sexta-feira, 21 de junho de 2019

Vendo como os outros nos veem - Ignácio de Loyola Brandão

No ar, o perfume de um carneiro sendo assado desde a manhã. Sabia ao partir para Ribeirão Preto, para a 19.ª Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto, que coisas boas me esperavam, mas nunca imaginei que fossem tantas e tão diversificadas. 
Como imaginar um poeta como Renan Inquérito, autor de Poesia pra Encher a Laje, que traz a linguagem urbana, misturada a memes linguísticos, gírias, abreviaturas de WhatsApp, erros intencionais, como imaginar, dizia eu, este homem dialogando no palco com Boaventura de Souza Santos, doutor em sociologia diplomado em Yale, e professor em Coimbra, nos explicando a Ecologia de Saberes: Entre o Rap e a Sociologia, tudo em linguagem que fugia ao hermetismo. 
Como imaginar Sérgio Vaz, poeta, cofundador do Sarau Cooperifa, um precursor da literatura de periferia, deixando a plateia preparada para a professora Amini Boainain Hauy, graduada em Línguas Neolatinas, autora de uma gramática de nossa língua, obra de referência e prêmio Jabuti. Como imaginar uma doce figura – que sabe tudo sobre vampiros – como Heloisa Prieto, autora de 82 livros, chegando depois de uma fala de Estrela Leminski, que lá esteve a desatar “os nós do escritor que tem dentro de cada um”, transformando tudo em poesia. Foi muito. Muito mesmo. 
Saía Marçal Aquino, entrava Marcelino Freire. Logo chegava João Anzanello Carrascoza que se levantava e cedia espaço para o bate-papo Africanidades, com Kiusam de Oliveira. E lançava-se livro por toda parte. Nem acreditei quando, já feliz por ser o patrono da Feira, entrei no palco do Theatro Pedro II e fui recebido pelos gritos de 1.200 jovens do ensino médio. Era a tarde do Combinando Palavras para o lançamento de milhares de Fanzines criados por Angelo Davanço, Arnaldo Neto, Arnaldo Junior e João Francisco Aguiar, em performance exclusiva para os alunos do nono ano da rede estadual de ensino, a partir de textos meus, criados em cima dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU. Som, muito som com a banda Astrosons. Os fanzines entraram de vez na feira e encantaram a garotada. Um degrau para a leitura. E logo vinha Xico Sá a nos explicar sobre o Mangue Beat e antes de tomar fôlego já estávamos diante de José Miguel Wisnik, sempre soberano, e em seguida mergulhávamos nas falas de Djamila Ribeiro (demais, demais, demais), e já estávamos com a trans Amara Moira e vinha Gilberto Andrade de Abreu, e havia contações de histórias, espetáculos de circo e O Auto da Compadecida, com o grupo Maria Cutia e o Clube de Leitura em ação, e chope black cremoso no Pinguim, e broas delicadíssimas do Una, uma descoberta, sem esquecer a poeta, atriz, slammer e arte-educadora Luiza Romão. E as centenas de ônibus comandados por Michele Furlan, que iam buscar jovens nas escolas, atravessavam a cidade, constantemente, para lá e para cá? E havia os que cuidavam da retaguarda, orientando, atendendo os mínimos caprichos dessa gente esquisita que escreve. Gente paciente como Bettina Vanessa, Priscila, Leticia, Ana Carolina, Nelson, Paula, Daniela, Ana Carolina, Daniela, Gislaine, Nathiele. Vivemos dias e dias em torno da feira, para a feira e pela feira. Discutiu-se o tempo todo a questão educacional (por que ela não chega a todos?) em dezenas de mesas e no salão de ideias.
Nesses dias, sempre que podia, atravessava um canto da feira para curtir a exposição Caras de Ignácio, com caricaturas desenhadas por alunos de todas as escolas. Meu rosto tremulava ao sol estampado em tecidos leves. Uma forma de saber como os outros nos veem. Curioso descobrir como nos interpretam. Pois não é que uma das minhas “caras” era uma pedra – talvez totem – com um furo? Em cada uma havia um quê de mim. Não posso esquecer a manhã em que fui levado para o encontro com 500 alunos do Educandário, que colocaram minha vida sintetizada no palco. Regalias de patrono ao longo desses quase 20 anos. No final, na impossibilidade de fazer selfies com todos, as crianças fizeram fila e dei a mão uma a uma. Uma manhã inteira foi reservada por Laura Abbad – que foi por dez anos da equipe da Feira – e pelos professores do Centro Educacional Marista Irmão Rui para falarmos do livro Os Olhos Cegos dos Cavalos Loucos. Cada um fez um desenho específico ou um texto. Cada um tinha uma pergunta. Horas de questões e curiosidade. Isso resultou em um livro coletivo, precioso exemplar veio comigo.
Vamos mudar o Brasil por meio do ensino, queiram ou não. E aquela menina de 6 anos que, entre 500 estudantes da Escola Vereador José Delibo, segurou minha mão dizendo: “Promete nunca parar de escrever?”. Ao crescer, ela vai se lembrar do primeiro escritor que viu na vida? 
Última noite, sentamo-nos em torno da mesa na casa de Dulce Neves, presidente da Fundação do Livro e da Leitura da cidade, à beira de um espelho de água cheio de peixes e o barulho de uma cachoeira me acalmando de dias e dias intensos. Éramos Edgard de Castro, Adriana Silva e o marido, Viviane Mendonça, o professor Bonaventura e sua mulher Scarlet. Anunciado pelo perfume, chegou à mesa o carneiro assado o dia inteiro por Abranche, marido de Dulce, que o regou com molho de hortelã. A carne dissolveu nas bocas acompanhada por saladas, charutinhos de folha de uva e repolho e vinhos tintos de boa cepa. 
Foi aí que me lembrei de George Orwell e das possibilidades de o Brasil viver um 1984, mas também percebi que aquela festa literária e outras podem demonstrar que a “resistência humana a esses terrores é inextinguível”, nas palavras de Orwell. 
Ao chegar a São Paulo, duas notícias. A boa. A partir de hoje, um grupo de escritores, começando pelo presidente da Academia Brasileira de Letras, Marcos Lucchesi, estará abrindo a Fliaraxá de 2019. Valter Hugo Mãe é o patrono. A triste. Dezenas de escritores, eu entre eles, acabaram de ser desconvidados pela Feira de Livros de Brasília. Vai ter estandes, e livro, mas cancelaram debates e conversas, já que elas incomodam. 

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