quarta-feira, 19 de junho de 2019

O Coma da Ira - Denise Fraga

Nos batíamos bem, eu e meu irmão. Eu tinha mordidas e unhas infalíveis contra os seus crescentes músculos. Apesar do desespero de minha mãe, parecia normal resolvermos nossas diferenças na mão. Até o dia em que o mandei pro hospital. Eu já não confiava tanto nas minhas mordidas e, fugindo do brutamontes que ele tinha virado, achei uma boa ideia usar a pá de lixo esquecida no canto do quintal. Me lembro do susto em seu rosto, do talho no meio das costas e do meu arrependimento antes mesmo que escorresse a primeira gota de sangue. Aquilo, então, podia acontecer. E eu o tinha feito. E o tempo não voltaria para trás.
O corte não cicatrizou na minha cabeça. São muitas as vezes que me lembro desse dia. Mais do que deveria. Um instante, um triz, um lapso de sanidade e eu poderia ter feito uma besteira das grandes aos 12 ou 13 anos de idade. Agradeço o seu reflexo, a virada, Deus com pena de mim.
Esta semana, estive lendo uma reportagem sobre coma alcoólico e descobri que ele é uma defesa do nosso corpo. Ao beber, perdemos o freio e, para que ninguém acelere até a morte, a sábia natureza nos nocauteia antes. Mais uma vez, lembrei do corte nas costas do meu irmão e desejei que existisse uma espécie de coma do ódio. Quando o índice de ira chegasse a certo nível, cairíamos desmaiados antes de qualquer bobagem dita ou sangue derramado. Não seria bom? Tantos arrependimentos poupados. Seríamos, por natureza, protegidos de nós mesmos.
Tenho me perguntado quem nos protege de nós mesmos nestes tempos esquisitos? A intolerância anda nadando de braçadas num mar de ignorância e má informação. O ódio pulsa em exercício diário, tornando-se muitas vezes, a primeira e cega alternativa. Quem interrompe esta corrente que parece se retroalimentar? Escândalos diários, falcatruas explícitas, estupros coletivos, epidemias, tudo filmado e nenhum infarto? Uma alta de pressão que seja? Nada? Não vamos ver sequer um desmaio de desgosto em rede nacional?
A raça humana está ficando cascuda. E quem nos protege de nós?

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