e equiparação salarial, é um despropósito publicá-las.
A minha adorada revista Trip tinha uma edição Funcionárias do Ano: “Mais uma vez deixamos o egoísmo de lado e mostramos a beleza de nossas colegas na Trip”. Claro que não foram forçadas. Tinham a opção do não. 
Mas como fica a relação trabalhista, se você não veste a camisa, ou tira a roupa, pela empresa? E como continua a convivência no ambiente de trabalho com a intimidade revelada?
“No dia a dia, elas fazem a editora funcionar sem perder o charme e ainda tornam nossa rotina mais agradável. Uma vez por ano, emprestam seu frescor e sua sensualidade para nossas páginas. Pela décima vez, Trip revela a beleza natural das mulheres que trabalham logo ali na mesa ao lado”, anunciava a edição 184 de 2009.
Acompanhando as fotos de funcionárias seminuas, surpresa, um texto do filósofo conservador Luiz Felipe Pondé (de Teologia e Literatura e O Catolicismo Hoje). “Quanto blablablá! Esqueçam a filosofia, estou aqui é pra falar como é bom ter mulheres lindas ao nosso redor. Neste caso, a beleza tem nome próprio: Cárita, Ana Paula, Jéssica, Ana Reis. Isso sim é erotismo. Dostoievski, Deus e Platão são o máximo, mas, diante de um par de pernas cruzadas em minha sala, esqueço meu cérebro, e me concentro em conseguir ver, de relance o que essas pernas cruzadas escondem.”
Como nós, homens, estávamos equivocados...

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

Os instintos e a serpente - Nílson Souza

Aquele pedaço de papel manuscrito salvou o meu dia. Estava colocado sob o limpador do para-brisa de um carro estacionado nas proximidades do restaurante onde almocei, no último domingo. Por curiosidade, li o que estava escrito:

- Encostei no seu carro. Fulano de tal, telefone tal.

O carro branco tinha pequenos riscos no para-choque traseiro, provavelmente resultantes da manobra malfeita pelo motorista que tentou estacionar ao lado. A demonstração de honestidade me comoveu. Num estacionamento praticamente deserto, sem câmeras de vigilância, o homem teve o zelo de descer do carro e escrever o bilhete improvisado para o desconhecido que involuntariamente havia prejudicado. Tive a tentação de anotar o telefone para cumprimentá-lo e sugerir que se candidate a algum cargo público futuramente.

Precisamos de gente assim na administração do país.

Escrevi que o papel salvou o meu dia porque estava amargurado com a notícia da véspera sobre a expulsão de venezuelanos em Roraima. Quando tomo conhecimento de uma barbárie praticada por pessoas comuns, me lembro do deputado Roberto Jefferson, delator do mensalão. No seu célebre depoimento à Comissão de Ética da Câmara, em 2005, ele se dirigiu ao ex-ministro José Dirceu e disparou:

- Eu tenho medo de Vossa Excelência porque Vossa Excelência provoca em mim os instintos mais primitivos.

De vez em quando, também sou tomado por esse temor de que todos nós, por mais civilizados e pacíficos que pareçamos, guardamos no recôndito de nossas almas instintos capazes de nos transformar em feras e até mesmo em fascistas covardes. Sim, pois os pacaraimenses que incendiaram barracas e colchões de refugiados, expulsando-os da cidade, não devem ser muito diferentes dos demais brasileiros. Acredito que foi, principalmente, o medo que os levou à selvageria - o medo de estrangeiros que, impulsionados pela necessidade de sobrevivência, invadem suas ruas e praças, disputam seus espaços e empregos e ajudam a puxar para baixo os indicadores de qualidade de vida.

O pretexto do assalto ao comerciante brasileiro por venezuelanos não se sustenta. Ainda que tal crime tenha ocorrido, é injustificável a truculência contra famílias inteiras de imigrantes que nada tinham a ver com o episódio. O que houve em Roraima foi uma manifestação pública da xenofobia latente e visível também em outras áreas do país ocupadas por estrangeiros.

A onda de refugiados do século 21 é um desafio para a humanidade e para o humanismo que nos transpôs da Idade Média para a Idade Moderna. O episódio de Pacaraima evidencia acima de tudo a inépcia das autoridades na prevenção de um conflito que pode se alastrar pelo país, com um componente individual preocupante: o desapreço à generosidade e à compaixão. Numa escala mais ampla, essa insensibilidade pode produzir o efeito ainda mais perverso de facilitar a ascensão ao poder de governantes autoritários. A serpente da hora chama-se xenofobia.

Um brinde às inimigas - Manuela Cantuária

  Duas amigas em uma mesa de bar. Uma delas ergue seu copo. "Um brinde às inimigas, que elas tenham saúde em dobro para aplaudir nosso ...