quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Semiótica do chapéu - Ricardo Araújo Pereira

Luiza Pannunzio/Folhapress


Não sei quem foi que, um dia, pelo final dos anos 1950, saiu de casa sem chapéu e disse: "Chega. Eu nunca mais vou usar isso na cabeça". Mas, pelos vistos, a rebeldia daquele gesto era tão urgente que todo o mundo concordou bem rápido.
Até ali, as pessoas andavam na rua de chapéu, iam ao teatro de chapéu, iam comprar chapéu de chapéu. De repente, passaram a andar de cabeça descoberta. O calvário do chapéu não é um fenômeno de moda. A moda faz com que as camisas de hoje sejam diferentes —para pior, normalmente— do que eram há dez anos.

Mas os estilistas não ousam propor a extinção das camisas. Ora, foi isso que aconteceu ao chapéu. De um dia para o outro, acabou rejeitado, mas não por falta de qualidade, de beleza, ou até de utilidade. Os fabricantes de chapéus devem ter precisado de apoio psicológico. Por que é que as pessoas tinham deixado de querer usar chapéus? Por que é que não tinham ganho aversão às calças? Ninguém sabia.
Na verdade, foi uma injustiça. Há gestos dramáticos que só se podem fazer com o chapéu. O que é que a gente atira ao ar na formatura, ou quando alguém faz um gol depois de driblar a zaga toda? Até nós, que nunca usamos chapéu, sentimos uma vontade incontrolável de atirar alguma coisa ao ar nessas ocasiões, mas não sabemos o quê.
O chapéu era todo um sistema de comunicação. Usado de forma normal, revelava dignidade. Inclinado para trás, indicava descontração e simplicidade. E, inclinado para a frente, exprimia mistério e sedução. Sem chapéu temos, além disso, de encontrar uma solução urgente para, por exemplo, quando estamos a cavalo e queremos despedir-nos de alguém ao longe. Antigamente, era só agitar o chapéu enquanto nos afastávamos, a caminho do pôr-do-sol.
Agora, é um momento constrangedor, só superado por aquele em que alguém morre à nossa frente. Costumava ser fácil: a gente tirava o chapéu e punha os olhos no chão. Era ótimo: o chapéu oferecia humildade, respeito e uma ocupação para as mãos. Era a peça de roupa que melhor rendia homenagens. Tirar o chapéu quando alguém morre sempre foi muito melhor do que, por exemplo, descalçar um sapato. Eu experimentei. Ficamos órfãos do serviço do chapéu. Gostaria, por isso, de tirar o chapéu ao chapéu. Infelizmente não posso, porque não uso.

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