Eu sei que a língua é viva, que a rua é quem pauta as
gramáticas e não o contrário. Tô lendo o maravilhoso "Latim em Pó, um
Passeio pela Formação do Nosso Português", do Caetano W. Galindo e não
perco uma coluna do Sérgio Rodrigues.
Os dois são democratas radicais da linguagem. Sabem que o
erro de hoje é a norma culta de amanhã. Que a escrita cheia de rococós é como
uma coroa cheia de brilhos, geralmente usada para esconder uma cachola vazia,
pra constranger o leitor ou pra ostentar erudição —o que é a maior prova de que
o indivíduo é uma besta, pois se tem uma coisa que os grandes autores nos
ensinam é que a vaidade é dos defeitos humanos mais ridículos.
Eu tento me portar como o Galindo e o Sérgio, mas talvez não
seja tão generoso. Há certos modismos que me irritam demais. Eu respiro fundo.
Repito mentalmente três vezes o verso de Circuladô de Fulô "o povo é o
inventalínguas", "o povo é o inventalínguas", "o povo é o
inventalínguas", mas cáspita! LANCHE é qualquer coisa que se come entre as
refeições, não SANDUÍCHE!
Sei que, além de reacionária e elitista, minha luta é vã.
Faz pelo menos uma década que sanduíche virou lanche. Você vai no McDonald's e
a mulher fala "quer batata frita pra acompanhar o lanche?". "Não
é lanche, são nove e meia da noite, é jantar." "Oi?" "Nada.
Manda as batatinhas com o SANDUÍCHE."
Fico imaginando como se deu essa transição semântica. A mãe
preparava a lancheira do filho, punha ali um misto, dizia "tó aqui seu
lanche, Arthurzinho" e o Arthurzinho concluía que sanduíche era lanche. Se
a mãe do Arthurzinho, em vez de um misto, pusesse na lancheira uma mexerica,
estaríamos todos, hoje em dia, chamando mexerica de lanche? Seria um caos,
porque tá pra brotar no dicionário uma fruta com mais nomes: mexerica,
tangerina, bergamota, mimosa, pokan, murcote, tanja... Lanche?
A teoria arthurzínhica, porém, não faz muito sentido, uma
vez que, ao mesmo tempo que o menino levava seu misto na lancheira, milhares,
talvez milhões de outros brasileiros comiam por aí seus mistos, baurus,
beirutes e x-saladas, chamando-os pelo nome certo: san-du-í-che.
A história mais difundida sobre a origem do sanduba é a do
inglês John Montagu, 4° conde de Sandwich, que no século 18, enquanto jogava
cartas, pedia para seu mordomo trazer duas fatias de pão recheadas com carne
seca. Desta forma o conde podia continuar com a jogatina –e sem melar as
cartas. Segundo a lenda, os amigos do carteado começaram a pedir "o mesmo
que o Sandwich", "o do Sandwich!", "o Sandwich!" e a
moda pegou.
É a mesma história do Bauru, inventado por um bauruense que
sempre ia à lanchonete Ponto Chic, em SP, e pedia o pão francês recheado com
rosbife, pickles e queijo derretido. "Vê aí um igual o do Bauru."
"Vê aí um do Bauru." "Vê aí um Bauru." Nos EUA tem o
Reuben: carne curada fatiada, queijo suíço, chucrute e um tipo de molho rosé.
Foi criado por um sujeito chamado James, tô brincando, por um sujeito chamado
Reuben Kulakofsky, judeu lituano, lá por 1920, em Nebraska.
Quem sabe um sujeito chamado Lanche, digamos, Eduardo
Lanche, começou a pedir sanduíches em alguma padaria muito frequentada de São
Paulo? Digamos que Eduardo Lanche tinha muitos puxa-sacos que imediatamente
pediam "O mesmo que o Lanche", "O do Lanche", "Um lanche"
até que Lanche rebatizou o sanduíche. Maldito Eduardo.
Calma. Respira. "O povo é o inventalínguas",
"o povo é o inventalínguas", "o povo é o inventalínguas".
ilustração: Adams Carvalho
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