Após dois anos quase sem sair de casa, seis anos depois de
vir ao mundo, no fim de uma trilha em Ubatuba, meu filho viu pela primeira vez
um hippie. Era um hippie de quadrinho do Crumb: pele curtida pelo sol,
tatuagens, dreads trabalhados na parafina, regata tie dye, chinelão de couro,
brinco de pena, “símbalo da paz dependurado no pescoço”, como diria outro
bicho-grilo, uma canga com bijuterias, maricas de bambu e duendes de Durepoxi.
Depois dos dinossauros, o que mais interessa ao Dani é pedra. Tem sacos cheios de pequenas rochas colhidas em todos os lugares que já visitamos, da brita da obra da esquina ao quartzito dos Andes —e eu só sei o que é um “quartzito” porque ele pediu de aniversário um livro sobre pedras, que lemos noite após noite, desde fevereiro. E o que o hippie tem na canga? Bijuterias feitas com jaspe verde, vermelha, turmalina, ágata, selenita, olho de tigre —paro por aqui, pois já tô abusando do “Pequeno Livro das Rochas e Minerais”.
Embasbacado, meu filho encara o hippie. Sabia da existência
de maestros e palhaços, esquimós e astronautas, freiras e corcundas, mas aquele,
de fato, é um tipo muito particular, meio xamã, meio medusa, saído de algum
desenho animado japonês situado num futuro tribal pós-apocalíptico. Parece do
mal, mas é do bem —e tem a coleção de pedras mais sensacional já vista em seis
anos sobre a Terra.
No carro, depois de me convencer a comprar um colar para a
mãe, Dani me pergunta: “Aquele homem é o quê?” “Um hippie.” “O que é um
hippie?” É mais fácil responder sobre rochas sedimentares, mas vamos lá:
“Hippie é um tipo de pessoa cabeluda que gosta muito da natureza, é contra
emprego, acha que todo mundo deveria namorar um monte de gente, sem casar,
veste roupas confortáveis, chinelo, jamais terno e gravata, gosta de música e
tem um lema: paz e amor”. “Eles são um povo?” “Não, são um estilo de vida. O
cara, tipo, resolve ser hippie e vira hippie.”
“Tem que estudar pra ser hippie?”. “Não. Quer dizer, tudo na
vida, pra fazer direito, tem que estudar. Pra ser um hippie bom mesmo tem que
ler vários livros, ouvir muitas músicas, aprender a fazer artesanato, dread,
tocar algum instrumento. Mas não tem, tipo, escola pra hippie.”
Vejo pelo retrovisor a curiosidade sendo engolfada pela
indignação: “Papai, por que você não é hippie?!”. Com ciúmes, na defensiva,
digo que sou um pouco hippie, que tenho muitos discos e livros de hippie, que
na adolescência eu tinha um cabelão comprido e tocava bongô, mas não vou muito
longe: “Você não é nada hippie, papai! Você raspa seu cabelo e a barba com
máquina, trabalha muito no seu emprego, é casado com a mamãe, usou terno e
gravata no casamento da tia Maria e quando você fica bravo com a gente não é
nada disso aí de amor e paz”.
Derrotado, balbucio que as coisas não são tão simples. Que
se eu fosse hippie não teria dinheiro pra pagar escola nem pra comprar
dinossauro de brinquedo, que namorar todo mundo é trabalhoso e solitário, que
tem outras formas de lutar pela paz e o amor, mas vejo no olhar do meu filho
que, comparado à figura áurea que ele acaba de conhecer, meu hippismo é puro
ouro de tolo (pirita ou dissulfeto de ferro, não que alguém tenha perguntado).
“Eu vou ser hippie”, declara o Daniel. Então levanta a camiseta, infla a barriga e encara a tatuagem, quer dizer, o decalque encarquilhado que dias antes havia sido um tiranossauro rex verde limão. “Já é um começo”, digo, ao que ele me responde com orgulho e desdém: “Eu sei".
Ilustração de Adams Carvalho
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