quinta-feira, 11 de abril de 2019

A máquina de costura da vó - Fabrício Carpinejar

Minha avó se refugiava na máquina de costura preta de tardezinha. Antes do crepúsculo. No quartinho dos fundos de sua casa, em Guaporé. Consistia em um dos poucos períodos em que ela ficava absolutamente calada. Quando cozinhava, ela conversava. Quando varria, cantava. Quando costurava, emudecia completamente.

Ela fazia os seus próprios vestidos. E os vestidos floridos das filhas. Não se gastava com roupa naquela época, só em casos extremos como velório. Só na morte de alguém é que se ia na loja, numa espécie de deferência a quem partiu.

Todos na cidade eram alfaiates de seus trajes. Alfaiates de seus corpos. Conheciam as medidas e os respectivos pesos de cada integrante da família.

Aquele barulho me tranquilizava, acredito que seja o som mais terno da minha vida. Nem a chuva nas calhas se mostrava tão melódica. Nada se igualava à sinfonia da agulha cerzindo, em linha reta. Parando, voltando, a roldana sendo girada para prensar o pano.

Nona Elisa de óculos, a conferir o caminho preciso do esquadro de seus dedos. Virava o tecido, desvirava. Ajeitava, retomava. Parecia que não ia dar certo a operação, tamanha as idas e vindas, mas ninguém notava depois onde estava a linha. Invisível. Trabalho secreto de anjo.

Eu gostava de me sentar embaixo da mesinha. No espaço apertado dos seus chinelos. Como um cachorro. Um cachorro menino. Às vezes, ela fazia carinho em meus cabelos e unia as nossas imaginações por um breve momento.

O vestido descia da mesa assim que o trabalho evoluía. Fechava as frestas de luz como uma cabana. Em seguida, ele subia de novo, trazendo a claridade. Brincava assim de noite e dia, de claro e escuro. Como se a máquina de costura também fosse uma máquina de tempo, permitindo folhear o calendário dentro de mim.

Permanecia eternidades naquele esconderijo sem me mexer, atento aos rompantes sonoros, aos trovões dos ganchos de metal. A vó vestia a minha solidão. Repartia com ela o que há de mais precioso numa amizade: o silêncio. A doçura do silêncio. Estar junto, quieto, sem a necessidade das palavras para amar.

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