sábado, 29 de junho de 2019

Fica a dica - Marcelo Rubens Paiva

A carona foi minha aliada na graduação. Unicamp fica fora de Campinas. Eu conhecia as esquinas em que estudantes se postavam em busca de uma. A Rua Carolina Florência, em que morei, era rota obrigatória de professores e alunos com carro que para lá se dirigiam pela Rodovia Professor Zeferino Vaz (emérito fundador da universidade).
Apesar de Hegel ter sempre exaltado o altruísmo da Humanidade, que a distinguiria dos animais, nem todos davam carona aos estudantes e professores ‘sem-carro’ que esperavam na esquina com a Avenida Imperatriz Leopoldina. Único dever do caronista: ter talento para uma prosa leve sem partido de 20 minutos; quem dá carona está aberto a um blablablá.
Me mudei para a USP, e lá estava na Praça Rubião Meira pela saída da universidade, Portão 1, o conglomerado de estudantes pedindo carona. Dessa vez, do outro lado, ‘com-carro’, eu parava na maioria das vezes.
Foi então que imaginei uma rede via e-mail de carona. Depois, um site. Por fim, um aplicativo. Aprendi nos anos 1970 a linguagem Pascal, de programação de computadores; era dos cartões perfurados. E, sim, tive noções do DOS, especialmente para acentuar os primeiros PCs (lembram-se do kbbr?). Não sei como fazer um aplicativo.
Oferecia minha ideia a amigos e parentes jovens. Todos diziam o mesmo: tá maluco, quem vai aceitar a carona de um desconhecido, e vice-versa? Mas alguém fez o BlaBlaCar. Hoje, uma viagem ao Rio pelo aplicativo de carona sai por R$ 60. São Paulo a Campinas, R$ 15. 
Até Garrett Camp e Travis Kalanick, de São Francisco, claro, pioneiros no conceito de E-hailing, fundarem em 2009 a Uber Technologies Inc. Que meus amigos “entendidos” me chamavam de maluco, mas o usam e abusam.
Eu usava uma vez por mês os serviços de uma empresa de motoboys. Um dia, decidiram não me atender mais, porque eu usava apenas uma vez por mês os seus serviços, e eles passaram a trabalhar para empresas maiores.
Como alguém despreza meu dinheiro suado? Ultrajado, pensei em me vingar. Faria um aplicativo que pegaria o primeiro boy da redondeza, para fazer entregas. Mas meus amigos diziam: e você vai entregar um documento de valor a um motoqueiro desconhecido?!
Três colombianos, Felipe Villamarin, Sebastián Mejía e Simón Borrero, tiveram a mesma ideia e fundaram a Rappi em 2015. Um francês, Fabien Mendez, no mesmo ano, fundou a Loggi no Brasil. Eu não fundei coisa alguma. Só tenho boas ideias, que amigos me demovem.
Então, lá vai. Mais uma boa ideia, que tive com a amiga L, jornalista como eu preocupada com os rumos do nosso ramo, cujo falecimento foi decretado por aqueles amigos entendidos, enquanto resistimos bravamente e nos reinventamos.
Qual a onda do futuro? Clube de Tiro. Não precisamos nem apresentar as justificativas. Ficará muito rico aquele que investir em clube de tiro misturado com um paintball... temático! Pronto, falei. 
Desarme os preconceitos, Afinal, esse negócio é para quem está antenado com o ideal extremista em voga e a nova mania, a do ódio.
Dúvida: devemos focar no público de extrema-direita, direita, ou será um clube sem partido de tiro? Certeza: cada dia, um tema.
1. Às segundas-feiras, seja um Seal e mate Osama. Pratique tiros contra alvos fantasiados de guerrilheiros da Al-Qaeda e Taleban. Nossa secretária atenderá vestida de burca azul. Será complicado escutar dela, depois de dar o cartão, se será débito ou crédito, se quer CPF na nota e sua via. Sugestão: pagamento em dólar. Forjaremos um ar abafado, seco, com poeira no ambiente. O bunker de Osama será montado. A trilha, rock pesado. Se conseguirmos alugar um camelo... Cerveja será vendida. Receio: enaltecer uma islamofobia que saia do cenário (e contexto).
2. Às terças, o contrário: faça parte do Estado Islâmico. Pratique sua jihad e ódio aos impérios americano e russo. Nada de bebida alcoólica por perto, apenas chás e cafés. Narguilés espalhados. Será uma noite das arábias, com muita dança do ventre, batuque. Na entrada, ganha-se um turbante. Prioridade para o treinamento com AK-47. Uma bandeira americana será queimada no final. A secretária é a mesma, de burca preta.
3. Às quartas, sinta-se na Segunda Guerra e mate nazistas. Você poderá se fantasiar de solado aliado ou da Resistência, com uma boina. Terá direito a atirar em alto-falantes que só tocam Lili Marlene. Na entrada, um militar furioso e arrogante da SS só falará em alemão, receberá os clientes aos gritos, dará ordens para entrarem em filas. Só “débito ou crédito”, “quer CPF na nota” e “quer sua via” serão as únicas palavras ditas em português. Fãs de Bastardos Inglórios (Tarantino) são um nicho em potencial. O bunker de Hitler será reproduzido, para quem passar à fase 2.
4. Às quintas, mate comunas. Só entram aqueles com camisa verde-amarela da Seleção. Figurino vermelho? Banido. De repente, escuta-se ao longe a Internacional cantada em castelhano por um coro, a luz do ambiente fica avermelhada. Milícias bolivarianas treinadas por cubanos aparecem à frente. Abra fogo. Pensamentos de Olavo de Carvalho são pronunciados pelos alto-falantes. Ala direitista do rock brasileiro toca no máximo volume. Um capitão do Exército brasileiro será o host, perguntará “crédito ou débito?”.
5. Às sextas, Elite da Tropa. Na entrada, um sujeito armado vende trouxinhas de pó branco e erva verde. Então, um dublê de Capitão Nascimento entra, dá tapas nos rostos dos convidados e grita: “Pede pra sair! Pede pra sair!”. Rifles automáticos são distribuídos. “Caveira” é o grito que todos dão, antes de iniciarem o treinamento. Na saída, descobre-se que o pó branco é maria-mole, e o verde, brigadeiro de pistache.
6. Aos sábados, dia de faturar e de gastar pagando royalties a franquias. Matinê, Guerra nas Estrelas. Será para praticar tiros e esgrima. À noite, Os Vingadores. Cada um escolhe seu personagem.
7. Domingo, dia santo, dia de culto, a casa fica fechada. 

sexta-feira, 28 de junho de 2019

Sobe e desce - Luis Fernando Verissimo

Ascensorista é uma das profissões que desapareceram no mundo moderno. Era certamente a mais tediosa das profissões, e não apenas porque o ascensorista estava condenado a passar o dia ouvindo histórias pela metade, anedotas sem desenlace, brigas sem resolução, só nacos e vislumbres da vida dos passageiros.
Pode-se imaginar que muitos ascensoristas tenham tentado combater o tédio variando a sua própria fala.
Dizendo “ascende” em vez de “sobe”, por exemplo.
Ou “eleva-se”. Ou “para cima”. “Para o alto.” “Escalando.”
Quando perguntassem “sobe ou desce?”, responderia “a primeira alternativa”. Ou diria “descende”, “ruma para baixo”, “cai controladamente”, e se justificaria, dizendo: “gosto de improvisar”.
Mas como toda arte tende para o excesso, o ascensorista entediado chegaria fatalmente ao preciosismo. Quando perguntassem “sobe?”, responderia “é o que veremos...”. Ou então, “como a Virgem Maria”.
Ou recorreria a trocadilhos: “Desce?” “Dei.”
Nem todo o mundo o compreenderia, mas alguns o instigariam.
Quando comentassem que devia ser uma chatice trabalhar em elevador, ele não responderia “tem seus altos e baixos”, como esperavam. Responderia, cripticamente, que era melhor do que trabalhar em escada.
Ou que não se importava, embora seu sonho fosse, um dia, comandar alguma coisa que também andasse para os lados...
E quando ele perdesse o emprego porque substituíssem o elevador antigo por um moderno, daqueles com música ambiental, diria:
“Era só me pedirem – eu também canto!”
Mas enquanto não o despedissem, continuaria inovando.
“Sobe?”“A ideia é essa.” “Desce?”
“Se ainda não revogaram a lei da gravidade, sim.”
“Sobe?”“Faremos o possível.”
“Desce?”“Pode acreditar.”

terça-feira, 25 de junho de 2019

Essa musa prosaica - Humberto Werneck

Não é impossível que você se lembre da história, contada aqui faz tempo, do aperto pelo qual passou um repórter, quando, em meio à entrevista, a fala do entrevistado começou a engrolar, cada vez mais ininteligível, como se o falante tivesse agora a boca cheia de cascalho. À beira do pânico, o jornalista foi puxando a cadeira para junto dele, e só lhe faltava sentar-se no seu colo quando a mulher do camarada, passando pela sala, berrou, pois além do mais o marido era meio surdo: 
– A dentadura, benzinho, a dentadura!
Certamente habituado a tal tipo de intervenção, o benzinho, sem se alterar, bateu com os dedos na boca, de modo a devolver a dentadura ao seu hábitat, e, novamente inteligível, retomou a fala no ponto em que estava.
Aliviado, o repórter saiu dali a desfiar entre dentes o poema, Dentaduras Duplas, com que Drummond, condenado a uma radical banguelice, cantou a inesperada musa, tão prosaica quanto protética: “Inda não sou bem velho para merecer-vos…”, reclamou o poeta, que andava então pelos 35 anos, para achar consolo, nos versos finais do poema, numas “feéricas dentaduras, admiráveis presas” que lhe permitiriam mastigar, “lestas e indiferentes, a carne da vida!”. 
Ele mesmo naquela faixa etária, o jornalista pela primeira vez se deu conta de que no criado-mudo de seu poeta predileto, então ainda vivo, haveria de repousar, à noite, em vez de lira, um copo d’água onde dormissem também as decantadas dentaduras duplas. Ainda não sabia que Drummond, pela vida afora, tinha a manha de tirar a prótese para impressionar crianças, a começar pelos três netos. Um sucesso, sempre.
O repórter – este cronista, você adivinhou – lembrou-se de um querido senhor de sua infância, espichado na cama, atento ao rádio de válvulas que, em vacilantes ondas curtas, lhe trazia algum noticiário do Rio de Janeiro. Ao lado do aparelho, roubando a cena, jazia o copo com a dentadura, que a refração da luz distorcia e agigantava. 
Sem perder o decoro, o senhor, meu amado vovô Santos, contava casos com o sabor e a graça de sempre – mas o menino, para quem o espetáculo era inédito, só tinha olhos, arregaladíssimos, para aquele copo onde, aterrador, transparecia um sorriso avulso, e para o rosto provisoriamente afilado onde a boca emurchecida parecia mascar por dentro as bochechas.
Como na futura história da entrevista, em dado momento a esposa entrou no quarto – e aí o marido, interrompendo um relato, desfiou para ela, com elã nada senil, uma declaração de amor. A mulher, com quem já cumprira bodas de todos os metais, sorriu, encabulada, antes de deixar o quarto. Ele, então, conferiu a hora, voltou-se para o neto e piscou um olho, temperando a doçura com uma gota de ironia muito sua: 
– Este foi o madrigal do meio-dia...
*
Menos ternas, porém mais divertidas, são as historinhas, também odontológicas, que encontro num livro septuagenário, jamais reeditado, de Djalma Andrade, cronista belo-horizontino pré-(e anti)modernista, hoje infelizmente esquecido. 
Desenterrando assuntos da República Velha, o escritor dedica duas deliciosas páginas a um certo cônego João Pio, mais político do que religioso, integrante, nos começos do século 20, do Senado estadual, instituição a que a revolução de 1930 poria fim. 
Segundo Djalma Andrade, que o conheceu, o cônego João Pio, tendo perdido cedo todos os dentes, tornou-se autoridade, antes de mais nada, em dentaduras. Nesse particular, notabilizou-se como conselheiro. Se alguém, no Senado, o via a confabular pelos cantos com um colega, tinha direito de supor que o tema dos cochichos não era a política, e sim instruções para o bom uso de próteses dentárias.
João Pio achava que toda dentadura (naquele tempo se dizia “chapa”) era vulnerável a uma determinada palavra, a qual, quando pronunciada, a fazia saltar da boca. Ele próprio, em meio a um discurso, cometeu a imprudência, ao rebater um aparte, de dizer “maligno”, e por pouco não se deu mal. “A dentadura partiu como uma flecha”, contou ele. “Com agilidade pasmosa, alcancei-a no ar e coloquei-a novamente na boca.” E acrescentou: “Notei a admiração dos meus colegas. Ninguém sorriu, naturalmente, em consideração a mim e à majestade do recinto.”
Escaldado, o cônego tratou de encomendar nova prótese – para mais tarde descobrir seu ponto fraco: o substantivo “proteu”, designativo de pessoa que muda facilmente de opinião. Viu-se forçado a mudar, não de opinião, jamais, e sim de dentadura – e, para encurtar a história, chegou a ter uma porção delas, guardadas “num pequeno armário, cada uma com o registro da expressão que não devo usar”. Havia palavras, como “superstição”, que não chegavam a provocar a expulsão da chapa, mas tinham o condão de mergulhar o usuário “num estado deplorável de nervosismo”. 
Em compensação, contava o cônego, havia dentaduras, digamos, benignas. A de um amigo seu, por exemplo, morador em Mariana, que, com três dias de antecedência, informava sobre um resfriado a caminho. Outra, em Sabará, avisava sobre mau tempo por vir. 
Certa ocasião, aposentado, um de seus colegas, de nome João Ribeiro, mudou-se de Belo Horizonte, não sem antes providenciar dentadura nova, e de ir aconselhar-se com o cônego João Pio, que não lhe deixou ilusões: 
– Um dia – preveniu –, horrorizado, você descobrirá a palavra fatal, que não pode ser dita impunemente. Escreva-me, quando isso acontecer.
Meses depois, um telegrama de João Ribeiro. Na folha de papel azul, não mais que uma palavra: “Libélula”.

domingo, 23 de junho de 2019

Beijos e abraços - Luis Fernando Verissimo

Os franceses se beijam, e não apenas quando estão se condecorando. Mas dois franceses só chegam ao ponto de se beijarem no fim de um longo processo de desinformalização do seu relacionamento que começa quando um propõe ao outro que abandonem o “vous” e passem a se tratar por “tu”. Os russos se beijam com qualquer pretexto e dizem que lá a progressão não é do aperto de mão para o abraço e o beijo, mas de beijos protocolares para beijos cada vez mais longos e estalados. Na Itália, os homens andam de braços dados na rua, sem que isso indique que estão noivos.
*
Os anglo-saxões são mais comedidos e mesmo os americanos, que são ingleses sem barbatanas, reagem quando você, esquecendo onde está, ameaça abraçá-los. Ninguém é mais informal do que um americano, ninguém mais antifrancês na maneira em que vai do “vous” ao “tu” sem nenhum ritual intermediário. Mas a informalidade não se estende a demonstrações físicas, como aquele nosso hábito de bater no braço quando se aperta a mão de alguém, aquela a amostra grátis de abraço. Somos da terra do abraço, mas também temos nossas hesitações afetivas. O brasileiro é expansivo, mas tem, ao mesmo tempo, um certo pudor dos seus sentimentos. O meio termo encontrado é o insulto carinhoso.
*
Não sei se é uma característica exclusivamente brasileira, mas é uma instituição nacional.
– Seu filho da mãe!
– Seu cafajeste!
São dois amigos brasileiros que se encontram.
– Não! Só me faltava encontrar você. Estragou meu dia.
– Este lugar já foi mais bem frequentado!
Depois dos insultos, se abraçam com fúria. Os sonoros tapas nas costas – outra instituição nacional – chegam ao limite entre a cordialidade e a costela quebrada. Eles se adoram, mas ninguém se engane. É amor de homem. E, quanto maior a amizade, maior a agressão. Você pode ter certeza que dois brasileiros são íntimos quando põem a mãe no meio. A mãe é o ultimo tabu brasileiro. Você só insulta a mãe do seu melhor amigo.
– Sua mãe continua na zona?
– Aprendendo tudo com a sua! 
– Dá cá um abraço!
E lá vêm os tapas. 

Contraditórios - Cláudia Laitano

A coerência talvez seja a mais rara das virtudes. Desejos, emoções e inclinações pessoais costumam nublar nosso julgamento a respeito do que é ou não coerente com o que dizemos ser ou acreditar, o que nos torna seres contraditórios pela própria natureza. Em geral, porém, encaramos nossas atitudes como páginas de um único romance em que todos os capítulos se encadeiam com lógica e bom senso, refletindo nossas convicções mais íntimas e genuínas – o que, na maior parte das vezes, não passa de autoilusão.
Pessoas dizem uma coisa e fazem outra o tempo todo – e nem sequer se dão conta. Como prestam mais atenção em atos do que em palavras, nossos filhos costumam ser ótimas vitrinas de todas as mensagens subliminares contraditórias que enviamos a eles quando crianças. “Larga o celular”, reclama a mãe pendurada no telefone. “Vai estudar”, ordena o pai que nunca abriu um livro.
Mas nenhuma plataforma é tão apropriada para flagrar incoerências quanto as redes sociais. Ali, onde todos se inflamam pelas causas mais justas e registram suas mais profundas indignações cívicas, também aparecem as contradições mais evidentes entre teoria e prática, aparência e essência, discurso e atitude.
Nas redes sociais, usam-se dois pesos e duas medidas para avaliar a relevância e a procedência das notícias conforme elas ratificam ou não o que já se pensava antes – e compartilha-se menos o que faz refletir do que aquilo que apenas confirma o ponto de vista que já se tinha. (Aos amigos, tudo. Aos inimigos, justiça.) Tudo isso é tão corriqueiro, que o que realmente nos surpreende, por contraste, é a integridade intelectual e o equilíbrio – ativos nem sempre muito valorizados no mercado da popularidade virtual.
Nesse ambiente em que todo antídoto pode revelar-se veneno, algumas incongruências se destacam e chocam mais – a mim, pelo menos. É o que acontece quando o devoto religioso mais pio é a favor da pena de morte ou da homofobia ou quando um defensor do direito dos animais torna-se especialmente raivoso contra o animal humano – às vezes não menos frágil porque tolo.
Por outro lado, se não fossem as redes sociais, jamais saberíamos que as mesmas pessoas que admiram políticos que defendem a tortura e fazem piada com estupros podem ser capazes de enfeitar sua timeline com fotos de gatinhos fofos e cards de corações. Convictas, claro, de que é tudo normal e perfeitamente coerente.


Armandinho - Alexandre Beck

sábado, 22 de junho de 2019

Livre como um táxi - Sérgio Augusto

Numa noite qualquer de maio de 1964, fui, com minha amiga de infância e então colega de redação Ana Maria Martins, que vocês conhecem e admiram como a escritora e acadêmica Ana Maria Machado, ao lançamento da revista de humor Pif-Paf, no Clube Marimbás, desde sempre encostado no Forte Copacabana. A festa foi um sucesso e a revista também, pois, além de Millôr, que a criou e editava, reunia os maiores humoristas da praça.
Mas a Censura do regime militar, no poder havia pouco mais de um mês, não a deixou chegar ao número nove. “Lançar a revista ao lado do forte deve ter sido visto como uma provocação”, provocou Jaguar, um de seus colaboradores.
Outro ilustre colaborador, Sérgio Porto, vulgo Stanislaw Ponte Preta, pouco depois se envolveria com o tabloide A Carapuça, que sobreviveu à Censura mas não à morte do humorista, em setembro de 1968. Murilo Reis, que à frente da Distribuidora Carioca bancara A Carapuça, convidou Tarso de Castro para levar a experiência adiante. Tarso convocou Jaguar e Sérgio Cabral (pai), e ao grupo se incorporaram Claudius, o publicitário Carlos Prósperi e Luiz Carlos Maciel. 
Reunindo-se no bar Jangadeiros, em Ipanema, decidiram de cara que o certo seria inventar um tabloide novo, de humor, amenidades e crítica de costumes. E que, por sugestão de Jaguar, se chamaria, preventivamente, O Pasquim. 
Uma sala no número 100 da rua do Rezende, no centro do Rio, abrigou a primeira redação, acrescida de uma secretária (a inefável Dona Nelma) e um boy (Harold Zager), mais tarde diretor gráfico e factótum do jornal.
Insisto nestes detalhes porque volta e meia apontam, em geral em obituários, que fulano foi “um dos fundadores do Pasquim”. Paulo Francis, Ivan Lessa e Henfil não fundaram O Pasquim, foram agregados à turma, como Ziraldo, que apenas cedeu um cartum da série Os Zeróis para o número de estreia, que chegou às bancas em 26 de junho de 1969. 
Foi de fato ousadíssimo lançar um semanário daqueles em plena ditadura (já vivíamos sob o tacão do AI-5 desde dezembro de 1968): um jornal de esquerda, sem patrão, em que todos os colaboradores podiam escrever o que lhes desse na telha, no estilo de sua escolha. 
Impresso na gráfica do jornal Correio da Manhã, o primeiro número não saiu com o requinte gráfico originalmente projetado por Prósperi. Como se tratava de um pasquim, ninguém chiou. Tinha 20 páginas e duas delas tiveram de ser preenchidas, em cima do laço, com cartuns de Don Martin (da revista MAD) e textos de Groucho Marx. 
No alto da capa, o mascote do jornal, o ratinho Sig (de Sigmund Freud), egresso dos Chopnics, quadrinhos que Jaguar e Ivan Lessa bolaram para o lançamento da cerveja Skol no Brasil, anunciava as principais atrações do número. Sob o logotipo, um dístico que seria seguido à risca: “Aos amigos tudo; aos inimigos, justiça.” 
Jaguar, cauteloso, havia sugerido uma tiragem inicial de 5 mil exemplares. Puseram 14 mil nas bancas, que em dois dias esgotaram, obrigando-os a rodar mais 14 mil. Em 15 semanas, chegou quase aos 80 mil. O número 20 bateu nos 100 mil. E o 22, com a histórica entrevista da atriz Leila Diniz, pulou para 117 mil, alcançando o teto de 200 mil cinco semanas depois. Detalhe fundamental: só de venda em banca. 
O primeiro entrevistado foi o colunista social Ibrahim Sued. Sugestão do Tarso, uma irônica “homenagem” ao padrinho in absentia do jornal, Stanislaw Ponte Preta, que raramente passava um dia sem gozar as asneiras de Ibrahim, em sua página na Última Hora. O improvisado esquema de pôr o entrevistado rodeado pela redação ou parte dela, enchendo a cara de uísque, não apenas deu certo, criou um novo estilo de entrevista, ademais aprimorado pela forma como foi editada. Sozinho na redação, Jaguar, que nem sequer sabia o significado da palavra “copydesk”, transcreveu a entrevista do gravador e a enviou em estado bruto, sem qualquer correção, para a gráfica. Bingo!
O Pasquim pagou caro mas também se beneficiou da audácia de nascer do contra (sobretudo contra as babaquices da classe média) e – para citar alguns de seus dísticos – “livre como um táxi”, “equilibrado como um pingente”, incômodo como “um folião num velório”, “contra o trigo e a favor do joio”, “pequeno mas penetrante”. E, ainda que nos primeiros tempos fosse mais folgazão, gozador, festivo, e mais atento a questões de comportamento, “uma brincadeira num tempo triste”, na concisa avaliação de Francis, aos poucos deixou-se contaminar pelo inevitável: a indignação política. 
Misto de Harakiri (revista de humor francesa, precursora do Charlie Hebdô) com o semanário independente nova-iorquino The Village Voice, anárquico e “modestamente megalômano”, o Pasquim era o bloco do sujo da mídia impressa, um elixir sem remédio nem bula, lido em várias partes do mundo (todas elas no Brasil) e amado por quem valia a pena ser amado. 
Quem mais se surpreendeu com sua fenomenal penetração foram seus próprios redatores e cartunistas. A ditadura e a direita não achavam a menor graça no Pasquim (sem o artigo definido a partir de janeiro de 1970) e tentaram, de tudo quanto é jeito, destruí-lo – com censura, confiscos, prisões e até um atentado à bomba. Para eles, a fina flor da imprensa alternativa não passava de um antro de comunistas, bêbados, pervertidos e drogados, empenhados em difundir ideologias exóticas e subversivas, desencaminhar a juventude e destruir a família brasileira. 
“De tanto ver triunfar as nulidades, o Pasquim acabou dando certo.” A frase é de Millôr, um mea-culpa de seu presságio negativo no primeiro número do jornal, que afinal logrou chegar ao número 1072, o equivalente a 22 anos e cinco meses de vida. Um ano a mais que a ditadura militar, rá! rá!

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Vendo como os outros nos veem - Ignácio de Loyola Brandão

No ar, o perfume de um carneiro sendo assado desde a manhã. Sabia ao partir para Ribeirão Preto, para a 19.ª Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto, que coisas boas me esperavam, mas nunca imaginei que fossem tantas e tão diversificadas. 
Como imaginar um poeta como Renan Inquérito, autor de Poesia pra Encher a Laje, que traz a linguagem urbana, misturada a memes linguísticos, gírias, abreviaturas de WhatsApp, erros intencionais, como imaginar, dizia eu, este homem dialogando no palco com Boaventura de Souza Santos, doutor em sociologia diplomado em Yale, e professor em Coimbra, nos explicando a Ecologia de Saberes: Entre o Rap e a Sociologia, tudo em linguagem que fugia ao hermetismo. 
Como imaginar Sérgio Vaz, poeta, cofundador do Sarau Cooperifa, um precursor da literatura de periferia, deixando a plateia preparada para a professora Amini Boainain Hauy, graduada em Línguas Neolatinas, autora de uma gramática de nossa língua, obra de referência e prêmio Jabuti. Como imaginar uma doce figura – que sabe tudo sobre vampiros – como Heloisa Prieto, autora de 82 livros, chegando depois de uma fala de Estrela Leminski, que lá esteve a desatar “os nós do escritor que tem dentro de cada um”, transformando tudo em poesia. Foi muito. Muito mesmo. 
Saía Marçal Aquino, entrava Marcelino Freire. Logo chegava João Anzanello Carrascoza que se levantava e cedia espaço para o bate-papo Africanidades, com Kiusam de Oliveira. E lançava-se livro por toda parte. Nem acreditei quando, já feliz por ser o patrono da Feira, entrei no palco do Theatro Pedro II e fui recebido pelos gritos de 1.200 jovens do ensino médio. Era a tarde do Combinando Palavras para o lançamento de milhares de Fanzines criados por Angelo Davanço, Arnaldo Neto, Arnaldo Junior e João Francisco Aguiar, em performance exclusiva para os alunos do nono ano da rede estadual de ensino, a partir de textos meus, criados em cima dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Som, muito som com a banda Astrosons. Os fanzines entraram de vez na feira e encantaram a garotada. Um degrau para a leitura. E logo vinha Xico Sá a nos explicar sobre o Mangue Beat e antes de tomar fôlego já estávamos diante de José Miguel Wisnik, sempre soberano, e em seguida mergulhávamos nas falas de Djamila Ribeiro (demais, demais, demais), e já estávamos com a trans Amara Moira e vinha Gilberto Andrade de Abreu, e havia contações de histórias, espetáculos de circo e O Auto da Compadecida, com o grupo Maria Cutia e o Clube de Leitura em ação, e chope black cremoso no Pinguim, e broas delicadíssimas do Una, uma descoberta, sem esquecer a poeta, atriz, slammer e arte-educadora Luiza Romão. E as centenas de ônibus comandados por Michele Furlan, que iam buscar jovens nas escolas, atravessavam a cidade, constantemente, para lá e para cá? E havia os que cuidavam da retaguarda, orientando, atendendo os mínimos caprichos dessa gente esquisita que escreve. Gente paciente como Bettina Vanessa, Priscila, Leticia, Ana Carolina, Nelson, Paula, Daniela, Ana Carolina, Daniela, Gislaine, Nathiele. Vivemos dias e dias em torno da feira, para a feira e pela feira. Discutiu-se o tempo todo a questão educacional (por que ela não chega a todos?) em dezenas de mesas e no salão de ideias.
Nesses dias, sempre que podia, atravessava um canto da feira para curtir a exposição Caras de Ignácio, com caricaturas desenhadas por alunos de todas as escolas. Meu rosto tremulava ao sol estampado em tecidos leves. Uma forma de saber como os outros nos veem. Curioso descobrir como nos interpretam. Pois não é que uma das minhas “caras” era uma pedra – talvez totem – com um furo? Em cada uma havia um quê de mim. Não posso esquecer a manhã em que fui levado para o encontro com 500 alunos do Educandário, que colocaram minha vida sintetizada no palco. Regalias de patrono ao longo desses quase 20 anos. No final, na impossibilidade de fazer selfies com todos, as crianças fizeram fila e dei a mão uma a uma. Uma manhã inteira foi reservada por Laura Abbad – que foi por dez anos da equipe da Feira – e pelos professores do Centro Educacional Marista Irmão Rui para falarmos do livro Os Olhos Cegos dos Cavalos Loucos. Cada um fez um desenho específico ou um texto. Cada um tinha uma pergunta. Horas de questões e curiosidade. Isso resultou em um livro coletivo, precioso exemplar veio comigo.
Vamos mudar o Brasil por meio do ensino, queiram ou não. E aquela menina de 6 anos que, entre 500 estudantes da Escola Vereador José Delibo, segurou minha mão dizendo: “Promete nunca parar de escrever?”. Ao crescer, ela vai se lembrar do primeiro escritor que viu na vida? 
Última noite, sentamo-nos em torno da mesa na casa de Dulce Neves, presidente da Fundação do Livro e da Leitura da cidade, à beira de um espelho de água cheio de peixes e o barulho de uma cachoeira me acalmando de dias e dias intensos. Éramos Edgard de Castro, Adriana Silva e o marido, Viviane Mendonça, o professor Bonaventura e sua mulher Scarlet. Anunciado pelo perfume, chegou à mesa o carneiro assado o dia inteiro por Abranche, marido de Dulce, que o regou com molho de hortelã. A carne dissolveu nas bocas acompanhada por saladas, charutinhos de folha de uva e repolho e vinhos tintos de boa cepa. 
Foi aí que me lembrei de George Orwell e das possibilidades de o Brasil viver um 1984, mas também percebi que aquela festa literária e outras podem demonstrar que a “resistência humana a esses terrores é inextinguível”, nas palavras de Orwell. 
Ao chegar a São Paulo, duas notícias. A boa. A partir de hoje, um grupo de escritores, começando pelo presidente da Academia Brasileira de Letras, Marcos Lucchesi, estará abrindo a Fliaraxá de 2019. Valter Hugo Mãe é o patrono. A triste. Dezenas de escritores, eu entre eles, acabaram de ser desconvidados pela Feira de Livros de Brasília. Vai ter estandes, e livro, mas cancelaram debates e conversas, já que elas incomodam. 

quinta-feira, 20 de junho de 2019

Assincronia - Luis Fernando Verissimo

Nelson Rodrigues chamava Didi de Príncipe Etíope. Didi dominava o meio-campo como se fosse sua herdade, olhos postos no horizonte. Um passe do Didi não era apenas um passe do Didi. Um passe do Didi era um presente, um lançamento do Didi era um ovo Fabergé.
Quando batia uma falta, Didi olhava fundo nos olhos do goleiro e anunciava que o gol seria no ângulo superior direito, e outonal. Significava que a bola entraria no ângulo superior direito, como anunciado, e cairia como uma folha seca de outono.
Descontada a hipérbole natural do Nelson Rodrigues, o Didi era mesmo um artista da bola. Me dou conta de que estou mergulhando num abismo de ignorância e tentando levar comigo esta triste irmandade, a dos que não estavam lá. A dos que nunca viram uma folha seca do Didi. A dos que ouviram falar, mas não acreditaram nos dribles do Garrincha.
A primeira visão do Maracanã lotado, jogo noturno. E o Pelé, no tempo em que qualquer estádio do País lotava para ver o fenômeno jogar.
Não é saudosismo, não. É que vi o jogo contra a Venezuela escrevendo esta coluna ao mesmo tempo que tive uma crise de assincronia, se é que existe a palavra. Saudades do Nelson Rodrigues.

Pelo telefone - Antonio Prata

O cara tá recostado sobre dois travesseiros, na cama de um quarto de hotel. Ao lado dele, no celular estrategicamente apoiado num terceiro travesseiro, uma oriental ruiva faz sexo com um time de futebol americano. O cara vai abrir a calça, mas se dá conta do absurdo e para. O absurdo não é a oriental ruiva com um time de futebol americano, é ele se masturbar olhando pra um telefone.
Enquanto a moça faz malabarismos na telinha de cristal líquido, ele se lembra da infância. Um telefone era uma geringonça que trazia ou levava a voz por uns furinhos e custava o mesmo que um Fusca. Morria uma tia, aparecia lá no inventário: um apartamento na Aclimação, uma chácara em Jandira, uma linha telefônica. Agora, uma linha sai por o quê? Vinte mensais? Ele não sabe e decide parar de pensar no assunto, pois sua cabeça já tá indo pra privatização das teles e o que ele menos queria quando apoiou o celular no travesseiro era visualizar o rosto do Sérgio Motta.
Ele tira a calça, resolve mudar de filme e volta pro menu do site. Uma gordinha com macacão de detenta fazendo um boquete num loiro vestido de guarda. Um senhor branco com uma jovem indiana. Um jovem negro com uma senhora bronzeada. Um caminhoneiro com duas cheer-leaders. Doze cheer-leaders sem nenhum caminhoneiro. Uma suruba carnavalesca dos anos oitenta. Mãe e filha amarrando um entregador de pizza a uma cadeira.
O cara abre o menu por categorias, hesita entre POV (ponto de vista), Gang Bang (muitos homens com uma mulher), Amateur (vídeos amadores – ou vídeos profissionais imitando vídeos amadores) e Wild & Crazy, onde encontra um homem fantasiado de panda sodomizando uma garota vestida de índia Apache.
Diante da miríade de opções, ele se distrai de novo, lembrando da sua adolescência. Quando vê, está dando uma bronca imaginária num moleque de 15 anos que ele nunca viu. “Cê não tem direito de reclamar da vida, moleque! Se você quer ver mulher pelada, hoje, basta tirar o telefone do bolso! No meio da aula! No ponto de ônibus! Esperando chamarem tua senha na fila do cartório! Filmes hétero! Filmes gays! Pandas com índias Apache!
Você sabe a dificuldade que era arrumar uma mísera revistinha de sacanagem no meu tempo?! Tinha que ter coragem de ir lá na banca! E o dono da banca conhecia a nossa mãe, a nossa irmã, a nossa avó! Era Playboy e olhe lá! Às vezes, a gente tinha que se virar com uma Boa Forma, mesmo! Teve umas férias na praia em que eu passei uma semana inteirinha com uma Casa Cláudia, só porque, numa matéria sobre saunas, aparecia uma mulher de maiô! De maiô! Na Casa Cláudia, moleque! E você ainda vem reclamar da vida?! Hein?!”
Quem seria aquele moleque, por que o moleque reclamava da vida e o que o cara tinha a ver com isso, jamais saberá. Mesmo porque o telefone toca sobre o travesseiro e o pessoal avisa que já tá no lobby. Ele se veste correndo, desce e em 15 minutos está na sala de conferências, apresentando um Datashow sobre mudanças na logística de transporte de perecíveis para 36 funcionários da rede de supermercados na qual ele é subgerente regional de distribuição. Só voltará pro quarto nove horas mais tarde, bêbado, cairá na cama sem tirar a roupa e sonhará com o Sérgio Motta, vestido de índia apache.

quarta-feira, 19 de junho de 2019

O Coma da Ira - Denise Fraga

Nos batíamos bem, eu e meu irmão. Eu tinha mordidas e unhas infalíveis contra os seus crescentes músculos. Apesar do desespero de minha mãe, parecia normal resolvermos nossas diferenças na mão. Até o dia em que o mandei pro hospital. Eu já não confiava tanto nas minhas mordidas e, fugindo do brutamontes que ele tinha virado, achei uma boa ideia usar a pá de lixo esquecida no canto do quintal. Me lembro do susto em seu rosto, do talho no meio das costas e do meu arrependimento antes mesmo que escorresse a primeira gota de sangue. Aquilo, então, podia acontecer. E eu o tinha feito. E o tempo não voltaria para trás.
O corte não cicatrizou na minha cabeça. São muitas as vezes que me lembro desse dia. Mais do que deveria. Um instante, um triz, um lapso de sanidade e eu poderia ter feito uma besteira das grandes aos 12 ou 13 anos de idade. Agradeço o seu reflexo, a virada, Deus com pena de mim.
Esta semana, estive lendo uma reportagem sobre coma alcoólico e descobri que ele é uma defesa do nosso corpo. Ao beber, perdemos o freio e, para que ninguém acelere até a morte, a sábia natureza nos nocauteia antes. Mais uma vez, lembrei do corte nas costas do meu irmão e desejei que existisse uma espécie de coma do ódio. Quando o índice de ira chegasse a certo nível, cairíamos desmaiados antes de qualquer bobagem dita ou sangue derramado. Não seria bom? Tantos arrependimentos poupados. Seríamos, por natureza, protegidos de nós mesmos.
Tenho me perguntado quem nos protege de nós mesmos nestes tempos esquisitos? A intolerância anda nadando de braçadas num mar de ignorância e má informação. O ódio pulsa em exercício diário, tornando-se muitas vezes, a primeira e cega alternativa. Quem interrompe esta corrente que parece se retroalimentar? Escândalos diários, falcatruas explícitas, estupros coletivos, epidemias, tudo filmado e nenhum infarto? Uma alta de pressão que seja? Nada? Não vamos ver sequer um desmaio de desgosto em rede nacional?
A raça humana está ficando cascuda. E quem nos protege de nós?

terça-feira, 18 de junho de 2019

No ninho das Perdizes - Humberto Werneck



Em Perdizes? Nas Perdizes? 
Cheguei aqui faz mais de 40 anos, e até hoje não sei se moro em ou nas. Prefiro em, mas parece que a outra fórmula tem fundamento histórico. Você deve ter ouvido falar (eu mesmo já contei alhures) que nesta região da capital paulista, aí por meados do século 19, havia umas tantas chácaras, e que uma delas, ali onde é o Largo Padre Péricles, pertencia a um camarada chamado Joaquim Alves, que vivia de vender garapa. 
Pois bem, o garapeiro Joaquim tinha uma enteada, de nome Teresa de Jesus Assis, a qual criava no quintal da casa umas perdizes, aves essas que, além de ovos e boa carne, produziam naquela pasmaceira um alarido sem tamanho. De onde vem esse escarcéu? – indagavam os passantes. “Dos campos das perdizes”, informava a vizinhança. Não tardou que o lugar ficasse conhecido como “as Perdizes”. Antes assim. Já pensou se a criação da Teresa fosse de outro bicho? Sim, esse bicho aí, tão estigmatizado, em que você está pensando. 
(Parêntese ornitológico: ou muito me engano – e-mails à Redação – ou apenas um outro bairro paulistano, o Jaçanã, leva nome de ave. Até isso faz de Perdizes avis rara. Raro canto de São Paulo, aliás, onde ainda se pode ouvir bater um sino, sino de verdade, não de gravação, sendo que o mais badalado é o da igreja do Largo do Padre Péricles, o mesmo que em 7 de setembro de 1822 anunciou a fiéis & infiéis a proclamação da Independência, ocorrida uma hora antes às margens ainda plácidas do Ipiranga.) 
Perdiz, convenhamos, é ave bem simpática (embora talvez não fosse bem essa a opinião dos vizinhos da Teresa). Ave de família, inclusive – aqui está o Houaiss, que não me deixa mentir: “da família dos tinamídeos”, cuja denominação latina é Rhynchotus rufescens. Atende também por cinco outros nomes: enapupês, inhambuapé, inhapupê, napopé e nhampupê. Ainda bem que nenhum desses prevaleceu na hora de batizar o bairro: já pensou morar nas (ou em) Nhampupês? Saiba, por fim, que se trata de “espécie que sofre muita pressão de caça”, e que o macho da perdiz “é responsável pela incubação dos ovos e pelo cuidado com os filhotes”. Não, definitivamente não vai mal essa conotação, digamos, feminista, de marmanjo que divide com a companheira as tarefas domésticas e familiares, a um bairro onde vive tanta gente de cabeça feita.
Mais que isso: cabeça feita, muitas vezes, aqui mesmo em/nas Perdizes – não fosse meu bairro farto em “usinas do saber”, como outro dia ouvir alguém dizer. A começar pela PUC, estabelecida desde o fim dos anos 1940 naquele prédio em estilo neocolonial construído no início da década de 1920 para ser convento das Carmelitas Descalças. Foram-se as carmelitas pé no chão, veio a galera de sandália. 
Inesquecíveis momentos ali: a inauguração do Tuca, o Teatro da Universidade Católica, em 11 de setembro de 1965, com a montagem de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, espetáculo musicado por um moleque de nome Francisco Buarque de Hollanda, dito “Carioca”, morador na rua Buri, 35, no vizinho Pacaembu; o discurso com que Caetano Veloso reagiu à vaia de quem não o deixou cantar É Proibido Proibir num festival de MPB em 1968; o mesmo Caetano, em janeiro de 1972, na volta do exílio, ignorando o clamor dos penitentes que pediam É Proibido Proibir; a alegre multidão que depois de um show saiu pela madrugada atrás da flauta de Hermeto Pascoal, que nem, mal comparando, aqueles ratos no rastro do flautista de Hamelin. Há também lembranças ruins: a invasão da PUC pela polícia da ditadura, com centenas de prisões, em 1977, e os dois incêndios que em 1984 destruíram o Tuca. 
Com tanto fuzuê, com tanta animação, fica difícil crer que Perdizes não esteve no mapa, em sentido literal, até que a Prefeitura o entronizasse, em 1897. Depois disso, só progresso. Em seus 6,34 km² – vá perdoando o tom de verbete –, se acantonam, conforme a contagem mais recente, 111.161 cidadãos, sendo este cronista, modestamente, responsável pelo algarismo que arremata a cifra. É lamentável que já não vivam aqui (ou em qualquer outra parte) os poetas Décio Pignatari e Haroldo de Campos, ambos por motivo de falecimento. Mas segue operante, com muito de concreto para dar, o outro mosqueteiro da aguerrida trindade, Augusto de Campos.
Também se mandaram, faz tempo, o Kaká e o Ney Matogrosso, ex-moradores (eu também) daquele trecho da Monte Alegre em que a rua se interrompe para recomeçar muitos metros abaixo, no pé de uma escadaria. O Ademir da Guia. A Inezita Barroso. 
Nós, remanescentes, sentimos a sangria, mas nos consola constatar que continuam por aqui, entre outros ases das artes, o Tomzé, jardineiro voluntário do prédio onde mora; o poeta Heitor Ferraz; os romancistas Ivan Angelo e Luiz Ruffato. Volta e meia topo com um deles na rua, na padoca, na tradicional livraria Cortez ou na acolhedora Zaccara, do Lúcio Cláudio idem – perdiziano, criemos a palavra, desde 1957, quando o trouxeram da maternidade. 
Não falei que este é um bairro de gente de cabeça feita? A mais recente prova disso foi o surgimento de uma Academia que, embora formada por escribas, quase todos dos bairro, não é de Letras, e sim de Litros, a qual, por ser merecedora de conversa à parte, vai ficar para uma próxima.



sexta-feira, 14 de junho de 2019

Batman & Chaplin - Antonio Prata

Dentre os inúmeros objetos que pertencem ao reino da comédia – como o funil, a tuba, a gravata borboleta e o saca-rolhas –, tenho um apreço especial pelo guarda-chuva, esse fiel e destrambelhado companheiro.
Eu disse fiel, e algum leitor, lembrando-se de todos os guarda-chuvas deixados no chão de táxis, na porta de restaurantes, na casa de amigos, pode discordar. Não os acuse injustamente, meu caro: a culpa por essas perdas não foi deles, mas de sua distração.
Muito diferente do que acontece com Bics e isqueiros, por exemplo, esses sim seres nada confiáveis, vagabundos, beatniks que mal entram num bolso e já querem pular pro próximo, ansiosos por tocar novos dedos, escrever outros textos, provar diferentes cigarros. Uma Bic ou um isqueiro perdidos estão livres: um guarda-chuva abandonado é órfão. (Talvez por isso, aliás, já venha ao mundo de luto.)
Se fosse apenas fiel e triste, porém, como um velho mordomo num romance do século 19, eu não teria nenhum apreço pelo guarda-chuva. O que me encanta nessa improvável traquitana é que por trás de sua aparente seriedade, por baixo de seu solene black-tie, encontra-se, como eu dizia lá no começo, um humorista.
Você está andando pela Paulista num dia de chuva. Observa, deslizando pela calçada, a cordilheira de abóbadas negras, competentemente armadas. Então, aproveitando uma rajada de vento, um desses comediantes joga o fraque pra cima, pelo simples prazer de exibir suas anáguas de metal, como uma dançarina de cancã. Um chacoalhão de seu dono e o pândego volta ao normal, fingindo que nada aconteceu, com a ironia britânica que lhe é peculiar.
Lorde inglês, dançarina de cancã, percebe? Poucos objetos são mais contraditórios. Visto por cima, vestido balonê; por baixo, revolução industrial. Armado, miniparaquedas; fechado, banana passa.
Sempre que, em qualquer canto do globo, um guarda-chuva é aberto, põe-se em movimento o eterno cara ou coroa entre a Ordem e o Caos. Por centenas de vezes, o anel desliza perfeitamente pela haste, as varetas se erguem, a lona estica: Apolo venceu. Um dia, contudo, um dia em que este caprichoso filho de morcego com bicicleta acordou com a pá virada, cada ossinho de metal resolve mover-se prum lado; onde deveria desabrochar o hirto semicírculo surgem mil cotovelos, em vez da perfeição esférica temos um Bicho da Lygia Clark – e é assim, com uma gargalhada de Dionísio, que morre um guarda-chuva.
Morre, mas só individualmente. Coletivamente, apesar de seu óbvio anacronismo (é primo do 14 Bis, irmão da máquina de escrever, namorou uma suffragette), resiste. E não ache que são poucas as tentativas de superá-lo. Segundo uma matéria da revista New Yorker, o órgão responsável pelas patentes nos EUA tem mais de três mil registros relativos aos guarda-chuvas, e a cada mês chegam tantos outros que há quatro funcionários só para cuidar dessa área.
No pasarán!, digo eu. “Eu, passarinho”, dirá o guarda-chuva, e, esquecido no chão, aberto, aproveita a primeira lufada para sair voando – outra de suas brincadeiras favoritas –, desengonçado como uma galinha, como um gordo dançando balé, como um gorila brincando nos trapézios, irretocável em sua harmoniosa desconjunção.

quarta-feira, 12 de junho de 2019

O ovo e a galinha - Roberto DaMatta

O motivo era banal, embora o assunto fosse por demais complicado. Num gesto generoso, titia serviu ovos cozidos para todos nós, “meninos” ou “crianças”, na grande e lateral varanda da “nossa casa”, no bairro do Ingá, em Niterói. Digo nossa com aspas porque vovô Raul, conquanto fosse um desembargador aposentado e membro da elite do Estado do Amazonas, não deixou nenhuma casa, mochila com dinheiro ou fortuna. Dele herdamos uma certa consciência civilizatória hoje em desuso e franca destruição.
Foi um acontecimento e uma alegria ter aqueles ovos cozidos que só os adultos saboreavam com cerveja, à nossa disposição – uns oito ou nove meninos – cujas iguarias eram pão com muita manteiga, doce de leite condensado e preciosas moedas de chocolate. 
Estávamos devorando os ovos quando surgiu a questão: Quem vinha primeiro; a galinha ou o ovo? 
Ivo – um menino levado, que havia experimentado poucas uvas e nenhuma Eva – respondeu: “A galinha, é claro; é ela quem bota os ovos que estamos comendo!”. Já o Maureca, cujo sonho era ser oficial de Marinha retrucou – com aquela inflexão grave e bíblica dos entendidos em política – “nada disso, quem vem primeiro é o ovo!”.
*
Passa o tempo e, um dia, num encontro internacional no Instituto de Antropologia Social da Universidade de Nova Caledônia, nos Estados Unidos, num seminário presidido pelo famoso e pioneiro brasilianista Richard Moneygrand, 10 ou 12 profissionais da disciplina do desengano, a tal Antropologia Social que fala daquilo que todos pensam que sabem, mas não sabem e, horrorizados, ficam sabendo que há saberes distintos; discutíamos justamente quem vinha primeiro: se era o indivíduo (com suas paixões e interesses) ou a sociedade (com suas regras e tabus). 
Foi um debate danado até que alguém sugeriu que um termo dependia do outro. Eles surgiam como opostos em certas ocasiões, mas, no fundo, complementavam-se. No fundo, disse o Dr. William Fly, do Imperial College, quem inventava o indivíduo como protagonista era uma situação – logo, a sociedade. 
Seria preciso admitir como é complexo individualizar e quando vivemos o individualismo como um valor, sentimos o peso das éticas e, com elas, o protagonismo implícito da sociedade. A visão de perto nos entrega indivíduos, a distanciada põe sua existência em dúvida. 
*
O ovo comido como “comida” é mais concreto do que a sua relação com a galinha, com o cozimento e com quem o cozinhou. Somos nós que vestimos roupas, ou são elas que nos vestem? Uma dor de dente fratura o nosso corpo como um todo e chama atenção para uma de suas partes. Para alguns psicólogos, a “dor” é essa consciência aguda de alguma coisa. O sofrimento – como a arte – é uma ruptura com um todo. 
*
A essa altura vale perguntar, com um velho jornalista, se era ele quem escrevia no jornal ou se era o jornal que nele se escrevia... 
*
Não posso deixar de assinalar que essa reunião dedicada ao estudo dos elos entre a parte (o indivíduo) e o todo (a sociedade) aconteceu num 12 de junho, uma data transformada pela nossa permanente (mas inconsciente) magia num “Dia dos Namorados”. 
Quando se fabrica um dia especial ou um momento destacado, continuou o professor Fly, dando substância aos seus argumentos e imediatamente questionando se os feriados (nos quais nos livramos do trabalho como chamado e castigo) não seriam “momentos da sociedade” ou do “todo” impostos aos indivíduos que assim se sentem parte dele.
*
Horas depois, vi o velho professor Eduard Fox, de Oxford, dando discretamente umas flores a Miss Gloria (apelidada de Miss Delicious), a eficiente secretária do nosso encontro. 
Honrando esse glorioso “Dia do Namorados”, acrescento que nele não celebramos apenas os namorados, mas o “enamoramento”. A maravilhosa fascinação freudiana de uma relação caracterizada pelo abandono de uma consciência em favor de outra. Forma de entrega na qual o corpo se confunde com a alma por meio do coração, como diziam os antigos.
O enamoramento abre o paraíso na dura realidade da vida. Ele dissolve galinha e ovo. Nele, permita-me o leitor, some também a distância entre o menino carente e o velho também carente.

terça-feira, 11 de junho de 2019

Mil ministros cheios de fé no Supremo - Ignácio de Loyola Brandão

S. Fenerek é homem justo, democrata, deseja igualdade para todos. Gosto de conversar com ele sobre generalidades e dia desses, logo depois que o presidente emitiu novo parecer fálico, para entender melhor o alcance de certas ações corremos ao primeiro volume da História da Virilidade, organizada por Jean Corbin, Jean Jacques Courtine e Georges Vigarello, editora Vozes, e ali encontramos uma nota sobre Jacques de Fonteny (século 17), que escreveu uma pastorinha, L’Eumorphopémie ou Le Beau Pastor, na qual o autor imaginou um mundo de homens, exclusivamente de homossexuais apaixonados e viris. Machos. Teria a ver? 
Imaginamos um seminário estilo Casa do Saber, mas fomos atraídos para outro assunto. Porque o homem lá em cima é um repositório precioso, enciclopédico. Não é que ele pensa em nomear um evangélico como ministro do Supremo? Nada com o evangélico, desde que versado em leis, sábio, ponderado. Fenerek, o erudito de Santa Adélia, ficou indignado. 
“Como? Somos ou não somos um país laico? Se nomear um evangélico, tem de nomear um protestante.”
Antes que ele continuasse, acrescentei:
“E um mórmon.”
“Tem razão. E por que não também um batista?”
“E um da Igreja Universal.”
“Sem esquecer uma Testemunha de Jeová.”
“E não pode faltar um espírita kardecista.”
“Deve caber lá também um pentecostal.”
“E um pai de santo.”
“Do jeito que anda o Supremo vai precisar de muitos pais de santo.”
“E alguém bahá’í.”
“Ponha também um messiânico.”
“O Messi também criou uma religião?”
“Nada a ver, falo do culto.”
“Epa, e o budismo?”
“Acrescente o taoismo.”
“Também o xintoísmo.”
“Ah! E o umbandista.”
“Os sikhs indianos.”
“E um pajé.”
“Xi! Se põe índio, o ministro do Meio Ambiente e o pessoal do agronegócio fazem manifestação de rua.”
“Falta alguém do judaísmo.”
“Se entra um, vem também um islâmico, afinal democracia é democracia.”
“Já colocamos alguém do Evangelho Quadrangular?”
“Tem também a Igreja Deus e Amor.”
“E o do candomblé.”
“O da macumba.”
“Isso, temos de ter cuidado para não nos acusarem de preconceituosos ou politicamente incorretos.”
“Acabei de me lembrar da Religião da Divina Sabedoria.”
“E a das Treze Cruzes Sobre o Altar.”
“Há igualmente a dos Adoradores da Verdadeira Bíblia.”
“Acabei de me lembrar dos Seguidores de Mahavira.”
“Já pusemos os brâmanes?”
“Não esqueçamos os Seguidores do Barqueiro de Utnapishtim.”
De repente, veio um silêncio. Nem S. Fenerek, o venerável, e eu nos lembrávamos de mais religiões, apesar de sabermos que são milhares. E, portanto, os ministros terão de ser milhares. E como o Supremo trata de Justiça, os ministros teriam de saber leis, Constituição, etc. Ou não? Passariam a rezar, cada um orando pelo seu deus, esperando que assim o País caminhe? Afinal, Deus está acima da pátria. Será necessário construir centenas de edifícios que abriguem milhares de religiosos-ministros e seus assessores. Epa, epa! Como dizem em Santa Adélia e em Araraquara. E se um dos três filhos indicar o Queiroz, o milagroso das finanças, para comandar e pagar os assessores?

Memorando - Sérgio Augusto

Gerúndio do verbo memorar, que herdamos do latim, memorando significa “que deve ser lembrado”. Serviu de título a uma experiência literário-teatral de Geraldo Mayrink e Fernando Moreira Salles, editada em livro há 26 anos e na época encenada com Irene Ravache e Paulo José, em palcos distintos, pois Memorando é um monólogo. Expandido por Moreira Salles (Mayrink morreu em 2009), o afetuoso solilóquio mnemônico estará de volta às livrarias e ao palco na próxima semana. 
Inspirado nas assemblages de reminiscências urdidas por Joe Brainard (I Remember) e Georges Perec (Je Me Souviens), é um Amarcord verbal, com recordações pessoais que também marcaram a história e a memória coletiva de uma geração, dos anos 50 a 80. “Um drama sem drama da busca de referências comuns”, na definição de um dos autores, pontuado do início ao fim com um antifônico “Eu me lembro”. 
Suas madeleines reavivam migalhas de relevantes ocorrências e abobrinhas do cotidiano dormentes no córtex pré-frontal de muitos de nós e, de quebra, nos estimulam a exumar a esmo nossas próprias lembranças. Com ênfase em momentos felizes, que Freud afirmava ser uma necessidade incontrolável do ser humano. Sem no entanto excluir os momentos graves e muito menos os neutros, como, por exemplo, os conhecimentos de pouca ou nenhuma utilidade pela vida afora, como “a soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa” e os afluentes, nas duas margens e em ordem, do Rio Amazonas.
Alguns highlights de Memorando:
“Eu me lembro que nem tudo que reluz é ouro e nem tudo que balança cai”.
“Eu me lembro que, no jogo do bicho, vale o que está escrito.”
“Eu me lembro que, criança, quando não terminava minha comida, lembravam-me dos milhões de chinesinhos que morriam de fome. Fora a culpa, por via das dúvidas, nunca entendi por que não terminar meu prato ia resolver alguma coisa.”
“Eu me lembro, pequeno e doente, que achava que o que fazia baixar minha febre era a mão da minha mãe passando em minha testa.”
“Eu me lembro que os políticos de antigamente sabiam escrever.” 
(Ao que eu acrescentaria: e também sabiam falar.)
E, já que me meti na brincadeira, vou em frente com este memorando de fabricação caseira:
Eu me lembro que, no cinema, rico ria à toa, os brutos também amavam, os bravos morriam de pé, os criminosos não mereciam prêmio, o homem mau dormia bem, o sol brilhava na imensidade, os homens preferiam as louras, tristezas não pagavam dívidas, a luz era para todos e da terra nasciam os homens.
Eu me lembro dela, na gafieira, toda certinha dentro de um vestido saco, tendo ao lado um cara fraco, mas não fui tirá-la para dançar.
Eu me lembro que por duas polegadas a mais passaram a baiana Marta Rocha para trás.
Eu me lembro da “espada da legalidade” do marechal Teixeira Lott.
Eu me lembro das sessões passatempo dos cinemas Cineac e Capitólio.
Eu me lembro da injusta vaia ao Sabiá, de Tom e Chico. 
Eu me lembro das mãos enormes de Fritz Lang me abraçando no apartamento de José Lino Grünewald.
Eu me lembro de um comercial da PRK-30, que dizia assim: “Meu amigo, não sinta frio, use a lã Kardec. A lã Kardec aquece até a alma”.
Eu me lembro que Mulsified Shampoo Perfumado deixava os cabelos sedosos, Antisardina era o segredo da beleza feminina, Dorly era o sabonete dos heróis e Óleo de Peroba era o supremo removedor dos móveis.
Eu me lembro de cantar “Eva coava/ o café que Adão tomava/ Mas um dia Adão furou o coador/ E nunca mais Eva coou”.
Eu me lembro da Teresa da praia. Tinha uma pinta do lado.
Eu me lembro de Sharon Tate, na piscina. Tinha uma pequena cicatriz no joelho esquerdo.
Eu me lembro das aventuras do Anjo, Campeão, Metralha e Gorila, todas as noites na Rádio Nacional.
Eu me lembro de Tocha Humana e Centelha, de Arqueiro Verde e Ricardito, de Capitão Atlas e Índio Chico, de Jerônimo e Moleque Saci.
Eu me lembro dos festivais Tom & Jerry, nos cinemas Metro, com seu ar refrigerado de montanha.
Eu me lembro do Pi: 3,14159265359, e da fórmula mágica de Ted Múltiple: 3x2(9YZ)4a. 
Eu me lembro que, nos gibis americanos, Ted Múltiple se chamava Johnny Quick e Nick Holmes, Rip Kirby.
Eu me lembro do Intermezzo da ópera Notre-Dame, de Von Schmidt, a embalar as mais arrebatadoras cenas de amor das novelas da Rádio Nacional.
Eu me lembro de Tancredo e Trancado, das Piadas do Manduca, de Levertimentos, da Cidade se Diverte.
Eu me lembro de Tom Jobim empolgado com Carlos Castañeda, Fernando Sabino com Zélia Cardoso de Melo, Glauber Rocha com o general Golbery, Paulo Francis com Helen Reddy e João Ubaldo com Doris Day. 
Eu me lembro do Golias gritando “Crides!”.
Eu me lembro da linda normalista, vestida de azul e branco, trazendo um sorriso franco no rostinho encantador, a caminho de um lendário rendez-vous de alunas do Instituto de Educação que nunca vi e muito menos frequentei.
Eu me lembro do apólogo da agulha e a linha, dos Meus Oito Anos, do Tratado de Tordesilhas, das Capitanias Hereditárias, dos Cabildos e Ayuntamientos.
Eu me lembro do quebra-quebra nos bondes do Rio e na estreia de Ao Balanço das Horas, as duas maiores balbúrdias juvenis de 1956.
Eu me lembro das intermediárias dos grandes times cariocas: Jadir, Dequinha e Jordan; Rubinho, Ávila e Juvenal; Jair, Edson e Bigode; Ely, Danilo e Jorge. E da intermediária do meu time de botão: Calígula, Claudio e Nero.
Eu me lembro do velho da porta da Colombo. Era um assombro.
Eu me lembro da Maria Candelária, funcionária pública letra O, que à uma ia ao dentista, às duas ao café, às três à modista, e às quatro assinava o ponto e dava no pé.
Eu me lembro de Ava Gardner morrer no dia do meu aniversário.
Eu me lembro do atentado no Riocentro e da “bomba neném”, assim apelidada porque explodiu no colo de um dos terroristas.
Eu me lembro do Real valer um dólar e o PIB subir 9,49%.
Eu me lembro de a gente saber que éramos felizes, apesar da ditadura militar.

Lá - Luis Fernando Verissimo


Estavam naquela zona etílico-filosófica que precede as grandes sacadas e as grandes ressacas. Não poderiam dizer se já tinham passado pela fase da cachaça pura, rumo à fase dos chopes. O importante era manter a linha.
– Obrigado por ontem, hein cara?
– O que que houve ontem?
– Você me levou em casa no seu carro.
– Eu? Impossível.
– Por quê?
– Eu não tenho carro.
– Tem certeza que era eu?
– A esta altura, não tenho certeza que era EU!
– Sua mulher não estranhou você chegar tarde em casa? 
– Não, não. Aliás, nem podia. Eu não tenho mulher.
– Alemão, mais uma rodada disso que nós estamos tomando, seja o que for.
*
Um pouco depois – ou antes, nessas situações a cronologia é o que mais sofre – a conversa derivou naturalmente para o monte Everest.
– Quem foi que disse aquela frase genial?
– Que frase?
– Perguntaram pro cara por que ele tinha subido o monte Everest e ele pimba, respondeu na lata. Quem era o cara?
– A frase dele foi uma explicação sobre o que leva as pessoas a subir no Everest mesmo com o risco de morte. O que leva qualquer um a desafiar os perigos de uma assunção, ascensão... Acho que estou ficando bêbado.
– Hillary! Me lembrei.
– Não acredito que a senhora Clinton...
– Senhora Clinton não. Edmund Hillary. Foi o autor da frase.
– Espera aí. Também estou me lembrando! O autor da frase foi George Mallory, que morreu tentando escalar o pico do Everest e desapareceu para sempre.
– E o que ele disse quando lhe perguntaram por que as pessoas escalam o Everest?
– “Porque ele está lá”. 
– Cumé?
– “Porque ele está lá”. Não é genial?
– Minha vó também está lá, o que não me dá nenhuma vontade de pular nas suas costas.
– É. Um pouco inglês demais pra gente.
– Alemão, mais uma rodada! 

Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...