domingo, 30 de setembro de 2018

Almoço de negócios: um flagelo - Ricardo Araújo Pereira

Luiza Pannunzio/Folhapress


Tenho conseguido passar pela vida sem participar no mundo dos adultos, com a ajuda de Deus. Não sei se Deus está a proteger-me a mim ou aos adultos, mas em qualquer dos casos agradeço.
Em minha casa, sou uma espécie de ministro da Cultura: disponho de um orçamento muito reduzido e não tenho verdadeiro poder para decidir sobre qualquer matéria importante.
Fora de casa, nunca tive uma ocupação que a minha avó considerasse um emprego autêntico. Para a minha avó, só havia cinco profissões: médico, engenheiro, arquiteto, professor e advogado. Todo o resto do mundo era vagabundo.
Estava profundamente errada, claro. É preciso não esquecer que ela era de outro tempo —um tempo em que, pelos vistos, advogados não eram vagabundos.
No entanto, e apesar da minha habilidade para evitar compromissos e responsabilidades, acabei por me ver envolvido, duas ou três vezes, na maior abominação do mundo empresarial: o almoço de negócios.
É preciso ser um tipo muito perverso de pessoa para misturar uma coisa tranquila e prazerosa como o almoço com a fria e suja realidade dos negócios. O negócio, como a etimologia indica, é a negação do ócio —o que significa que o almoço de negócios é a negação do almoço.
Sempre que vou a um almoço de negócios, começo a ficar impaciente bem antes da sobremesa de negócios. Começo a pensar na digestão de negócios que me espera e nem me concentro no almoço nem nos negócios.
É uma invenção tão pérfida quanto ridícula. Organizar um almoço de negócios faz tanto sentido como combinar uma ida à praia industrial, ou um cineminha agrícola, ou uma transa imobiliária.
Há que escolher entre o prazer e a atividade econômica. Ou se almoça ou se pensa em negócios; ou se come ou se mercadeja. A mesma lei que proíbe animais nos restaurantes devia impedir a realização de almoços de negócios.
As outras pessoas que estão no restaurante não têm de ser obrigadas a olhar para gente empenhada na captação de recursos financeiros, na celebração de vínculos com efeitos jurídicos e na geração de lucro. Que nojo. Estamos a comer.

Duas bolas - Ruth Manus

Quando passei pela esquina vi que um novo empreendimento qualquer iria abrir no bairro. Obras a todo vapor, alguma pressa. Bem que podia ser uma copiadora, não tem xerox nenhuma perto de casa. Os dias passaram e pintaram aquilo com tons duvidosos: azul-turquesa e rosa-choque. Boa coisa não devia ser.
Mas era. Era uma sorveteria. E poucas coisas podem ser melhores do que uma sorveteria nova no bairro – mesmo que você não tenha intenção nenhuma de frequentá-la. Algumas semanas passaram e o estabelecimento foi inaugurado. Eu gostava daquela sorveteria, exatamente por não ser muito sisuda nem muito pretensiosa. Aquelas cores berrantes diziam logo como eles queriam se posicionar: alegres e populares, não sóbrios e elitistas. Tinha até uma lousinha na calçada, com rabiscos de giz branco anunciando a abertura.;
Contei para a miúda, que logo se animou. No fim da tarde na terça-feira, aproveitando o fim do verão, fomos até lá. Confesso que foi uma das únicas vezes que fiquei feliz com a existência de uma fila. Meia dúzia de pessoas aguardava o atendimento à nossa frente: duas amigas de 14 anos, um pai com um menino de uns 5, um casal com mais de 80. A coisa ia bem. 
As opções eram simples: uma bola, duas bolas ou três bolas, no copo ou na casquinha. Não tinha aquela história de “uma bola – até dois sabores, duas bolas – até 3 sabores, etc.”. Nunca vi lógica nenhuma nisso. Uma bola, um sabor. Faz algum sentido, não? Escolhemos uma bola cada uma – na verdade ela queria duas, mas percebemos que madrasta é mãe, e não amiga, quando respondemos “não, uma só, que já já tá na hora do jantar”.
A miúda se angustiou entre o de chocolate e o de bolacha Oreo. Disse a ela que podíamos pedir os dois e íamos provando uma o da outra. Na verdade eu queria pistache, acho que é isso que chamam de amor. Pegamos nossas duas casquinhas e nos sentamos nas mesas da calçada. Logo depois, uma mãe com duas crianças perguntou se podiam dividir a mesa conosco e, de repente, éramos 5 dividindo uma tarde de verão.
O sorvete ia derretendo e escorrendo pela casquinha da miúda. Eu às vezes apontava para ela lamber antes que pingasse. Claro que pingou, bem no short branquinho. Ela arregalou os olhos, eu dei risada. Criança boa é criança de roupa suja. Acabamos os sorvetes, voltamos para casa. Banhos, sopas, pijamas.
Na tarde da quinta-feira, nos olhamos, cúmplices: sorvete? – eu perguntava com os olhos brasileiros. Gelado? – ela perguntava com os olhinhos lusitanos. Voltamos à sorveteria, cheia outra vez. Dessa vez ela não me pediu duas bolas. Angustiou-se entre coco e melancia. Tudo bem, fazemos aquele esquema de novo. Dessa vez foi o meu que pingou, bem em cima do peito do pé.
Às nove da noite, quando eu voltava da academia, a sorveteria continuava cheia. Menos crianças e idosos, mais casais jovens. Eu sorri. No meio dessas angústias todas nesse mundão – armas, homens, ameaças, truculência – era bom ver uma sorveteria colorida cheia. Ali não havia espaço para ódio, berros e polêmicas. Uma verdadeira trégua no meio disso tudo.
A gente procura felicidade em lugares estranhos. Peças de roupa, potência de motor, diplomas, quilos perdidos, pedras em colares, papéis escritos no cartório. Mas me parece que ali havia uma felicidade tão gritante e tão evidente, que era impossível não senti-la, mesmo do outro lado da rua.
Já acabou o verão europeu. Não sei bem o que vai acontecer com a sorveteria quando os dias de Lisboa estiverem tomados pelas rajadas de vento com garoa e o termômetro mostrar 8 graus. Mas agora não quero pensar nisso. Quero só planejar os fins de tarde da próxima semana. Ainda falta o de melão, o de baunilha, o de mirtilo, o de nutella, o de limão e alguns outros. Eu e a miúda estaremos lá, dividindo um por um. Isso basta.

Traidores - Luis Fernando Verissimo


Segundo Wallerstein, a industrialização, o progresso científico e a acumulação de riqueza não só consagraram o individualismo empreendedor como criaram novas formas de servidão. E a burguesia não revelou outra pretensão a não ser a de se aristocratizar, ou voltar ao idílico mundo dos feudos, nem que sejam só sítios com cerca eletrificada contra aldeões revoltados.

Quando a Terceira Internacional concluiu que, em muitos casos, o proletariado precisava apressar a revolução burguesa, sem a qual a revolução socialista seria impossível, ainda se apegava ao mito. Confiava em que todos cumpririam a sua parte no processo inevitável, mesmo que alguns se atrasassem um pouco. A burguesia só traiu mesmo uma expectativa errada.

No Brasil, este cemitério de conceitos frustrados, tudo está atrasado, inclusive a desilusão com a burguesia. Esta ainda não fez nem a sua primeira entrada em cena, a julgar pela persistência do feudalismo nas nossas relações sociais, mas ainda se confia que ela desempenhará seu papel histórico, cedo ou tarde. Isso explica o sucesso entre nós das revoluções retóricas que não mudam nada e a proliferação de salvadores de ocasião virando a expectativa marxista de pernas para o ar e acreditando que a burguesia possa fazer a revolução proletária por ela.

Vivemos numa certa confusão de atribuições desde a nossa inédita secessão em família, quando Dom Pedro declarou a nossa independência de Portugal e do seu pai. O fato de a própria aristocracia ser obrigada a fazer o papel da burguesia no nosso ato inaugural nos acostumou mal: desde então, vivemos nesta secreta esperança de que o nosso patriciado resolva todos os nossos problemas, suicidando-se.

Aventura no centro - Fabrício Corsaletti

Romolo


Por conta de uma besteira que não vem ao caso, tive que fazer dois meses de fisioterapia. A clínica ficava na rua Galvão Bueno, perto da praça da Liberdade.
(No mesmo prédio da Flor de Fogo Kimonos, que não visitei por receio de que o estabelecimento comercial frustrasse as expectativas que seu nome criava. A não ser que na Flor de Fogo se vendessem quimonos em chamas e as atendentes usassem flores de cerejeira no cabelo.)
Ao final de cada de sessão, por volta das onze da manhã, eu aproveitava pra perambular pelo bairro. Mais de uma vez por semana passava no Kintarô pra tomar café e comer a esfirra deliciosa que dona Líria encomenda de um velho japonês. Não sem algum constrangimento, pois, com exceção da esfirra, todos os outros salgados do bar, ótimos também, são feitos por ela. Culpado, às vezes eu comia um bolovo ou uma coxinha, depois da esfirra, pra compensar.
Mas a Liberdade é meia dúzia de quarteirões, e achei que eu já estava me repetindo ao voltar sempre pra casa com um rolo de hossomaki na mochila. Decidi explorar melhor o centro, que conheço pouco e é vizinho da comunidade oriental.
Desci a Benjamin Constant como quem anda pela primeira vez numa cidade estrangeira.
Edifícios do século 19 com o térreo ocupado por lojas de xerox. Botecos com frutas (algumas de plástico) pendendo de barras acima dos balcões. O Café Girondino e o Café Martinelli. Uma doçaria portuguesa de dois andares. O Solar da Marquesa —paredes de taipa de pilão.
Uma porta verde com aldravas douradas. Um toldo de ferro art nouveau de um hotel que um dia deve ter sido lindo. A Casa do Cartucho. Cabeça de Mercúrio. Quiosques de engraxates. Uma placa em homenagem a Adoniram Barbosa e uma estátua em homenagem a Zumbi. Por toda parte, capinhas pra celular.
Tirei os olhos da paisagem e reparei nos olhos das pessoas. Anotei: “olhos são rasgos na paisagem (opaca)/ quando a gente VÊ os olhos todo o resto desaparece, inclusive os CORPOS/ olhos
entregam de bandeja (todas as emoções)/ as pessoas são os seus olhos ou o que está por trás deles, nenhuma pessoa é uma orelha”.
Foi aí que, perto do largo São Francisco, topei com uma placa sobre uma porta aberta que me deixou curioso:
M. LUZ, VIDENTE
A VERDADE É UMA HISTÓRIA
QUE VOCÊ TEM O DIREITO DE CONHECER
M. Luz: por que esse nome abreviado me soava tão familiar?
Como um ator ruim de filme B, respirei fundo, olhei pros lados, desviei de dois craqueiros que dormiam na calçada e entrei.

Romolo


Encafifei com o nome abreviado (por que “M. Luz” ressoava de forma tão agradável no meu inconsciente?), criei coragem e entrei.
Era uma sala escura, mal iluminada pelas três velas de um castiçal comprido posto ao lado de uma escada de madeira que levava ao andar superior. Na parede da escada, um grafite: uma fila de esqueletos subindo um morro que ia dar num céu em chamas. Que merda é essa?, pensei.
Achei melhor cair fora dali, mas a curiosidade não me deixou voltar atrás. Criei coragem pela segunda vez no dia (como é esquisita essa expressão, “criar coragem”) e, sem tocar no corrimão seboso, subi devagar aqueles degraus rangentes, enquanto o bochicho da rua ia se apagando nos meus ouvidos.
Quando cheguei lá em cima, pensei que estava sonhando, na medida em que todo sonho é também um pesadelo. Pelo cômodo claro e espaçoso de tacos pintados de lilás, centenas de objetos e penduricalhos indianos, ou ciganos, ou hippies de milésima geração, tinham sido acomodados de maneira mais ou menos aleatória, formando o que a mãe de um amigo meu chamava de PB, isto é, puta bagunça.
Se o leitor não gosta de listas, pode pular este parágrafo; caso contrário, eis o que lembro de ter visto: uma estátua de Buda em tamanho natural (seja lá qual tenha sido o tamanho natural de Buda), uma escultura maia (ou asteca?) de um sol-calendário, um bosque de arvorezinhas de jaspe vermelho, um bandolim sem cordas, um pôster de Osho, a capa de um LP do Genesis, caveiras de Durepox, um livro de Saussure e outro de Chomsky etc.
Sentada no centro de um tapete verde-abacate, em posição de lótus, de olhos fechados, descalça e vestindo uma bata branca, M. Luz, ou alguém que só podia ser M. Luz, meditava. Seu cabelo preto, preso num coque descuidado, brilhava como gelatina.
Me aproximei, meus sapatos me delataram, ela abriu os olhos e então soltou uma gargalhada que me fez tremer inteiro por dentro. Por um instante não pude acreditar. Mas logo não tinha mais dúvidas: M. Luz não era ninguém menos que minha amiga Mariana Luz Pereira Bastos, ou Mari Manguaça, ou ainda MM, desaparecida desde 2003, quando embarcou numa viagem mística pelo Vale Sagrado peruano.

Romolo

Depois de muitos abraços e lágrimas, Mari (Mari!) pediu pra que sentássemos no chão e eu fizesse uma cara palerma de cliente comum —seu patrão podia chegar a qualquer momento e ele não tolerava conversa mole em horário comercial.
Enquanto espalhava no tapete as cartas de tarô, minha amiga me contou em detalhes o que aconteceu com ela nos últimos 15 anos. O espaço é curto e sua saga é longa. Vou ter que pular algumas partes. Que o leitor a complete como achar melhor.
caminho de Machu Picchu, Mari foi sequestrada por um falso xamã, que a levou pra sua aldeia, onde, em regime de semiescravidão, ela ajudou o povo do lugar a construir uma ponte de palha. Dois anos depois estava no deserto do Atacama casada com uma xamã mais ou menos verdadeira com quem abriu um café chamado Mercedes Luminosa. Mais uma volta no rocambole e encontramos MM em Curaçao, solteira e sem amigos, sobretudo sem dinheiro, numa crise de identidade que se mostrou “tonificante”.
Surge então a figura de Danilo, brasileiro como ela, dono de uma Kombi fúcsia dentro da qual rodaram a América Latina e numa noite de particular felicidade geraram a filha Rosa, hoje com oito anos.
Durante todo esse tempo tentou falar com a família, mas o telefone da casa da mãe só dava ocupado, o correio estava sempre em greve e sua religião não permitia o uso de computadores.
Agora combatia na FSA (Frente pela Sobrevivência da Ararajuba). Danilo, por sua vez, militava no MTTF (Movimento dos Trabalhadores sem Trabalho Fixo) e gostava de cantar Peppino di Capri no karaokê.
Perguntei o motivo daquele disfarce de vidente. Sua resposta não poderia ter sido mais desconcertante. Disse que não era disfarce mas um bico que ela fazia pra somar ao salário de professora de Sociolinguística Variacionista, pois o aluguel na Pamplona não estava bolinho e a escola de Rosa custava os olhos da cara.
Gastamos a tarde num botequim imundo, bebendo cerveja e maldizendo a vida, na luz selvagem de um país que se destrói.

Aquarela do Brasil - Fernanda Torres

Marta Mello



Você desce a avenida das Américas com o seu filho de dez anos no carona. A lua cheia desponta na pedra da Gávea, o sol laranja no retrovisor. Você ignora os prédios feios, o horizonte de favelas, passa a mão no cabelo dele e diz: "Bonito, né?"
E a rádio toca "Aquarela do Brasil", justo ali, naquela hora, o moleque entoa os versos que aprendeu na escola, "Brasil... meu Brasil brasileiro", e o peito aperta de horror das coisas.
Seus amigos deixaram a cidade, se mandaram para o exterior. Você cogita fazer o mesmo, mas sua pátria é sua língua. E você pensa nos tiroteios, no Cabral, no Crivella e no Garotinho —e tem ganas de fechar as malas e correr para o aeroporto.
E você aguarda a próxima pesquisa e escuta a ladainha do dois pra lá, dois pra cá das margens de incerteza. E você estuda as curvas e acompanha análises, com um misto de angústia, raiva e desespero.
E você lê que o general tacanho xingou os africanos e os sul-americanos de mulambada, depois de comparar o Brasil com um cavalo saltador. E se dá conta de que já ouviu a analogia equestre na adolescência, na voz de outro milico truculento, o do prendo e arrebento, que preferia o cheiro de égua ao da população.
E você constata que a autoestima do Messias deu ao monstro um senso de humor que ele não tinha. Um senso de humor que o tornou palatável, apesar da incitação ao ódio, da menina com a mãozinha em riste, imitando um três-oitão, e da adoração confessa pelo torturador que levou duas crianças para ver a mãe ensanguentada levar choque nos porões do Dops.
E você assiste à facada quase ao vivo, e se controla para não desejar a morte do pobre do ser humano. E você vê o sujeito morfinado recontar, na UTI, o milagre que fez de um misógino homofóbico racista do baixo clero um mito da classe média escolarizada que tem pânico da Venezuela. E você pensa que se danou, porque, depois do atentado, vai ser difícil roubar-lhe a aura de Lázaro ressuscitado.
E você lê Adorno e descobre que a razão esclarecida é a mãe de Juliette, a assassina ninfomaníaca do Marquês. Você lê isso e pensa que a soberba fria do liquida tudo do Paulo Guedes tem mesmo algo de sádico, e se arrepia com a crença cega que o economista ostenta no mega-ultraliberalismo.
E você conclui que o Brasil SA se associou ao Brasil SS; e que na impossibilidade de demitir os miseráveis, melhor fuzilar em massa, com 30 tiros no peito, como sugeriu o candidato.
E você, enquanto ouve "Aquarela do Brasil" na porra do carro blindado que já te livrou de levar um tiro à queima-roupa, você olha para o seu filho e lamenta o fracasso da terceira via. E pensa que, se é para ser Haddad, ele é o que de melhor Lula tem a oferecer de poste.
E você lê a The Economist, o Guardian e o Le Monde e reza para que o mercado entenda que o triunvirato do ungido da pena de morte com o posto Ipiranga do day trade e o general maçom de cabelo graúna é um fim de linha que não tem tamanho.
E você ama Ary Barroso, e canta com seu filho o "Brasil do meu amor, terra de nosso Senhor", e tenta dizer que aqui é bom, mas não consegue. E você olha a lua cheia, iluminando os barracos da Rocinha, e tem vontade de gritar.

Que que a gente faz? - Antonio Prata

Adams Carvalho/Folhapress


Uma amiga me liga, arfante. Acabou de ser assaltada no táxi. Arma na cabeça, coisa e tal. Quando se acalma um pouco vem um estranho sentimento de gratidão, afinal podia ter sido pior, está viva, não se feriu, que sorte a filha de 11 meses não estar junto. Depois faz-se em silêncio que é pura desolação. "Que que a gente faz?", me pergunta.

Ela não se refere ao assalto, a como diminuir os índices de violência na cidade de São Paulo. A pergunta é mais ampla, a mesma que nos fazemos há alguns anos quando cai um prédio, umavereadora é assassinada, um museu pega fogo, uma bala perdida mata uma criança, uma policial de 27 anos, de folga, é assassinada pelo PCC. 
Meus filhos têm cinco e três anos. A vida deles coincide com a degringolada nacional. (A mais velha nasceu em julho de 2013. O parto ia ser num hospital na Paulista, mas no dia em que rompeu a bolsa havia uma manifestação em frente ao Masp e a médica sugeriu irmos para outra maternidade —a médica, aliás, estava na manifestação).
Tal coincidência me traz uns sentimentos meio contraditórios: estes últimos cinco anos foram dos mais tristes da história do país e dos mais felizes da minha vida. Tiro os olhos do jornal cheio de desgraças e aqui do lado, na sala, vejo uma mini-Batman com tiara luminosa de chifrinhos vermelhos puxando por uma corda um triciclo com um moleque de cueca e luvas do Homem-Aranha. (Há poucos antídotos mais potentes contra o banzo atual do que uma mini-Batman com tiara luminosa de chifrinhos vermelhos puxando um triciclo com um moleque de cueca e luvas do Homem-Aranha). Um lado meu suspira, aliviado. Outro lado se angustia: "Que que a gente faz?". 
No começo do ano, passei com a minha filha pelo estádio do Pacaembu, onde uma enorme fila de torcedores sem camisa aguardava a abertura das bilheterias. "Eles são índios, papai?". Meu radar politicamente correto imediatamente ligou o alerta laranja: "Não, eles não são índios, eles são pessoas da cidade como eu e você". "Mas eles são marrons e não usam camisa. Eles são índios". Então abaixei um pouco a guarda e constatei que de fato nós éramos brancos e eles eram pretos e pardos e provavelmente havia naquela fila mais DNA indígena do que dentro do nosso carro. Senti um gosto amargo: minha filha estava tendo uma das primeiras aulas práticas de segregação racial e social. 
Se eu quisesse mandar um sincerão, diria "Veja, a base da população é composta por pretos e pardos e a ponta por brancos, porque os brancos vieram pra cá e escravizaram os índios e trouxeram milhões de escravos negros e mesmo depois de quase 150 anos da abolição nós temos conseguido, com rigor e aplicação, manter inalterada a pirâmide". 
Sem nenhum conforto para dar à minha amiga e numa atroz falta de inspiração, respondo à sua pergunta com a mesma pergunta: "Que que a gente faz?". "Não sei", ela diz e então conta, melancólica, que anteontem a filha deu seus primeiros passos. Três.
Era pra ser a epítome do pessimismo, era pra emburacarmos de vez e nos perguntarmos que país deixaríamos para os nossos filhos, mas a notícia daqueles passos solapa meu derrotismo, é quase como um chamado genético, uma ordem inscrita há milênios nas profundezas do meu DNA: se é aqui que viverão a mini-Batman, o Homem-Aranha de cuecas e a neocaminhante, não há outra saída a não ser fazermos essa joça dar certo. 
Concordo que a premissa é meio troncha, amigo, mas estamos tão desiludidos que qualquer farrapo serve como bandeira, vai?

sábado, 29 de setembro de 2018

Meninos, eu vi - Sergio Augusto

Vi, mesmo; ninguém me contou. E não só vi a ditadura implantada no Brasil por um golpe civil-militar em 1964 como a ela sobrevivi. 
Quando um tapado em história ou algum apparatchiks do neonazismo caboclo atreve-se a negar ter havido aqui uma ditadura militar durante 21 anos, sinto-me como o sobrevivente de um campo de concentração ao ler ou ouvir dizer que o Holocausto nunca existiu, que foi uma invenção sionista, e tomo o disparate como uma afronta pessoal.
Aí me lembro de uma patética ameaça do então coronel Darcy Lázaro, ao invadir, nos albores do golpe, o câmpus da Universidade de Brasília: “Se essa história de cultura vai-nos atrapalhar a endireitar o Brasil, vamos acabar com a cultura pelos próximos 30 anos”. A cultura, mesmo duramente perseguida, sobreviveu ao coronel, cuja única glória, além do generalato conquistado, foi ter um estande de tiros na capital federal batizado com seu nome.
Sobretudo me lembro das redações pelas quais passei, dos amigos presos, sumidos, torturados e mortos, do suspense permanente (serei preso? quando?), e, com redobrado conhecimento de causa, da censura verde-oliva. Houve um período, meados da década de 1970, em que os três veículos com os quais colaborava semanalmente (Veja, Pasquim e Opinião) amargavam a mais férrea censura prévia. 
Diante das quadrúpedes metáforas como a lançada há dias pelo ex-general Mourão (“o Brasil é um cavalo que precisa de um ginete”) e as sucessivas e sempre histéricas invectivas de Bolsonaro (já propôs uma guerra civil para solucionar os problemas do País, “matar uns 30 mil, inclusive FHC”, fujimorar o Congresso para governar por decreto, etc.), como não recear que um ressentido retorno às trevas da ditadura não esteja sendo tramado por ginetes da ultradireita? Ou, melhor, da ustradireita. 
Não quero passar por tudo aquilo de novo. Abrir o Estadão e topar com versos dos Lusíadas e receitas de bolo no espaço do noticiário censurado. Abrir o Jornal do Brasil (o único JB que então existia, além do uísque) e procurar no boletim do tempo vestígios das notícias vetadas no resto do jornal. 
Minha primeira experiência com a censura foi na Editora Bloch, quase ao final da década de 1960, antes do AI-5. Os catões destacados para a tarefa de cortar e eliminar textos da revista Fatos & Fotos ainda eram civis, meros burocratas deslocados de outros afazeres policiais. Gente miúda, atormentada pela paranoia de ser punida caso deixasse passar algo considerado “inconveniente” pela chefia. Na dúvida, metiam a caneta, rasurando até as mais inocentes linhas de uma reportagem ou artigo, riscando fotos e desenhos.
Vingamo-nos da humilhação em alto estilo. Aos textos e ilustrações da edição em preparo e à espera do imprimatur ditatorial, acrescentávamos, de sacanagem, pilhas de originais publicados semanas e meses antes da chegada dos censores à redação. Nossa intenção era levá-los à exaustão de tanto ler e fazer consultas inúteis. Conseguimos. Um dia, aqueles involuntários Sísifos da repressão foram embora – seguramente de saco cheio.
A censura aos dois alternativos, Pasquim e Opinião, foi mais complicada, sistemática e duradoura. A do Pasquim veio acompanhada de um atentado terrorista à sede do jornal, na madrugada de 12 de março de 1970, de autoria “desconhecida” – e incompetente execução, pois na hora h, ainda bem, a bomba deu chabu. Opinião ainda nem existia quando os gaiatos pasquinenses enfrentaram seu primeiro censor; no caso, uma censora, dona Marina, cuja fraqueza por uma birita Jaguar, diretor do jornal, explorou com extrema habilidade. 
Tudo ia bem até a semana em que dona Marina relaxou além da conta e um cartum que não podia ter chegado às bancas (com d. Pedro I, às margens do Ipiranga, gritando “Eu quero mocotó!”) chegou – e ela teve de retornar às suas funções pregressas, embora sem a mesma presteza com que a edição foi retirada das bancas pela polícia.
Aí entrou na vida do jornal um censor graduado: o general da reserva Juarez Paz Pino. Àquela altura, vale lembrar, a maior parte da redação do Pasquim já passara dois meses na cadeia da Vila Militar, sem acusação formal alguma. 
O general Juarez não era um milico qualquer, mas o pai de Helô Pinheiro, a garota de Ipanema que inspirou Tom & Vinicius. Vivia na praia, a jogar baralho com ex-colegas de caserna, e era lá que habitualmente fiscalizava os retardatários artigos de Paulo Francis, devolvidos com seu jamegão e alguns inevitáveis grãos de areia. Quando tinha dúvidas (e como as tinha o general!), socorria-se, esclarecia-se e pedia desculpas “por sua ignorância” a Jaguar e Ivan Lessa.
Seu vacilo fatal foi aprovar uma entrevista da antropóloga negra americana Angela Gillian, que não titubeou em afirmar que no Brasil existia racismo. Como a nossa (hipócrita) “democracia racial” era dos muitos tabus do regime militar, o general Juarez foi afastado do cargo, e a censura desterrada para Brasília, para o Centro de Informação do Exército. 
Aquilo era um buraco negro. Nenhum contato pessoal. Nenhuma negociação possível. Houve semanas em que o material liberado mal dava para fechar uma edição. Qualquer referência a negros era vetada incontinente. Nem uma nota corriqueira sobre um show em homenagem a Pixinguinha passou pelo crivo do Ciex.
A censura ao Opinião seguia o mesmo esquema, até o estafeta, creio, era o mesmo, custeado pelos dois semanários. Cortavam com tamanha fúria e indiscriminação que, de uma feita, vetaram na íntegra a coluna de xadrez, que era traduzida do jornal britânico The Guardian. Se ainda fosse o general Juarez, podíamos ter-lhe explicado, com jeito, que o rei referido na abertura da coluna era uma peça do jogo, não uma alusão malévola ao general Geisel, o ditador de plantão.
Não, não quero passar por tudo aquilo de novo não. 

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

Imagina eu num pau de arara? - Antonio Prata

Adams Carvalho

Caro (e)leitor, cara (e)leitora, se você gosta das minhas crônicas e pretende votar no Bolsonaro, “spoiler alert”: no caso de uma ditadura como a que já foi mais de uma vez aventada pelo capitão e seu escudeiro Mourão, eu sou o típico sujeito que vai pro pau de arara ou “desaparece”. Como é extremamente difícil digitar de cabeça pra baixo e ter boas sacadas “desaparecido”, talvez seja de bom tom, enquanto ainda me encontro com os pés cravados no chão e sem balas cravadas na testa, sugerir que mudem de candidato —ou de cronista.
Caso optem pela segunda opção, lá por 2020, 2021, quando o bicho estiver pegando, quando as atitudes autoritárias do governo houverem gerado protestos e os protestos derem a desculpa para revogarem os direitos individuais em nome da “restauração da ordem” contra as “forças da anarquia” —esse “Vale a Pena Ver de Novo” que reprisamos a cada três ou quatro décadas em nossa “democracinha”—, quando, enfim, eu, digamos, der uma morrida, vocês não perderão um colunista.
O (e)leitor pode achar que exagero. Também acho absurdo, às vezes, pensar que eu poderia ser assassinado por uma ditadura em pleno século 21, no Brasil, mas aí ligo a TV, abro o jornal, atolo no Facebook e vejo as declarações do candidato. Lá está o Bolsonaro dizendo que esse país só vai dar certo quando fizermos “o trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil”. Se ele falasse em matar 3.000 eu me calaria, humildemente, ciente de que tem gente muito mais importante para ser assassinada antes de mim. Mas pra uma baciada de 30 mil sem dúvida eu me qualifico.
“Ah”, dirá o leitor, “é entrevista antiga, de 1999. O Bolsonaro já disse que mudou de ideia”. Bom, mês passado o candidato gritou num comício, usando um tripé de câmera como se fosse uma arma, “vamos fuzilar a petralhada aqui do Acre!”. Eu não sou petista. Sou, como escrevi anos atrás, “meio intelectual, meio de esquerda”, hoje com inegável viés “meio coxinha, meio burguês”, mas neste tipo de noite que se aproxima todos os gatos são rubros e até explicar que focinho de porco não é tomada um fio desencapado já pode estar ligando meu intestino à hidrelétrica de Itaipu.
“Ah”, dirá o leitor, “o ‘Mito’ não fala sério! É brincadeira!”. É? Em julho, no Roda Viva, Bolsonaro declarou que seu livro de cabeceira é “Verdade Sufocada”, de autoria do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o chefe da tortura no DOI-Codi. Em 1975, Vladimir Herzog, um jornalista sem qualquer ligação com a luta armada, um cara assim como eu, pai de um filho de nove e outro de sete, se apresentou voluntariamente ao DOI-Codi para “esclarecimentos” e foi “suicidado” na base da porrada e do eletrochoque.
Não acredito que você, caro (e)leitor, cara (e)leitora que pretende votar no Bolsonaro, seja a favor dessa barbárie. Acredito que esteja desiludido, cansado, com raiva e coloque os abusos do passado na conta da Guerra Fria. Mas não estamos falando do passado. Estamos falando de hoje. De amanhã. Imagina eu, de cabeça pra baixo, nu, tomando choque, amanhã. Estranho, não é?
Você é de direita? Repudia o PT? Vote no Amoêdo. No Alckmin. No Meirelles. No Ciro. Na Marina. Em nenhum desses casos eu morro no final. Desculpa se pareço um pouco autocentrado, mas é que esta é a única vida que eu tenho; gostaria bastante de ver meus filhos crescerem e, se não for pedir muito, evitar choques em minhas partes pudendas. É um tanto incômodo, dizem os que sobreviveram ao ídolo do capitão.

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

A distância - Luis Fernando Verissimo

Li que implantaram um troço no cérebro de um macaco e ele conseguiu mexer outro troço com o pensamento. Um eletrodo acionado por neurônios, ou coisa parecida, permitiu ao macaco deslocar um objeto a alguns metros de distância só com a sua vontade. De certa maneira, isso é o fim de um ciclo que começou na primeira vez em que um hominídeo pensou na possibilidade de afetar algo distante dele sem sair do lugar. Pode-se resumir o desenvolvimento da humanidade e da sua ciência no cumprimento dessa vontade de não precisar ir lá. A penúltima fase do processo foi o controle remoto. A última, lógica, fase será a da telepatia. Hoje o macaco, amanhã nós todos.
Sempre defendi a tese de que foi a preguiça que trouxe a civilização. O que foi a invenção da roda senão o prenúncio da charrete e um triunfo do comodismo? Fomos a primeira espécie a criar um jeito de não ir, mas ser levada. A razão do hominídeo para deflagrar o processo que resultou no controle remoto foi prática, a de atingir uma presa sem se arriscar a ser mordido, ou almoçar sem ser almoçado. O primeiro lance do longo processo que terminou com o implante no cérebro foi a pedra arremessada. Depois vieram a lança, o estilingue, o arco e a flecha, a catapulta, as armas de fogo, o foguete intercontinental, o drone – todos engenhos para evitar chegar perto.
A distância sempre foi um inimigo natural do Homem, ou pelo menos do Homem Preguiçoso. Vencê-la foi o nosso grande desafio intelectual, e agora se abre a possibilidade de subjugá-la só com o intelecto, desprezando os instrumentos que, da pedra à internet, nos ajudaram até aqui. Estamos simbolicamente de volta à savana primeva, pensando em como empurrar aquele mamute para dentro do fosso sem precisar ir lá, mas agora o pensamento basta. A vontade se realizará sozinha, sem as mãos, sem mais nada. A preguiça cumpriu sua missão histórica.
Agora, só precisamos encontrar um jeito de pedir ao macaco que mexa alguma coisa por nós.

Exílio - Luis Fernando Verissimo

Não estou sugerido nada, mas por pura coincidência tenho relido trechos do livro de Edward W. Said intitulado Reflections on Exile, em que o crítico e ensaísta reflete sobre vários tipos de desterro.
Said ficou famoso com o livro Orientalismo, sobre os clichês e lugares-comuns do pensamento europeu a respeito do Oriente Médio, e notório por ser o único não judeu – ele era palestino – da elite intelectual de Nova York, o que não impediu que fosse respeitado mesmo por quem não concordava com suas posições políticas.
Nas suas reflexões sobre o exílio, Said se concentra nos efeitos do expatriamento, se é que existe a palavra, no mundo literário, começando pelo protoexilado Dante, banido de Florença, e incluindo o autoexilado de Dublin James Joyce, o longe da Irlanda Beckett, o longe da Rússia Nabokov, os longes dos Estados Unidos Hemingway Fitzgerald, todos os corridos de suas terras pelas ondas fascista e comunista, e o pai de todos os transplantados, Joseph Conrad, o polonês com o melhor texto em inglês que se conhece. 
Fora do mundo literário o exílio perde toda a conotação intelectual ou romântica.
Sobra a realidade trágica das migrações de multidões fugindo da fome e da guerra.
O crítico George Steiner, citado por Said, chegou a propor que boa parte da literatura Ocidental moderna é “extraterritorial”, uma literatura feita por exilados ou sobre exilados, simbolizando a era dos refugiados que começou no fim do século 19, nos estertores do colonialismo, e desde então só ficou mais terrível.
Nas categorias de exilados arrolados por Said, fora as vítimas do nazismo e do stalinismo, todos se exilaram por iniciativa própria, mesmo que a iniciativa fosse incentivada. Como no caso do Brasil depois do golpe de 64, quando recebemos a ordem de amar o Brasil ou deixá-lo. Amar o Brasil, no caso era amar a ditadura. 
Você eu não sei, mas eu estou fazendo planos para qualquer eventualidade. O mais irrealizável e por isso mesmo mais atraente é desenferrujar meu saxofone e ir tocar no metro de Paris, para garantir o croissant das crianças. 

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

O resgate do bilhetinho - Daniel Furlan

Luciano Salles


Não há mensagem mais interessante do que a que não foi escrita para a gente. 
Especialmente na 7ª série, quando misteriosos pedaços de papel iam e vinham nas mãos das alunas ao meu lado, em fluxo clandestino, alheio à aula. Seria sobre algo escandaloso? Seria sobre mim? Faria sentido, porque eu nunca recebia nenhum. Talvez fossem mesmo sobre mim.
Durante meses observei em silêncio essa comunicação clandestina, aguardando um desleixo, mas os bilhetes eram destruídos imediatamente após serem lidos. 
Meninas da 7ª série são profissionais da área dos bilhetinhos. Mas um dia alguém cometeria um erro.
O sinal do recreio tocou em meio a uma troca de bilhetinhos. No meio da confusão, a receptora se sentiu segura o suficiente para simplesmente amassá-lo e jogá-lo na lixeira da sala. Ninguém estaria observando, afinal cada um estaria cuidado de seus assuntos. Mas um menino de 13 anos não tem assuntos. 
Ele tem sim o tempo livre e o desinteresse no currículo escolar necessários para observar toda essa movimentação e resgatar o bilhete da lata de lixo.
Mas nem todos desceram e eu não poderia simplesmente me expor revirando a lixeira. Arranquei várias páginas do meu livro e fiz uma grande bola de papel. O plano era arremessá-la na lixeira e retirá-la junto com o bilhetinho.
Foi o que eu fiz. E lá no fundo estava o bilhete, mas falhei em retirá-lo sem ter que revirar o lixo, chamando atenção.
Tive que fazer um novo arremesso e isso se repetiu até o sinal do fim do recreio. Na última tentativa, respirei fundo e enfiei o braço inteiro no lixo, resgatando o bilhete, junto com uma série de detritos.
Voltei para a minha mesa, discretamente coloquei o papel na calça e fiz o que fazia melhor: esperei o dia acabar. 
Mas o sinal da saída não foi suficiente para uma leitura segura. No ponto de ônibus, até pensei, mas a presença de outros estudantes me fez esperar. Nem o ônibus quase vazio me deu tranquilidade.
Ainda na porta de casa, saquei o bilhete com resquícios de lixo. Eram muitas dobras no minúsculo pedaço de papel escrito com letras na cor roxa e aroma de chiclete rosa:
"De Viviane
Para Renata
No recreio vamos conversar? Não vamos conversar com a Taís, ela é muito chata."
Era isso.

Primavera


Mafalda - Quino
Primavera nos dentes - Secos e Molhados

João Ricardo-joão Apolinário

Quem tem consciência pra se ter coragem Quem tem a força de saber que existe E no centro da própria engrenagem Inventa a contra mola que resiste Quem não vacila mesmo derrotado Quem já perdido nunca desespera E envolto em tempestade decepado Entre os dentes segura a primavera





Karina Buhr interpreta "Primavera nos Dentes"



Primavera - Cecília Meireles


A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera que chega.

Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a alegria de nascer, no espírito das flores.

Há bosques de rododendros que eram verdes e já estão todos cor-de-rosa, como os palácios de Jeipur. Vozes novas de passarinhos começam a ensaiar as árias tradicionais de sua nação. Pequenas borboletas brancas e amarelas apressam-se pelos ares, — e certamente conversam: mas tão baixinho que não se entende.

Oh! Primaveras distantes, depois do branco e deserto inverno, quando as amendoeiras inauguram suas flores, alegremente, e todos os olhos procuram pelo céu o primeiro raio de sol.

Esta é uma primavera diferente, com as matas intactas, as árvores cobertas de folhas, — e só os poetas, entre os humanos, sabem que uma Deusa chega, coroada de flores, com vestidos bordados de flores, com os braços carregados de flores, e vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz.

Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação.

Algum dia, talvez, nada mais vai ser assim. Algum dia, talvez, os homens terão a primavera que desejarem, no momento que quiserem, independentes deste ritmo, desta ordem, deste movimento do céu. E os pássaros serão outros, com outros cantos e outros hábitos, — e os ouvidos que por acaso os ouvirem não terão nada mais com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou.

Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos atenção ao sussurro dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul. Escutemos estas vozes que andam nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda conservam seus sentimentos antigos: lentamente estão sendo tecidos os manacás roxos e brancos; e a eufórbia se vai tornando pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra. Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo enrolados em redor do perfume. E flores agrestes acordam com suas roupas de chita multicor.

Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser lançado ao vento, — por fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade. Saudemos a primavera, dona da vida — e efêmera.


Texto extraído do livro "Cecília Meireles - Obra em Prosa - Volume 1", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1998, pág. 366.

Mafalda - Quino


Umas e Outras - Primaverando



Novos Baianos - De Vera (1969)





Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,

As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.

Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.

Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.

Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.

[PESSOA, Fernando. Ficções do Interlúdio: poemas completos de Alberto Caeiro. In Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1977.]


Quando vier a primavera, Alberto Caeiro - Pedro Lamares




Quando tornar a vir a Primavera - Alberto Caeiro

Quando tornar a vir a Primavera
Talvez já não me encontre no mundo.
Gostava agora de poder julgar que a Primavera é gente
Para poder supor que ela choraria,
Vendo que perdera o seu único amigo.
Mas a Primavera nem sequer é uma coisa
É uma maneira de dizer.
Nem mesmo as flores tornam, ou as folhas verdes.
Há novas flores, novas folhas verdes.
Há outros dias suaves.
Nada torna, nada se repete, porque tudo é real.

quando tornar a vir a primavera 


PRIMAVERA -  Olavo Bilac

Coro das quatro estações:
Cantemos! Fora a tristeza !

Saudemos a luz do dia:

Saudemos a Natureza !

Já nos voltou a alegria !

A Primavera:

Eu sou a Primavera !

Está limpa a atmosfera,

E o sol brilha sem véu !

Todos os passarinhos

Já saem dos seus ninhos,

Voando pelo céu.

Há risos na cascata,

Nos lagos e na mata,

Na serra e no vergel:

Andam os beija-flores

Pousando sobre as flores,

Sugando-lhes o mel.

Dou vida aos verdes ramos,

Dou voz aos gaturamos

E paz aos corações;

Cubro as paredes de hera;

Eu sou a Primavera,

A flor das estações !

Coro das quatro estações:

Cantemos! Fora a tristeza !

Saudemos a luz do dia:

Saudemos a Natureza !

Já nos voltou a alegria !


Sol de Primavera - Beto Guedes




Beto Guedes - Só Primavera



Armandinho - Alexandre Beck



Canção da Primavera - Mário Quintana

(Para Érico Veríssimo)



Primavera cruza o rio
Cruza o sonho que tu sonhas.
Na cidade adormecida
Primavera vem chegando.

Catavento enloqueceu,
Ficou girando, girando.
Em torno do catavento
Dancemos todos em bando.

Dancemos todos, dancemos,
Amadas, Mortos, Amigos,
Dancemos todos até

Não mais saber-se o motivo…
Até que as paineiras tenham
Por sobre os muros florido!

Canção da Primavera - Mario Quintana CD Crianceiras




Armandinho - Alexandre Beck






Primavera (Carlos Lyra - Vinicius de Moraes)

O meu amor sozinho,
É assim como um jardim sem flor,
Só queria poder ir dizer a ela,
Como é triste se sentir saudade.

É que eu gosto tanto dela,
Que é capaz dela gostar de mim,
Acontece que eu estou mais longe dela,
Do que a estrela a reluzir na tarde.

Estrela, eu lhe diria,
Desce à terra, o amor existe,
E a poesia só espera ver nascer a primavera,
para não morrer,
Não há amor sozinho,
É juntinho que ele fica bom,
Eu queria dar-lhe todo o meu carinho,
Eu queria ter felicidade.

É que o meu amor é tanto,
Um encanto que não tem mais fim,
No entanto ela não sabe que isso existe,
É tão triste se sentir saudade.

Amor,eu lhe direi,
Amor que eu tanto procurei,
Ah! quem me dera eu pudesse ser,
A tua primavera e depois morrer

Primavera - Joyce

Mafalda - Quino






Recado de Primavera – Rubem Braga

Meu caro Vinicius de Moraes:
          Escrevo-lhe aqui de Ipanema para lhe dar uma notícia grave: A Primavera chegou. Você partiu antes. É a primeira Primavera, de 1913 para cá, sem a sua participação. Seu nome virou placa de rua; e nessa rua, que tem seu nome na placa, vi ontem três garotas de Ipanema que usavam minissaias. Parece que a moda voltou nesta Primavera _______ acho que você aprovaria. O mar anda virado; houve uma lestada muito forte, depois veio um sudoeste com chuva e frio. E daqui de minha casa vejo uma vaga de espuma galgar o costão sul da ilha de Palmas. São violências primaveris.
          O sinal mais humilde da chegada da Primavera vi aqui junto da minha varanda. Um tico-tico com uma folhinha seca de capim no bico. Ele está fazendo ninho numa touceira de samambaia, debaixo da pitangueira. Pouco depois vi que se aproximava, muito matreiro, um pássaro-preto, desses que chama de chopim. Não trazia nada no bico; vinha apenas fiscalizar, saber se o outro já havia arrumado o ninho para ele pôr seus ovos.

          Isto é uma história tão antiga que parece que só podia acontecer lá no fundo da roça, talvez no tempo do Império. Pois está acontecendo aqui em Ipanema, em minha casa, poeta. Acontecendo como a Primavera. Estive em Blumenau, onde há moitas de azaléias e manacás em flor; e em cada mocinha loira, uma esperança de Vera Fischer. Agora vou ao Maranhão, reino de Ferreira Gullar, cuja poesia você tanto amava, e que fez 50 anos. O tempo vai passando, poeta. Chega a Primavera nesta Ipanema, toda cheia de sua música e de seus versos. Eu ainda vou ficando um pouco por aqui ______a vigiar, em seu nome, as ondas, os tico-ticos e as moças em flor. Adeus.


Sá e Guarabyra - Coração de Maçã



Mafalda - Quino



Ceumar - Flor Amorosa (Joaquim Callado / Catulo da Paixão Cearense)


Beto



PIRATAS DO TIETÊ   -   LAERTE


Samba da Rosa  - Vinicius de Moraes & Toquinho


Rosa prá se ver, Prá se admirar
Rosa prá crescer, Rosa prá brotar
Rosa prá viver, Rosa prá se amar
Rosa prá colher, E despetalar...

Rosa prá dormir, Rosa prá acordar
Rosa prá sorrir, Rosa prá chorar
Rosa prá partir, Rosa prá ficar
E se ter mais uma Rosa mulher...

É primavera
É a rosa em botão
Ai! Quem me dera!
Uma rosa no coração...

Rosa prá se ver, Prá se admirar
Rosa prá crescer, Rosa prá brotar
Rosa prá viver, Rosa prá se amar
Rosa prá colher, E despetalar...

Rosa prá dormir, Rosa prá acordar
Rosa prá sorrir, Rosa prá chorar
Rosa prá partir, Rosa prá ficar
E se ter mais uma Rosa mulher...

É primavera
É a rosa em botão
Ai! Quem me dera!
Uma rosa no coração...

Rosa prá se ver, Prá se admirar
Rosa prá crescer, Rosa prá brotar
Rosa prá viver, Rosa prá se amar
Rosa prá colher, E despetalar...

Rosa prá dormir, Rosa prá acordar
Rosa prá sorrir, Rosa prá chorar
Rosa prá partir, Rosa prá ficar
E se ter mais uma Rosa mulher...

E se ter mais
Uma Rosa mulher...(2x)

Vinicius de Moraes, Marilia Medalha e Toquinho - Samba da rosa




Primavera - Cassiano / Silvio Rochael
  
Quando o inverno chegar
Eu quero estar junto a ti
Pode o outono voltar
Eu quero estar junto a ti

Porque (é primavera)
Te amo (é primavera)
Te amo, meu amor

Trago esta rosa (para te dar)
Trago esta rosa (para te dar)
Trago esta rosa (para te dar)

Meu amor
Hoje o céu está tão lindo (vai chuva)
Hoje o céu está tão lindo (vai chuva)

Hoje o céu está tão lindo (vai chuva)
Hoje o céu está tão lindo (vai chuva)


Primavera - Tim Maia



Como Se Fosse a Primavera - Chico Buarque
  
De que calada maneira
Você chega assim sorrindo
Como se fosse a primavera
Eu morrendo
E de que modo sutil
Me derramou na camisa
Todas as flores de abril

Quem lhe disse que eu era
Riso sempre e nunca pranto?
Como se fosse a primavera
Não sou tanto
No entanto, que espiritual
Você me dar uma rosa
De seu rosal principal

De que calada maneira
Você chega assim sorrindo
Como se fosse a primavera
Eu morrendo

Eu morrendo
   

Chico Buarque - Como Se Fosse A Primavera


Recruta Zero - Mort Walker



Leminski

inverno
primavera
poeta é
quem se considera

Laranja Freak - Alérgico a Flores



Legião Urbana - Perfeição




Primavera, NY - Antonio Prata


Para dar um curso, vim passar um mês fora do Brasil, num lugar incrível ao qual eu nunca tinha vindo: chama-se primavera. Faz fronteira ao Sul com o inverno, ao Norte com o verão, a Leste com o East River e a Oeste com o Rio Hudson. Viajando por oito meses, tanto para cima quanto para baixo, é possível visitar o outono.
“Você vai adorar vir pra cá em abril”, havia dito a professora que me contratou. “A grama dos parques fica verdinha, há flores por todo lado, depois de vários meses trancadas em casa as pessoas saem pra rua, há gente dia e noite correndo e andando de bicicleta na beira do rio, nos fins de semana os restaurantes botam mesas nas calçadas, os brunchs vão até as três da tarde com mimosas e cervejas artesanais transbordando de lúpulo fresco”.
Ao chegar, achei que tivesse sido enganado. Fui recebido por cinco graus Celsius, chuva e um vento que vinha direto do Alasca. Por duas semanas, vivi entre árvores secas e canteiros áridos; tristes retângulos de terra de onde brotavam apenas esporádicas bitucas de cigarro. Nesta terça-feira, no entanto, saímos do nosso apartamento e demos de cara com duas dúzias de tulipas amarelas.
Achei que o zelador tivesse comprado as flores e plantado naquela manhã, na jardineira do prédio, mas bastou andarmos pela rua para perceber que era geral: ou o zelador era o The Flash, capaz de cuidar de todos os canteiros de Manhattan antes do meio-dia, ou havíamos realmente chegado à primavera. Desde então, as pessoas correm e pedalam na beira do rio, os brunchs vão até as três da tarde, o aroma do lúpulo nos copos de cerveja atravessa o Rio Hudson e chega até Nova Jersey.
Não sei se estou mais impressionado com os efeitos da primavera ou com essa experiência raríssima na vida de um brasileiro: a mudança de estação.
Como vocês bem sabem, no Brasil não há estações do ano. Há, no máximo, verão e inverno, mas convenhamos, mesmo eles são conceitos tão frágeis quanto a meritocracia e a proibição do caixa 2. Dá pra ir à praia em julho. Dá pra usar cachecol em janeiro. Dá pra chegar a CEO apenas porque se é parente do dono e a maior empreiteira do país tinha um departamento inteiro só pra “patrocinar” campanhas políticas.
Comparando o rigor das estações do ano, aqui, com a esculhambação meteorológica, aí, fica difícil não cair no mais raso determinismo geográfico. Como se a certeza de que todo ano, depois do inverno, virão o sol e as flores incutisse nas pessoas uma espécie de senso natural de justiça, enquanto entre nós uma semana fria em janeiro e um dia de calor em julho reforçassem a tese de que no nosso país nada funciona: se nem o calendário respeita as regras, por que nós haveríamos de respeitá-las?

Expus minha hipótese a um americano e ele disse que aceitaria de bom grado mais bagunça se pudesse se livrar dos quatro meses de inverno. “Felizes são vocês, que têm 12 meses de primavera”. Pensei em explicar que, há uns anos, a sensação térmica está mais pra outono, mas não queria emburacar no pessimismo. Apenas sorri, concordei e, à beira do rio, entre orquídeas e tulipas, pedimos mais dois copos desta bela filha da primavera, a cerveja, a flor engarrafada.


Delicatessen - Setembro


Vanusa - Manhãs de Setembro



Ipês amarelos sabem que sobreviver em São Paulo exige resiliência - Drauzio Varella



Os ipês amarelos estão em festa na cidade. Na secura do inverno, eles se despem das folhas para poupar energia. Fingem-se de mortos, até nos surpreender com o desabrochar de uma profusão de flores, com pétalas que se juntam em forma de cálices delicados que ao despencar dos galhos, rodopiam em espiral, para tecer um tapete amarelo que forra o asfalto e a calçada, ao redor do tronco.

 

Há de todos os tamanhos. Alguns são crianças que aos dois ou três anos já medem três metros, idade suficiente para criar as primeiras flores, ainda esparsas, distantes umas das outras. Outros, em compensação, são árvores majestosas de tronco rijo, que atingem 20 ou 30 metros de altura, com galhos emaranhados em copas de cinco ou seis metros de diâmetro, nas quais expõem um buquê amarelo visível a quilômetros de distância.

 

Senhores do que restou da mata atlântica, conscientes de que viver em São Paulo exige resiliência, sobrevivem em qualquer canto: na calma dos bairros, nos jardins das casas, nos parques, na periferia, no centro e no trânsito das grandes avenidas.

 

Um deles, plantado no canteiro que separa as duas pistas da rua da Consolação, junto ao cemitério do mesmo nome construído no terreno doado pela Marquesa de Santos, é um escândalo florido.

 

Ergue-se altaneiro sobre um corredor de ônibus que trafegam nos dois sentidos, alheio à fuligem projetada contra seu corpo, dia e noite. Ele retribui com um arranjo floral que encanta os olhos dos motoristas, a agressão perpetrada por eles.

 

A beleza é efêmera, no entanto: em uma semana as flores serão varridas das calçadas e esmagadas pelos pneus que passam sem vê-las.

 

No processo de seleção natural, levaram vantagem evolutiva os ipês mais floridos, capazes de atrair mais insetos para a polinização, processo essencial para a formação das vagens compridas que protegem as sementes aveludadas, capazes de viajar ao sabor do vento para perpetuar a espécie.

Como a ciência não é a única forma de entender o mundo, conta a lenda que Deus um dia reuniu as árvores para perguntar em que estação do ano gostariam de florescer. Quase todas escolheram a primavera ou o verão, algumas preferiram o outono.

 

O Criador disse, então, que a Terra não podia passar o inverno na tristeza desflorida. O ipê se ofereceu como voluntário. Para recompensá-lo, Ele lhe deu caules fibrosos, longevidade, resistência ao frio e à seca e flores multicoloridas: roxas, rosadas, brancas e amarelas, de tonalidades diversas.

 

A São Paulo da minha infância era cinzenta. Quem pretendesse descansar a vista num verde, precisava ir aos limites da zona urbana. A primeira providência ao abrir uma rua nova era cortar todas as árvores. As únicas cultivadas eram as frutíferas, nos quintais: goiabeiras, jabuticabeiras, mamoeiros, pitangueiras e ameixeiras que nos obrigavam a pular o muro das casas, para colhê-las assim que ameaçavam amadurecer.

 

A partir dos anos 1950, a cidade começou a ser arborizada, de início timidamente; de forma sistemática

nas últimas décadas.

 

Hoje, entre outras, temos tipuanas de troncos enormes, com copas que chegam à calçada oposta e espalham milhares de flores amarelas miúdas pelo chão; sibipirunas que dão flores empoleiradas no topo das copas, como se fossem canários pousados; jacarandás mimosos de flores roxas; paus-ferro de troncos brancos, muito altos; quaresmeiras; figueiras de folhagem exuberante; e jerivás, palmeiras com cachos de coquinhos alaranjados que atraem pássaros e o zumbido das abelhas.

 

São Paulo está longe de ser arborizada. A cidade que cresceu como um polvo com tentáculos, que invadiram e devastaram as matas que a circundaram nos tempos da garoa, ainda tem bairros periféricos e favelas com ruas tão cinzentas quanto as do Brás de quando nasci.

 

A consciência de que o verde e as flores a tornam mais humana, entretanto, ficou clara até para os paulistas que andam para lá e para cá ensimesmados, com os olhos no trânsito, nas calçadas esburacadas e nos transeuntes sem se dar conta da existência das árvores.

 

Para o ipê da rua da Consolação nossa apatia distraída não faz a menor diferença. Se vier uma epidemia capaz de varrer a humanidade da face da Terra, no inverno seguinte ele estará lá, frondoso, abarrotado de flores amarelas que o vento irá derrubar.

 






Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...