domingo, 30 de setembro de 2018

Aventura no centro - Fabrício Corsaletti

Romolo


Por conta de uma besteira que não vem ao caso, tive que fazer dois meses de fisioterapia. A clínica ficava na rua Galvão Bueno, perto da praça da Liberdade.
(No mesmo prédio da Flor de Fogo Kimonos, que não visitei por receio de que o estabelecimento comercial frustrasse as expectativas que seu nome criava. A não ser que na Flor de Fogo se vendessem quimonos em chamas e as atendentes usassem flores de cerejeira no cabelo.)
Ao final de cada de sessão, por volta das onze da manhã, eu aproveitava pra perambular pelo bairro. Mais de uma vez por semana passava no Kintarô pra tomar café e comer a esfirra deliciosa que dona Líria encomenda de um velho japonês. Não sem algum constrangimento, pois, com exceção da esfirra, todos os outros salgados do bar, ótimos também, são feitos por ela. Culpado, às vezes eu comia um bolovo ou uma coxinha, depois da esfirra, pra compensar.
Mas a Liberdade é meia dúzia de quarteirões, e achei que eu já estava me repetindo ao voltar sempre pra casa com um rolo de hossomaki na mochila. Decidi explorar melhor o centro, que conheço pouco e é vizinho da comunidade oriental.
Desci a Benjamin Constant como quem anda pela primeira vez numa cidade estrangeira.
Edifícios do século 19 com o térreo ocupado por lojas de xerox. Botecos com frutas (algumas de plástico) pendendo de barras acima dos balcões. O Café Girondino e o Café Martinelli. Uma doçaria portuguesa de dois andares. O Solar da Marquesa —paredes de taipa de pilão.
Uma porta verde com aldravas douradas. Um toldo de ferro art nouveau de um hotel que um dia deve ter sido lindo. A Casa do Cartucho. Cabeça de Mercúrio. Quiosques de engraxates. Uma placa em homenagem a Adoniram Barbosa e uma estátua em homenagem a Zumbi. Por toda parte, capinhas pra celular.
Tirei os olhos da paisagem e reparei nos olhos das pessoas. Anotei: “olhos são rasgos na paisagem (opaca)/ quando a gente VÊ os olhos todo o resto desaparece, inclusive os CORPOS/ olhos
entregam de bandeja (todas as emoções)/ as pessoas são os seus olhos ou o que está por trás deles, nenhuma pessoa é uma orelha”.
Foi aí que, perto do largo São Francisco, topei com uma placa sobre uma porta aberta que me deixou curioso:
M. LUZ, VIDENTE
A VERDADE É UMA HISTÓRIA
QUE VOCÊ TEM O DIREITO DE CONHECER
M. Luz: por que esse nome abreviado me soava tão familiar?
Como um ator ruim de filme B, respirei fundo, olhei pros lados, desviei de dois craqueiros que dormiam na calçada e entrei.

Romolo


Encafifei com o nome abreviado (por que “M. Luz” ressoava de forma tão agradável no meu inconsciente?), criei coragem e entrei.
Era uma sala escura, mal iluminada pelas três velas de um castiçal comprido posto ao lado de uma escada de madeira que levava ao andar superior. Na parede da escada, um grafite: uma fila de esqueletos subindo um morro que ia dar num céu em chamas. Que merda é essa?, pensei.
Achei melhor cair fora dali, mas a curiosidade não me deixou voltar atrás. Criei coragem pela segunda vez no dia (como é esquisita essa expressão, “criar coragem”) e, sem tocar no corrimão seboso, subi devagar aqueles degraus rangentes, enquanto o bochicho da rua ia se apagando nos meus ouvidos.
Quando cheguei lá em cima, pensei que estava sonhando, na medida em que todo sonho é também um pesadelo. Pelo cômodo claro e espaçoso de tacos pintados de lilás, centenas de objetos e penduricalhos indianos, ou ciganos, ou hippies de milésima geração, tinham sido acomodados de maneira mais ou menos aleatória, formando o que a mãe de um amigo meu chamava de PB, isto é, puta bagunça.
Se o leitor não gosta de listas, pode pular este parágrafo; caso contrário, eis o que lembro de ter visto: uma estátua de Buda em tamanho natural (seja lá qual tenha sido o tamanho natural de Buda), uma escultura maia (ou asteca?) de um sol-calendário, um bosque de arvorezinhas de jaspe vermelho, um bandolim sem cordas, um pôster de Osho, a capa de um LP do Genesis, caveiras de Durepox, um livro de Saussure e outro de Chomsky etc.
Sentada no centro de um tapete verde-abacate, em posição de lótus, de olhos fechados, descalça e vestindo uma bata branca, M. Luz, ou alguém que só podia ser M. Luz, meditava. Seu cabelo preto, preso num coque descuidado, brilhava como gelatina.
Me aproximei, meus sapatos me delataram, ela abriu os olhos e então soltou uma gargalhada que me fez tremer inteiro por dentro. Por um instante não pude acreditar. Mas logo não tinha mais dúvidas: M. Luz não era ninguém menos que minha amiga Mariana Luz Pereira Bastos, ou Mari Manguaça, ou ainda MM, desaparecida desde 2003, quando embarcou numa viagem mística pelo Vale Sagrado peruano.

Romolo

Depois de muitos abraços e lágrimas, Mari (Mari!) pediu pra que sentássemos no chão e eu fizesse uma cara palerma de cliente comum —seu patrão podia chegar a qualquer momento e ele não tolerava conversa mole em horário comercial.
Enquanto espalhava no tapete as cartas de tarô, minha amiga me contou em detalhes o que aconteceu com ela nos últimos 15 anos. O espaço é curto e sua saga é longa. Vou ter que pular algumas partes. Que o leitor a complete como achar melhor.
caminho de Machu Picchu, Mari foi sequestrada por um falso xamã, que a levou pra sua aldeia, onde, em regime de semiescravidão, ela ajudou o povo do lugar a construir uma ponte de palha. Dois anos depois estava no deserto do Atacama casada com uma xamã mais ou menos verdadeira com quem abriu um café chamado Mercedes Luminosa. Mais uma volta no rocambole e encontramos MM em Curaçao, solteira e sem amigos, sobretudo sem dinheiro, numa crise de identidade que se mostrou “tonificante”.
Surge então a figura de Danilo, brasileiro como ela, dono de uma Kombi fúcsia dentro da qual rodaram a América Latina e numa noite de particular felicidade geraram a filha Rosa, hoje com oito anos.
Durante todo esse tempo tentou falar com a família, mas o telefone da casa da mãe só dava ocupado, o correio estava sempre em greve e sua religião não permitia o uso de computadores.
Agora combatia na FSA (Frente pela Sobrevivência da Ararajuba). Danilo, por sua vez, militava no MTTF (Movimento dos Trabalhadores sem Trabalho Fixo) e gostava de cantar Peppino di Capri no karaokê.
Perguntei o motivo daquele disfarce de vidente. Sua resposta não poderia ter sido mais desconcertante. Disse que não era disfarce mas um bico que ela fazia pra somar ao salário de professora de Sociolinguística Variacionista, pois o aluguel na Pamplona não estava bolinho e a escola de Rosa custava os olhos da cara.
Gastamos a tarde num botequim imundo, bebendo cerveja e maldizendo a vida, na luz selvagem de um país que se destrói.

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