sábado, 29 de setembro de 2018

Meninos, eu vi - Sergio Augusto

Vi, mesmo; ninguém me contou. E não só vi a ditadura implantada no Brasil por um golpe civil-militar em 1964 como a ela sobrevivi. 
Quando um tapado em história ou algum apparatchiks do neonazismo caboclo atreve-se a negar ter havido aqui uma ditadura militar durante 21 anos, sinto-me como o sobrevivente de um campo de concentração ao ler ou ouvir dizer que o Holocausto nunca existiu, que foi uma invenção sionista, e tomo o disparate como uma afronta pessoal.
Aí me lembro de uma patética ameaça do então coronel Darcy Lázaro, ao invadir, nos albores do golpe, o câmpus da Universidade de Brasília: “Se essa história de cultura vai-nos atrapalhar a endireitar o Brasil, vamos acabar com a cultura pelos próximos 30 anos”. A cultura, mesmo duramente perseguida, sobreviveu ao coronel, cuja única glória, além do generalato conquistado, foi ter um estande de tiros na capital federal batizado com seu nome.
Sobretudo me lembro das redações pelas quais passei, dos amigos presos, sumidos, torturados e mortos, do suspense permanente (serei preso? quando?), e, com redobrado conhecimento de causa, da censura verde-oliva. Houve um período, meados da década de 1970, em que os três veículos com os quais colaborava semanalmente (Veja, Pasquim e Opinião) amargavam a mais férrea censura prévia. 
Diante das quadrúpedes metáforas como a lançada há dias pelo ex-general Mourão (“o Brasil é um cavalo que precisa de um ginete”) e as sucessivas e sempre histéricas invectivas de Bolsonaro (já propôs uma guerra civil para solucionar os problemas do País, “matar uns 30 mil, inclusive FHC”, fujimorar o Congresso para governar por decreto, etc.), como não recear que um ressentido retorno às trevas da ditadura não esteja sendo tramado por ginetes da ultradireita? Ou, melhor, da ustradireita. 
Não quero passar por tudo aquilo de novo. Abrir o Estadão e topar com versos dos Lusíadas e receitas de bolo no espaço do noticiário censurado. Abrir o Jornal do Brasil (o único JB que então existia, além do uísque) e procurar no boletim do tempo vestígios das notícias vetadas no resto do jornal. 
Minha primeira experiência com a censura foi na Editora Bloch, quase ao final da década de 1960, antes do AI-5. Os catões destacados para a tarefa de cortar e eliminar textos da revista Fatos & Fotos ainda eram civis, meros burocratas deslocados de outros afazeres policiais. Gente miúda, atormentada pela paranoia de ser punida caso deixasse passar algo considerado “inconveniente” pela chefia. Na dúvida, metiam a caneta, rasurando até as mais inocentes linhas de uma reportagem ou artigo, riscando fotos e desenhos.
Vingamo-nos da humilhação em alto estilo. Aos textos e ilustrações da edição em preparo e à espera do imprimatur ditatorial, acrescentávamos, de sacanagem, pilhas de originais publicados semanas e meses antes da chegada dos censores à redação. Nossa intenção era levá-los à exaustão de tanto ler e fazer consultas inúteis. Conseguimos. Um dia, aqueles involuntários Sísifos da repressão foram embora – seguramente de saco cheio.
A censura aos dois alternativos, Pasquim e Opinião, foi mais complicada, sistemática e duradoura. A do Pasquim veio acompanhada de um atentado terrorista à sede do jornal, na madrugada de 12 de março de 1970, de autoria “desconhecida” – e incompetente execução, pois na hora h, ainda bem, a bomba deu chabu. Opinião ainda nem existia quando os gaiatos pasquinenses enfrentaram seu primeiro censor; no caso, uma censora, dona Marina, cuja fraqueza por uma birita Jaguar, diretor do jornal, explorou com extrema habilidade. 
Tudo ia bem até a semana em que dona Marina relaxou além da conta e um cartum que não podia ter chegado às bancas (com d. Pedro I, às margens do Ipiranga, gritando “Eu quero mocotó!”) chegou – e ela teve de retornar às suas funções pregressas, embora sem a mesma presteza com que a edição foi retirada das bancas pela polícia.
Aí entrou na vida do jornal um censor graduado: o general da reserva Juarez Paz Pino. Àquela altura, vale lembrar, a maior parte da redação do Pasquim já passara dois meses na cadeia da Vila Militar, sem acusação formal alguma. 
O general Juarez não era um milico qualquer, mas o pai de Helô Pinheiro, a garota de Ipanema que inspirou Tom & Vinicius. Vivia na praia, a jogar baralho com ex-colegas de caserna, e era lá que habitualmente fiscalizava os retardatários artigos de Paulo Francis, devolvidos com seu jamegão e alguns inevitáveis grãos de areia. Quando tinha dúvidas (e como as tinha o general!), socorria-se, esclarecia-se e pedia desculpas “por sua ignorância” a Jaguar e Ivan Lessa.
Seu vacilo fatal foi aprovar uma entrevista da antropóloga negra americana Angela Gillian, que não titubeou em afirmar que no Brasil existia racismo. Como a nossa (hipócrita) “democracia racial” era dos muitos tabus do regime militar, o general Juarez foi afastado do cargo, e a censura desterrada para Brasília, para o Centro de Informação do Exército. 
Aquilo era um buraco negro. Nenhum contato pessoal. Nenhuma negociação possível. Houve semanas em que o material liberado mal dava para fechar uma edição. Qualquer referência a negros era vetada incontinente. Nem uma nota corriqueira sobre um show em homenagem a Pixinguinha passou pelo crivo do Ciex.
A censura ao Opinião seguia o mesmo esquema, até o estafeta, creio, era o mesmo, custeado pelos dois semanários. Cortavam com tamanha fúria e indiscriminação que, de uma feita, vetaram na íntegra a coluna de xadrez, que era traduzida do jornal britânico The Guardian. Se ainda fosse o general Juarez, podíamos ter-lhe explicado, com jeito, que o rei referido na abertura da coluna era uma peça do jogo, não uma alusão malévola ao general Geisel, o ditador de plantão.
Não, não quero passar por tudo aquilo de novo não. 

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