domingo, 30 de abril de 2017

O nosso amor a gente inventa - Marcos Piangers


Os olhinhos da minha filha de quatro anos brilhavam enquanto ela segurava uma caixa grande de cor roxa onde lia-se "Doutora Brinquedos". Olhando a caixa dava pra ver que era um amontoado de plásticos roxos ali dentro: um estetoscópio falso, uma maletinha falsa, um termômetro falso, uma bomba de medir pressão sanguínea falsa. "Um amontoado de plástico por exorbitantes R$ 89,90", era a única coisa que eu podia pensar. Nessa hora, nosso coração de pai não vê a etiqueta — a maldita etiqueta escondida sorrateiramente na parte de trás da caixa. Olhamos apenas para aqueles lindos olhinhos nos pedindo "compra, pai?". As crianças aprendem rápido que seus olhinhos pidões são como varinhas encantadas, e as palavras mágicas são "compra, pai?".
Mas as crianças não nascem sabendo o valor das coisas. Elas sabem apenas que querem tudo aquilo que seja novo e brilhante e que tenha aparecido na televisão ou que tenham visto na casa dos amiguinhos. Pra comprar um amontoado de plástico por R$ 89,90 eu precisei trabalhar, responder e-mails às três horas da manhã, eu precisei viajar e ficar longe de você, minha filha. As crianças não sabem de nada disso, e eu tenho certeza que se soubessem não pediriam nada muito caro. Um amigo meu, esses dias, perguntou ao filho o que gostaria de ganhar de aniversário. "Qualquer coisa, pai?", perguntou o filho. "Qualquer coisa, filho". Meu amigo trabalhava como um condenado e isso fez dele um homem muito rico. "Então, eu quero um dia inteiro com você, pai". O pedido de presente mais especial na vida daquele pai.
Vivemos a vida como se vive uma gincana, pagando contas, conhecendo pessoas, organizando a agenda, levando filho pra escola, ligando pra sogra pra ver se ela pode ajudar, colocando desenho na televisão, fica com o tablet agora pro papai poder trabalhar, papai trouxe um presente pra você da viagem. As crianças não sabem porque você tem que trabalhar, sair de casa todo dia, viajar no fim de semana, perder a festa de final de ano. A gente diz que tem que ser assim, um dia você vai entender, e a criança entende o recado. É assim que é a vida. A criança não nasce sabendo o valor das coisas, a gente ensina o valor das coisas pra ela.
"Filha", disse eu naquela tarde, "deixa essa caixinha aí e vamos continuar caminhando. Vai que a gente encontra alguma coisa mais legal?". Dez metros à frente, uma loja vendia adesivos de borboletas brilhantes. Olha, filha. Compra, pai? Cinquenta centavos. Você é o melhor pai do mundo. Foi o presente mais fantástico em meses: aqueles adesivos enfeitaram unhas, espelhos do banheiro, painel do carro. As borboletas tinham nomes, me acompanhavam coladas na minha roupa, de vez em quando ainda encontro algumas no bolso da calça. As crianças não nascem sabendo o valor das coisas. Os adultos também.


















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