Oásis - Martha Medeiros
Os desertos me atraem. O silêncio absoluto em meio a um universo infinito. Nenhuma ansiedade, apenas o contato profundo consigo mesmo.
Vivo no oposto de um deserto, numa urbe habitada por
muita gente, sonorizada por buzinas e freadas. Uma cidade que, como outras,
induz a um comportamento automático e racional: trabalhar para ganhar meu
sustento, trazer comida pra casa, combater meu sedentarismo com atividades
físicas, socializar com meus pares, me informar sobre o que acontece no mundo,
compartilhar minha opinião nas redes sociais, cuidar da minha saúde e da minha
aparência. Nada disso é um castigo, mas toma todo o meu dia e, quando dou por
mim, é hora de ir para a cama e dormir.
Algumas pessoas meditam, outras rezam, outras ainda se
refugiam num bom livro – as escapatórias necessárias, uma volta para dentro de
si, aquele momento chamado “seu”, fundamental.
Tenho os meus, e hoje em dia eles têm acontecido com mais
regularidade dentro de uma sala de cinema. Nem Netflix, nem Now, nem DVD, nada
se compara ao deslocamento físico e à introspecção buscada: ainda não abro mão
do ritual do ingresso, assento, luzes apagadas, foco. É onde todos os meus
instintos afloram (inclusive os assassinos: se você também não suporta quem faz
barulho com sacos de balas e pipocas, testemunhe a meu favor caso eu vá a
julgamento).
Nesta semana, assisti a Paterson, de um dos meus
cineastas prediletos, Jim Jarmusch. Nada mais precário que um resumo de filme
em três linhas, mas é sobre um motorista de ônibus que todos os dias, após o
trabalho, leva seu cachorro pra passear pelo mesmo trajeto, toma uma cerveja no
mesmo bar e volta para os braços da sua linda e mesma esposa, dormindo o sono
dos justos – entrementes, escreve poemas num caderninho.
Só isso. Tudo isso.
Por tudo, entenda-se: todo dia repetitivo é também um
novo dia. É preciso delicadeza na prática de qualquer convivência. Há poesia no
cotidiano. Carinho também é amor. Ninguém é igual aos outros e ninguém é muito
diferente dos outros. O que nos comove está sempre no subtexto.
Paterson é um oásis neste deserto às avessas, em que
vivemos em meio a muito barulho sem sentimento, muito movimento sem pausa,
muita relação sem entrega. Um momento seu para extrair de dentro da alma. Esta
mesma alma que me escapa agora pela ponta dos dedos.
'Paterson' - Fabrício Corsaletti
Acordei antes do despertador tocar, beijei minha namorada na testa, lavei o rosto, me vesti, passei pela cozinha, peguei uma banana, guardei no bolso do casaco, abri a porta da sala, chutei o jornal pra dentro, chamei o elevador, cumprimentei o porteiro, atravessei a rua e vim pra casa a pé.
Ainda não eram sete da manhã e a avenida Pacaembu já estava com trânsito pesado. Buzinas, música alta, gente gritando. Passei na frente do estádio. Como é bonito, pensei. Não só o edifício em si, mas também o lugar onde ele foi erguido, no meio de um vale. Lembrei de uma reportagem lida dias antes numa revista. Dizia que abriram um café ali na entrada. Imaginei mesas espalhadas entre as colunas, debaixo da laje, e em cima delas xícaras, cadernos, óculos, velas, laptops, copos de conhaque. Tirei o celular do bolso e me mandei um e-mail com o assunto "ir café pacaembu logo". Depois subi sem pressa a ladeira da Faap.
Sempre que eu caminhava naquele trecho me chamava a atenção uma janela enferrujada quase encoberta por um galho de goiabeira. De alguma forma, ela era o centro da paisagem. Ou o último fragmento de um mundo em extinção? Estudantes de mochila nas costas e cabeça baixa cruzavam o portão da faculdade. A luz caía fora dos relógios, nas cabeleiras das meninas atrasadas.
Quase parei na padaria da praça Vilaboim, mas fiquei com preguiça de falar com as pessoas. Um senhor de boina veio na minha direção com um cachorro de raça. Onde foram parar os vira-latas do Brasil? No vão das pernas dos mendigos, sem dúvida.
Na semana passada o caixa de uma papelaria me contou uma história louca sobre seus filhos. Demorei pra entender que não eram crianças, mas cachorros. Aí eu disse que também não tinha filhos e, assim como ele, adorava animais. Juro: achei que ele fosse me enfiar um lápis no olho. Por sorte, apenas chamou de fascista. Peguei meu troco e saí. Vivemos numa época estranha. O cara trata bicho como gente e gente como bicho, mas no fundo se considera uma pessoa boa. Quando se torna prefeito de São Paulo, sua primeira atitude é se deixar fotografar com um coala de estimação. No dia seguinte toca fogo nos índios da cracolândia.
Em vez de seguir em frente pelo parque Buenos Aires e tomar o caminho mais curto, peguei à direita e subi na direção da Paulista, entrei na Angélica, virei na rua do Sujinho e fiquei rodando pelo bairro. A maioria das lojas estava fechada. Nos botecos, operários de uniforme e botina tomavam café no balcão e trabalhadores em roupas sociais compravam pães de queijo pra comer no escritório.
Um dia vou abrir um bar, o Bar do Corsaletti. Vou chamar meu amigo Formiga pra comandar a grelha e o som. Vou ganhar dinheiro e olhar pro mapa-múndi como se fosse um cardápio. Vou parar de escrever e arrumar um monte de problemas. Vou beber o dobro e ter que parar de beber. Melhor não abrir bar nenhum. E além do mais tenho três livros pra terminar.
Sobrou pouco espaço pra falar de "Paterson", o novo filme de Jim Jarmusch. Mas concordo: os melhores poemas são escritos no ar, motoristas de ônibus vão salvar o planeta, a serenidade é cheia de fósforos.
Pedro Piccinini/Folhapress
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