domingo, 30 de setembro de 2018

Duas bolas - Ruth Manus

Quando passei pela esquina vi que um novo empreendimento qualquer iria abrir no bairro. Obras a todo vapor, alguma pressa. Bem que podia ser uma copiadora, não tem xerox nenhuma perto de casa. Os dias passaram e pintaram aquilo com tons duvidosos: azul-turquesa e rosa-choque. Boa coisa não devia ser.
Mas era. Era uma sorveteria. E poucas coisas podem ser melhores do que uma sorveteria nova no bairro – mesmo que você não tenha intenção nenhuma de frequentá-la. Algumas semanas passaram e o estabelecimento foi inaugurado. Eu gostava daquela sorveteria, exatamente por não ser muito sisuda nem muito pretensiosa. Aquelas cores berrantes diziam logo como eles queriam se posicionar: alegres e populares, não sóbrios e elitistas. Tinha até uma lousinha na calçada, com rabiscos de giz branco anunciando a abertura.;
Contei para a miúda, que logo se animou. No fim da tarde na terça-feira, aproveitando o fim do verão, fomos até lá. Confesso que foi uma das únicas vezes que fiquei feliz com a existência de uma fila. Meia dúzia de pessoas aguardava o atendimento à nossa frente: duas amigas de 14 anos, um pai com um menino de uns 5, um casal com mais de 80. A coisa ia bem. 
As opções eram simples: uma bola, duas bolas ou três bolas, no copo ou na casquinha. Não tinha aquela história de “uma bola – até dois sabores, duas bolas – até 3 sabores, etc.”. Nunca vi lógica nenhuma nisso. Uma bola, um sabor. Faz algum sentido, não? Escolhemos uma bola cada uma – na verdade ela queria duas, mas percebemos que madrasta é mãe, e não amiga, quando respondemos “não, uma só, que já já tá na hora do jantar”.
A miúda se angustiou entre o de chocolate e o de bolacha Oreo. Disse a ela que podíamos pedir os dois e íamos provando uma o da outra. Na verdade eu queria pistache, acho que é isso que chamam de amor. Pegamos nossas duas casquinhas e nos sentamos nas mesas da calçada. Logo depois, uma mãe com duas crianças perguntou se podiam dividir a mesa conosco e, de repente, éramos 5 dividindo uma tarde de verão.
O sorvete ia derretendo e escorrendo pela casquinha da miúda. Eu às vezes apontava para ela lamber antes que pingasse. Claro que pingou, bem no short branquinho. Ela arregalou os olhos, eu dei risada. Criança boa é criança de roupa suja. Acabamos os sorvetes, voltamos para casa. Banhos, sopas, pijamas.
Na tarde da quinta-feira, nos olhamos, cúmplices: sorvete? – eu perguntava com os olhos brasileiros. Gelado? – ela perguntava com os olhinhos lusitanos. Voltamos à sorveteria, cheia outra vez. Dessa vez ela não me pediu duas bolas. Angustiou-se entre coco e melancia. Tudo bem, fazemos aquele esquema de novo. Dessa vez foi o meu que pingou, bem em cima do peito do pé.
Às nove da noite, quando eu voltava da academia, a sorveteria continuava cheia. Menos crianças e idosos, mais casais jovens. Eu sorri. No meio dessas angústias todas nesse mundão – armas, homens, ameaças, truculência – era bom ver uma sorveteria colorida cheia. Ali não havia espaço para ódio, berros e polêmicas. Uma verdadeira trégua no meio disso tudo.
A gente procura felicidade em lugares estranhos. Peças de roupa, potência de motor, diplomas, quilos perdidos, pedras em colares, papéis escritos no cartório. Mas me parece que ali havia uma felicidade tão gritante e tão evidente, que era impossível não senti-la, mesmo do outro lado da rua.
Já acabou o verão europeu. Não sei bem o que vai acontecer com a sorveteria quando os dias de Lisboa estiverem tomados pelas rajadas de vento com garoa e o termômetro mostrar 8 graus. Mas agora não quero pensar nisso. Quero só planejar os fins de tarde da próxima semana. Ainda falta o de melão, o de baunilha, o de mirtilo, o de nutella, o de limão e alguns outros. Eu e a miúda estaremos lá, dividindo um por um. Isso basta.

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