Meu nome é Emanuel. Há tempos, eu pensava em criar um blog sobre leitura mas não encontrava o nome.
"Crônicas Recolhidas e Cia Ilimitada" é, por enquanto, o nome provisório do blog. Além das crônicas, artigos de opinião, contos e poemas terão seu espaço aqui.
Sempre que possível, além do texto, serão incluídos links e/ou imagens relativos ao tema.
segunda-feira, 24 de setembro de 2018
Primavera
Mafalda - Quino
Primavera nos dentes - Secos e Molhados
João Ricardo-joão Apolinário
Quem tem consciência pra se ter coragem
Quem tem a força de saber que existe
E no centro da própria engrenagem
Inventa a contra mola que resiste
Quem não vacila mesmo derrotado
Quem já perdido nunca desespera
E envolto em tempestade decepado
Entre os dentes segura a primavera
Karina Buhr interpreta "Primavera nos Dentes"
Primavera - Cecília Meireles
A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite
no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do sol vai
marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda
circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera que
chega.
Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo
confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a
alegria de nascer, no espírito das flores.
Há bosques de rododendros que eram verdes e já estão todos cor-de-rosa, como os
palácios de Jeipur. Vozes novas de passarinhos começam a ensaiar as árias
tradicionais de sua nação. Pequenas borboletas brancas e amarelas apressam-se
pelos ares, — e certamente conversam: mas tão baixinho que não se entende.
Oh! Primaveras distantes, depois do branco e deserto inverno, quando as
amendoeiras inauguram suas flores, alegremente, e todos os olhos procuram pelo
céu o primeiro raio de sol.
Esta é uma primavera diferente, com as matas intactas, as árvores cobertas de
folhas, — e só os poetas, entre os humanos, sabem que uma Deusa chega, coroada
de flores, com vestidos bordados de flores, com os braços carregados de flores,
e vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz.
Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra
maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação.
Algum dia, talvez, nada mais vai ser assim. Algum dia, talvez, os homens terão
a primavera que desejarem, no momento que quiserem, independentes deste ritmo,
desta ordem, deste movimento do céu. E os pássaros serão outros, com outros
cantos e outros hábitos, — e os ouvidos que por acaso os ouvirem não terão nada
mais com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou.
Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos atenção ao sussurro
dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul. Escutemos estas vozes
que andam nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda conservam seus
sentimentos antigos: lentamente estão sendo tecidos os manacás roxos e brancos;
e a eufórbia se vai tornando pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra.
Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo enrolados em redor do perfume.
E flores agrestes acordam com suas roupas de chita multicor.
Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser lançado ao vento, — por
fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade. Saudemos a
primavera, dona da vida — e efêmera.
Texto extraído do livro "Cecília Meireles - Obra em Prosa - Volume
1", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1998, pág. 366.
Mafalda - Quino
Umas e Outras - Primaverando
Novos Baianos - De Vera (1969)
Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera
passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma.
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no
seu tempo?
Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;
E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.
Por isso, se morrer agora, morro contente,
Porque tudo é real e tudo está certo.
Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.
Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.
Não tenho preferências para quando já não puder ter
preferências.
O que for, quando for, é que será o que é.
[PESSOA, Fernando. Ficções do Interlúdio: poemas
completos de Alberto Caeiro. In Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1977.]
Quando vier a primavera, Alberto Caeiro - Pedro Lamares
Quando tornar a vir a Primavera - Alberto Caeiro
Quando tornar a vir a Primavera
Talvez já não me encontre no mundo.
Gostava agora de poder julgar que a Primavera é gente
Canção da Primavera - Mario Quintana CD Crianceiras
Armandinho - Alexandre Beck
Primavera (Carlos Lyra - Vinicius de Moraes)
O meu amor sozinho,
É assim como um jardim sem flor,
Só queria poder ir dizer a ela,
Como é triste se sentir saudade.
É que eu gosto tanto dela,
Que é capaz dela gostar de mim,
Acontece que eu estou mais longe dela,
Do que a estrela a reluzir na tarde.
Estrela, eu lhe diria,
Desce à terra, o amor existe,
E a poesia só espera ver nascer a primavera,
para não morrer,
Não há amor sozinho,
É juntinho que ele fica bom,
Eu queria dar-lhe todo o meu carinho,
Eu queria ter felicidade.
É que o meu amor é tanto,
Um encanto que não tem mais fim,
No entanto ela não sabe que isso existe,
É tão triste se sentir saudade.
Amor,eu lhe direi,
Amor que eu tanto procurei,
Ah! quem me dera eu pudesse ser,
A tua primavera e
depois morrer
Primavera - Joyce
Mafalda - Quino
Recado de Primavera – Rubem Braga
Meu caro
Vinicius de Moraes:
Escrevo-lhe aqui de Ipanema para lhe
dar uma notícia grave: A Primavera chegou. Você partiu antes. É a primeira
Primavera, de 1913 para cá, sem a sua participação. Seu nome virou placa de
rua; e nessa rua, que tem seu nome na placa, vi ontem três garotas de Ipanema
que usavam minissaias. Parece que a moda voltou nesta Primavera _______ acho
que você aprovaria. O mar anda virado; houve uma lestada muito forte, depois
veio um sudoeste com chuva e frio. E daqui de minha casa vejo uma vaga de
espuma galgar o costão sul da ilha de Palmas. São violências primaveris.
O sinal mais humilde da chegada da
Primavera vi aqui junto da minha varanda. Um tico-tico com uma folhinha seca de
capim no bico. Ele está fazendo ninho numa touceira de samambaia, debaixo da
pitangueira. Pouco depois vi que se aproximava, muito matreiro, um
pássaro-preto, desses que chama de chopim. Não trazia nada no bico; vinha
apenas fiscalizar, saber se o outro já havia arrumado o ninho para ele pôr seus
ovos.
Isto é uma história tão antiga que
parece que só podia acontecer lá no fundo da roça, talvez no tempo do Império.
Pois está acontecendo aqui em Ipanema, em minha casa, poeta. Acontecendo como a
Primavera. Estive em Blumenau, onde há moitas de azaléias e manacás em flor; e
em cada mocinha loira, uma esperança de Vera Fischer. Agora vou ao Maranhão,
reino de Ferreira Gullar, cuja poesia você tanto amava, e que fez 50 anos. O
tempo vai passando, poeta. Chega a Primavera nesta Ipanema, toda cheia de sua
música e de seus versos. Eu ainda vou ficando um pouco por aqui ______a vigiar,
em seu nome, as ondas, os tico-ticos e as moças em flor. Adeus.
Como Se Fosse a Primavera - Chico Buarque De que calada maneira Você chega assim sorrindo Como se fosse a primavera Eu morrendo E de que modo sutil Me derramou na camisa Todas as flores de abril Quem lhe disse que eu era Riso sempre e nunca pranto? Como se fosse a primavera Não sou tanto No entanto, que espiritual Você me dar uma rosa De seu rosal principal De que calada maneira Você chega assim sorrindo Como se fosse a primavera Eu morrendo Eu morrendo
Para dar um curso, vim passar um mês fora do Brasil, num
lugar incrível ao qual eu nunca tinha vindo: chama-se primavera. Faz fronteira
ao Sul com o inverno, ao Norte com o verão, a Leste com o East River e a Oeste
com o Rio Hudson. Viajando por oito meses, tanto para cima quanto para baixo, é
possível visitar o outono.
“Você vai adorar vir pra cá em abril”, havia dito a
professora que me contratou. “A grama dos parques fica verdinha, há flores por
todo lado, depois de vários meses trancadas em casa as pessoas saem pra rua, há
gente dia e noite correndo e andando de bicicleta na beira do rio, nos fins de
semana os restaurantes botam mesas nas calçadas, os brunchs vão até as três da
tarde com mimosas e cervejas artesanais transbordando de lúpulo fresco”.
Ao chegar, achei que tivesse sido enganado. Fui recebido por
cinco graus Celsius, chuva e um vento que vinha direto do Alasca. Por duas
semanas, vivi entre árvores secas e canteiros áridos; tristes retângulos de
terra de onde brotavam apenas esporádicas bitucas de cigarro. Nesta
terça-feira, no entanto, saímos do nosso apartamento e demos de cara com duas
dúzias de tulipas amarelas.
Achei que o zelador tivesse comprado as flores e plantado
naquela manhã, na jardineira do prédio, mas bastou andarmos pela rua para
perceber que era geral: ou o zelador era o The Flash, capaz de cuidar de todos
os canteiros de Manhattan antes do meio-dia, ou havíamos realmente chegado à
primavera. Desde então, as pessoas correm e pedalam na beira do rio, os brunchs
vão até as três da tarde, o aroma do lúpulo nos copos de cerveja atravessa o
Rio Hudson e chega até Nova Jersey.
Não sei se estou mais impressionado com os efeitos da
primavera ou com essa experiência raríssima na vida de um brasileiro: a mudança
de estação.
Como vocês bem sabem, no Brasil não há estações do ano. Há,
no máximo, verão e inverno, mas convenhamos, mesmo eles são conceitos tão
frágeis quanto a meritocracia e a proibição do caixa 2. Dá pra ir à praia em
julho. Dá pra usar cachecol em janeiro. Dá pra chegar a CEO apenas porque se é
parente do dono e a maior empreiteira do país tinha um departamento inteiro só
pra “patrocinar” campanhas políticas.
Comparando o rigor das estações do ano, aqui, com a
esculhambação meteorológica, aí, fica difícil não cair no mais raso
determinismo geográfico. Como se a certeza de que todo ano, depois do inverno,
virão o sol e as flores incutisse nas pessoas uma espécie de senso natural de
justiça, enquanto entre nós uma semana fria em janeiro e um dia de calor em
julho reforçassem a tese de que no nosso país nada funciona: se nem o
calendário respeita as regras, por que nós haveríamos de respeitá-las?
Expus minha hipótese a um americano e ele disse que
aceitaria de bom grado mais bagunça se pudesse se livrar dos quatro meses de
inverno. “Felizes são vocês, que têm 12 meses de primavera”. Pensei em explicar
que, há uns anos, a sensação térmica está mais pra outono, mas não queria
emburacar no pessimismo. Apenas sorri, concordei e, à beira do rio, entre
orquídeas e tulipas, pedimos mais dois copos desta bela filha da primavera, a
cerveja, a flor engarrafada.
Delicatessen - Setembro
Vanusa - Manhãs de Setembro
Ipês amarelos sabem que sobreviver em São Paulo exige resiliência - Drauzio Varella
Os ipês amarelos estão em festa na cidade. Na secura do
inverno, eles se despem das folhas para poupar energia. Fingem-se de mortos,
até nos surpreender com o desabrochar de uma profusão de flores, com pétalas
que se juntam em forma de cálices delicados que ao despencar dos galhos,
rodopiam em espiral, para tecer um tapete amarelo que forra o asfalto e a
calçada, ao redor do tronco.
Há de todos os tamanhos. Alguns são crianças que aos dois ou
três anos já medem três metros, idade suficiente para criar as primeiras
flores, ainda esparsas, distantes umas das outras. Outros, em compensação, são
árvores majestosas de tronco rijo, que atingem 20 ou 30 metros de altura, com
galhos emaranhados em copas de cinco ou seis metros de diâmetro, nas quais
expõem um buquê amarelo visível a quilômetros de distância.
Senhores do que restou da mata atlântica, conscientes de que
viver em São Paulo exige resiliência, sobrevivem em qualquer canto: na calma
dos bairros, nos jardins das casas, nos parques, na periferia, no centro e no
trânsito das grandes avenidas.
Um deles, plantado no canteiro que separa as duas pistas da
rua da Consolação, junto ao cemitério do mesmo nome construído no terreno doado
pela Marquesa de Santos, é um escândalo florido.
Ergue-se altaneiro sobre um corredor de ônibus que trafegam
nos dois sentidos, alheio à fuligem projetada contra seu corpo, dia e noite.
Ele retribui com um arranjo floral que encanta os olhos dos motoristas, a
agressão perpetrada por eles.
A beleza é efêmera, no entanto: em uma semana as flores
serão varridas das calçadas e esmagadas pelos pneus que passam sem vê-las.
No processo de seleção natural, levaram vantagem evolutiva
os ipês mais floridos, capazes de atrair mais insetos para a polinização,
processo essencial para a formação das vagens compridas que protegem as
sementes aveludadas, capazes de viajar ao sabor do vento para perpetuar a
espécie.
Como a ciência não é a única forma de entender o mundo,
conta a lenda que Deus um dia reuniu as árvores para perguntar em que estação
do ano gostariam de florescer. Quase todas escolheram a primavera ou o verão,
algumas preferiram o outono.
O Criador disse, então, que a Terra não podia passar o
inverno na tristeza desflorida. O ipê se ofereceu como voluntário. Para
recompensá-lo, Ele lhe deu caules fibrosos, longevidade, resistência ao frio e
à seca e flores multicoloridas: roxas, rosadas, brancas e amarelas, de
tonalidades diversas.
A São Paulo da minha infância era cinzenta. Quem pretendesse
descansar a vista num verde, precisava ir aos limites da zona urbana. A
primeira providência ao abrir uma rua nova era cortar todas as árvores. As
únicas cultivadas eram as frutíferas, nos quintais: goiabeiras, jabuticabeiras,
mamoeiros, pitangueiras e ameixeiras que nos obrigavam a pular o muro das
casas, para colhê-las assim que ameaçavam amadurecer.
A partir dos anos 1950, a cidade começou a ser arborizada,
de início timidamente; de forma sistemática
nas últimas décadas.
Hoje, entre outras, temos tipuanas de troncos enormes, com
copas que chegam à calçada oposta e espalham milhares de flores amarelas miúdas
pelo chão; sibipirunas que dão flores empoleiradas no topo das copas, como se
fossem canários pousados; jacarandás mimosos de flores roxas; paus-ferro de
troncos brancos, muito altos; quaresmeiras; figueiras de folhagem exuberante; e
jerivás, palmeiras com cachos de coquinhos alaranjados que atraem pássaros e o
zumbido das abelhas.
São Paulo está longe de ser arborizada. A cidade que cresceu
como um polvo com tentáculos, que invadiram e devastaram as matas que a
circundaram nos tempos da garoa, ainda tem bairros periféricos e favelas com
ruas tão cinzentas quanto as do Brás de quando nasci.
A consciência de que o verde e as flores a tornam mais
humana, entretanto, ficou clara até para os paulistas que andam para lá e para
cá ensimesmados, com os olhos no trânsito, nas calçadas esburacadas e nos
transeuntes sem se dar conta da existência das árvores.
Para o ipê da rua da Consolação nossa apatia distraída não
faz a menor diferença. Se vier uma epidemia capaz de varrer a humanidade da
face da Terra, no inverno seguinte ele estará lá, frondoso, abarrotado de
flores amarelas que o vento irá derrubar.
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