quinta-feira, 11 de abril de 2019

Beatriz (Uma palavra enorme) - Mario Benedetti


Liberdade é uma palavra enorme. Por exemplo, quando terminam as aulas, pode-se dizer que uma pessoa fica em liberdade. Enquanto a liberdade dura, você passeia, brinca, não tem por que estudar. Dizem que um país é livre quando uma mulher qualquer ou um homem qualquer pode fazer o que lhe der na cabeça. Mas até nos países livres tem coisas proibidas. Matar, por exemplo. Mas aí que está, matar mosquitos e baratas pode e vacas também, para fazer churrasco. Por exemplo, é proibido roubar, mas não é tão grave ficar com umas moedinhas quando Graciela, que é minha mãe, me manda fazer alguma compra. Por exemplo, é proibido chegar tarde à escola, embora nesse caso tenha que escrever uma cartinha, ou melhor, Graciela tem que escrever uma cartinha justificando por quê. É o que diz a professora: justificando.

Liberdade quer dizer muitas coisas. Por exemplo, se você não está presa se diz que está em liberdade. Mas meu pai está preso e no entanto está em Liberdade, pois é assim que se chama a prisão onde está há muitos anos. Tio Rolando chama isso de sarcasmo. Um dia, contei a minha amiga Angélica que a prisão em que meu pai está se chama Liberdade e que tio Rolando tinha dito: que sarcasmo, e minha amiga Angélica gostou tanto da palavra que quando seu padrinho lhe deu um cachorrinho ela botou o nome de Sarcasmo. Meu pai é um preso, mas não porque tenha matado ou roubado ou chegado tarde à escola. Graciela diz que meu pai está em Liberdade, ou seja preso, por suas ideias. Parece que meu pai era famoso por suas ideias. Eu também tenho ideias, às vezes, mas ainda não sou famosa. Por isso não estou em Liberdade, ou seja não estou presa.


Se estivesse presa, gostaria que minhas bonecas, Toti e Mónica, também fossem presas políticas. Porque gosto de dormir abraçada pelo menos com a Toti. Com a Mónica nem tanto, porque é muito resmungona. Eu nunca bato nelas, sobretudo para dar bom exemplo a Graciela.


Ela já me bateu umas poucas vezes, mas quando faz isso eu queria ter muitíssima liberdade. Quando me bate ou ralha comigo eu a chamo de Ela, porque ela não gosta que a chame assim. É claro que tenho que estar de muito mau humor para chamá-la de Ela. Se, por exemplo, meu avô chega e pergunta onde está sua mãe e eu respondo Ela está na cozinha, todo mundo sabe que estou de mau humor, porque quando não estou de mau humor digo só Graciela está na cozinha. Meu avô sempre me diz que sou a mais mal-humorada da família e isso me deixa muito contente. Graciela também não gosta muito que eu a chame de Graciela, mas eu chamo porque é um nome lindo. Só quando gosto muito, muito dela, quando a adoro e a beijo e a aperto e ela diz ai pequerrucha não me aperte assim, então eu a chamo de mamãe ou mami, e Graciela se comove e fica toda derretida e faz carinho no meu cabelo, e isso não seria assim tão bom se eu a chamasse de mamãe ou mami por qualquer besteira.


De forma que liberdade é uma palavra enorme. Graciela diz que ser um preso político como meu pai não é nenhuma vergonha. Que é quase um orgulho. Por que quase? É orgulho ou é vergonha? Gostaria que eu dissesse que é quase vergonha? Estou orgulhosa, não quase orgulhosa, de meu pai, porque teve muitíssimas ideias, tantas e tantas que foi preso por causa delas. Acho
que agora meu pai vai continuar tendo ideias, ideias espetaculares, mas é quase certo que não fale sobre elas com ninguém, porque se falar, quando sair da Liberdade para viver em liberdade, podem fechá-lo outra vez na Liberdade. Estão vendo como é enorme?
 



* Este texto é um dos capítulos  do livro "Primavera Num Espelho Partido"

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