segunda-feira, 29 de outubro de 2018

As propriedades cicatrizantes do abacaxi - Daniel Furlan

 Luciano Salles


Talvez a criatura mais grotesca do mundo animal seja o cão de raça. Reproduzido à exaustão em busca de uma certa característica, acaba reproduzindo a banalidade do seu criador. O pointer, como o próprio nome diz, aponta. Uma raça desenvolvida para apontar a presa ao caçador.
Então para mim foi uma surpresa, ao 13 anos de idade, quando o pointer de um amigo mordeu minha cara. O certo seria ele apontar para o meu rosto, para que o dono, sim, me mordesse. De resto, ele atendia às características da raça: pelo brilhoso e curto que facilita a higiene, além de temperamento dócil e alegre.
No hospital, com o rosto ensanguentado e um pedaço da cartilagem do nariz pendurado, ouvi o médico dizendo que os pontos ficariam bons e que ele ainda colocaria um curativo cicatrizante feito da proteína do abacaxi.
No dia seguinte, a escola. A existência do adolescente se baseia em estar 24h por dia preparado para o escárnio alheio, mas para minha surpresa, meus ferimentos fizeram sucesso e me transformei numa espécie de subcelebridade escolar instantânea.
Os meninos admiravam o heroísmo de ter tido o rosto atacado por um animal; e as meninas, vamos só dizer que o sentimento mais forte que um homem pode provocar numa mulher é a piedade. Meu rosto cheio de pontos cheirando a abacaxi era afrodisíaco puro.
No shopping, onde dedicava as tardes a rondar por lojas de discos ouvindo todo e qualquer CD com uma caveira na capa, sem nunca comprar nada, passei a ser abordado por ser “o garoto mordido na cara”.
Durante meses aquele sentimento foi meu oxigênio. O viciante sabor da piedade era meu único motivo para sair de casa. Mas com o tempo, as propriedades cicatrizantes da proteína do abacaxi começaram a fazer efeito: os ferimentos foram se fechando, até eu finalmente tirar os curativos e só me restarem pequenos cortes embaixo dos olhos e no nariz.
Ainda tentava contar a história do pointer e seu instinto de caça, mas ter que apontar exatamente onde estavam as quase imperceptíveis cicatrizes não tinha o mesmo glamour. Até que os cortes praticamente sumiram e tudo voltou ao normal. Eu não era mais “o garoto mordido na cara” e teria que suportar o peso de ser só eu mesmo, por quem eu culpo até hoje as propriedades cicatrizantes do abacaxi.

domingo, 28 de outubro de 2018

'Adevolve!' - Luis Fernando Verissimo

Um arqueólogo do futuro, abrindo uma dessas caixas em que se pôs documentos, jornais, objetos e curiosidades da nossa época, terá uma reação que nos elogia (“Bons tempos aqueles”) ou uma que nos condena (“Tempos bárbaros, aqueles”). Ele ou nos invejará ou nos desprezará.
Alguns itens da caixa por certo o deixarão perplexos. Jornal, por exemplo. O que é isso?, dirá ele. E dará boas risadas com os telefones celulares, resquícios de uma época em que as pessoas ainda não tinham transmissores e receptores implantados atrás do ouvido ao nascer.
E o Brasil? O que ele pensará do Brasil? Que interpretação do Brasil se deveria incluir na caixa para ele entender o que ocorria no País naquele longínquo começo do século 21? Minha contribuição começaria com um episódio real, que aconteceu comigo. Nada demais, uma pequena cena do cotidiano que só serviu como mote para uma crônica que escrevi, e que era assim...
Eu caminhava por uma calçada e veio uma bola na minha direção. A bola tinha escapado do controle de um garoto que, de longe, gritou: “Devolve!”.
Não era um pedido, era uma ordem. A mãe do garoto ouviu e perguntou se aquilo era jeito de falar com alguém. O garoto então se corrigiu. Gritou “Adevolve!” Por alguma razão, achou que colocando um “a” no início da palavra o pedido ficava mais educado. Na crônica eu dizia que, de certa maneira, a sociedade brasileira estava fazendo o contrário do garoto.
*
Todas as manifestações de inconformidade com a crise social brasileira tinham sido educados pedidos para que a minoria que nos domina adevolvesse o País à sua maioria excluída. E que não dava para imaginar como seria quando acabasse a boa educação, quando uma sociedade desesperada exigisse o fim da incompetência criminosa que lhe sonega saúde, segurança, educação e emprego há anos, para dar lucro a bancos e rentistas, garantia a especuladores e boa-vida a poucos. Quando “devolvam!” virasse um grito de guerra.
*
O Brasil sempre foi de uma minoria autoperpetuada no poder, mas nunca, no passado, a maioria teve como agora uma noção tão nítida do seu banimento interno, do seu exílio sem sair do lugar. O neoliberalismo triunfante, além da revolução semântica que transformou insensibilidade social em virtude empresarial, tinha trazido uma espécie de redenção histórica para o nosso patriciado, que, afinal, só abolira a escravatura para imitar os outros, sem muita convicção. Com cada avanço da nossa elite na direção do passado, aumenta a distância entre minoria e maioria. O que eu poderia dizer ao arqueólogo do futuro é que talvez estejamos vivendo no Brasil os últimos anos de paciência. Embora ninguém pareça ter o menor temor de que o que não adevolverem por bem terão que devolver por mal.

Uma ciência esquecida - Liberato Vieira da Cunha

Estava eu posto em sossego num restaurante, em doce enlevo com umas trufas, quando notei que me achava na alça de mira de uma deusa de idade indefinida – aposte em qualquer escore entre os 30 e os 45 anos e você acerta. Como ela se encontrava acompanhada de seu dono e senhor, concentrei-me primeiro no prato e em seguida na recordação desta despretensiosa teoria (e por que não prática?) da secada, pois é disso que volto a tratar: há muito descobri que é inesgotável.
Sou estudioso dessa esquecida ciência há décadas. Se meu leitor é vítima da infinita dissimulação das mulheres, algo que elas aprendem desde o berço, sabe do que estou falando. Você desce por exemplo uma escada rolante e, bem ao lado, só que no sentido contrário, sobe uma daquelas perfeições que só existiam na Grécia antiga ou em filmes franceses proibidos até 18. Ela o coloca bem no foco de seu olhar e aí vai se distanciando, sem dó nem piedade, para o nunca mais.
Tem a dissimulada, uma criatura magnífica, que te fita como me fitou a deusa do restaurante das trufas, mas mantêm a mão na do marido (Fred Bongusto compôs uma esplêndida canção sobre esse secreto triângulo). Há a que te olha intensamente, quase como numa intimação, em uma rua movimentada, e aí percebes que ela desapareceu na entrada de uma imensa loja, de uma galeria, de um shopping, e jamais tornará a encontrá-la.
Existe a que fala por gestos: ela não apenas te olha, mas mexe nos cabelos e, por alguma estranha razão, toca a própria nuca, como se esta fosse a sede e o foro de todos os seus interditos desejos. E não esqueço a tímida, que concede não mais que um canto de sua atenção, em miradas súbitas e logo envoltas em fingimento.
Quando eu era adolescente, havia algo que se chamava reunião dançante. Era assim: os rapazes, com seus ternos de nycron e gravata e suas cubas libres, ficavam de um lado da sala da qual fora retirado previamente o tapete; as meninas se postavam na outra breve extremidade, com seus sapatos altos, seus penteados esculpidos em laquê e seus refris. Você jamais se atrevia a transpor aquele território de assoalho, que brilhava graças à cera Parquetina, sem estar absolutamente convicto de que a eleita de seu coração correspondia às suas secadas.
Eram outros tempos, em que a gente não ousava sequer tocar em certos temas ou em certas regiões da natureza humana.
Eram tempos em que, ao som de The Platters, de Sinatra ou de Perry Como, rapazes e meninas exercitavam suavemente sobre o parquê, além da teoria e prática da secada, o brando esporte do rosto colado, e se você não sabe o que é isso perdeu metade de sua vida.

sábado, 27 de outubro de 2018

Me diga, o que pode acontecer? - Ignácio de Loyola Brandão

Não suporto mais a pergunta: o que vai acontecer? A cada momento, a cada encontro, em cada esquina, bar, no metrô, na entrada da Mostra de Cinema. O que vai acontecer? Se digo que não sei, a pessoa enraivece: como não sabe? O senhor é escritor, é jornalista, é cronista e devia saber. Se o senhor não sabe, quem vai saber? 
Agora, tenho dois problemas a resolver. Saber o que vai acontecer e saber quem sabe o que vai acontecer. Respondo que não sei o que vai acontecer e também não sei quem sabe. 
Isso enfurece meu interlocutor: então de que adiantou viver tanto, de que adiantou estudar, de que adiantou escrever tantos livros, de que adiantou viajar por todo o País, de que adiantou conviver com tantas pessoa sábias e experientes e estudadas se o senhor acabou não sabendo nada?
Eu poderia responder como Sócrates. Ou como Platão – ou foi Sócrates, Parmênides, Catão, Montaigne, Schopenhauer, Spinoza, Benedito Nunes, Cruz Costa, Roland Corbisier, Hélio Jaguaribe? Ou por quem disse: só sei que nada sei. Mas aí ele me diria: então, o senhor sabe que nada sabe, portanto, não pode responder o que não sabe. Por que nunca procurou saber?
Então, inverto a situação e pergunto: e o senhor sabe? Tem ideia do que vai acontecer? Por que o senhor quer saber o que vai acontecer? Se souber, o que o senhor vai fazer? Impedir que aconteça ou reforçar o acontecimento? Por que o senhor quer saber o que vai acontecer? Qual o motivo? É fundamental saber? O senhor conhece alguém que saiba? Se conhece, por que perguntou a mim e não àquele que sabe? Se disse que não sei, é porque não sei, não tenho capacidade mental, não tenho lastro, não tenho inteligência, não tenho cultura, não tenho discernimento, não tenho leitura suficiente, nem raciocínio. Agora, por que o senhor não vira as costas e procura quem saiba?
E ele: mas é o que estou fazendo, por isso venho perguntando, mas ninguém responde. Também quero, como todos querem. Quero saber, mas ninguém responde, será uma conspiração de silêncio? Será medo? Todos me parecem receosos. 
Pergunto: receosos? De que? Do que? Por que? O que pode acontecer que causa tantos temores?
E ele, inquieto como eu, apreensivo como eu, desassossegado como eu, alvoroçado como eu, diz: Perguntei ao senhor porque já não tenho mais a quem perguntar. Venho perguntando há muito tempo. Envelheci perguntando. Caminhei por toda a parte tão habituado a formular essa questão, que mal abro a boca, a pergunta salta fora, agarra-se ao outro, assusta, atemoriza. Essa pergunta atemoriza. 
O senhor sabe por que ela atemoriza? É uma pergunta simples, o que vai acontecer, quatro palavras comuns, do nosso cotidiano, a toda hora dizemos essas palavras. São fáceis, normais, mas as pessoas recuam, quase aos gritos, não sei, não sei, só sei que nada sei, o que vai acontecer, o que o senhor acha? Mas o senhor não acha, ou não quer responder. Sabe, mas não quer. Ninguém quer. Por que? Já fiz essa pergunta milhões de vezes, passei a vida indagando, já não suporto mais. 
Olhei para aquele homem, não sei dizer a idade dele, senti compaixão. Ele me fazia a pergunta que todos me fazem, a todo instante quando estou na rua, porque sou escritor, jornalista, cronista, ser humano, sabem que em meus escritos falo de meu país, e de minha gente, do mundo. Senti que ele se agarrava a mim como a última chance. Eu podia responder. Mas tive medo. 
Medo de que, se eu disser o que pode acontecer, ele não vai suportar.

Rosineide - Luis Fernando Verissimo

O Bill veio passar uma temporada no Brasil, a trabalho, e aconteceu: apaixonou-se por uma mulata. A Rosineide. Belíssima. Traços finos. De se levar pra casa. E foi o que o Bill fez: casou-se com a Rosineide e a levou para conhecer seus pais, em Cincinnati.
Bill sabia pouco sobre Rosineide. Depois de ser apresentado a ela, tinha ouvido alguém comentar:
– Ela é do balacobaco.
Estranhou. Ela não era carioca? – Quíssima! – disse a Rosineide, já no avião a caminho de Cincinnati.
– Mas me disseram que você era de Balacobaco.
Rosineide hesitou antes de responder. Precisava tomar uma decisão. Ou explicava ao Bill o que queria dizer “balacobaco”, com o risco de ele não entender, ou, pior, entender, ou partir para a invenção. Optou pela ficção.
– Originalmente de Balacobaco, mas fui criancinha para o Rio.
E, a pedido de Bill, pôs-se a descrever Balacobaco. Nunca mais voltara à sua cidade natal. Sabia que tinha parentes lá, mas perdera o contato com eles. Onde ficava Balacobaco? Na Amazônia. Para ajudar Bill a localizar sua cidadezinha, Rosineide foi mais específica.
– É parte da Grande Cafundó.
E acrescentou: – Onde o diabo perdeu as botas.
– O quê? – perguntou Bill, perplexo. – You know. The devil. Lost his boots.
– The devil?!
– Esquece, bem – disse Rosineide, encerrando o assunto com um beijo.
Bill apresentou Rosineide a seus pais, em Cincinnati.
– She’s from Rio, but originally from Balacobaco.
Os pais do Bill acharam interessante, fizeram muitas perguntas sobre a Amazônia (desmatamento, cobras gigantes etc.) e, em geral, acolheram bem a Rosineide. Que está até hoje morando com o Bill em Cincinnati e prometeu que, da próxima vez que os dois vierem ao Brasil, o levará para conhecer Balacobaco. Ainda mais que agora tem aeroporto em Cucuia, que fica perto de Cafundó.
Só a mãe do Bill, eleitora do Trump, olha para a nora com um ar de desconfiança. Aquela história da Amazônia lhe parece invenção. Ela também não acredita que Barack Obama nasceu nos Estados Unidos.

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

O meio e a mensagem - Roberto DaMatta

Eis um par perturbador que vai do fuxico a como agir sobre o mundo, e ao modo pelo qual somos obrigados a nos dirigir ao rei, a Deus e aos mortos.
De que modo seremos mais bem ouvidos? Mas será que somos ouvidos quando sabemos que o sofrimento jaz no silêncio das perguntas sem resposta? 
Se eu escrever “mão”, é uma coisa, mas escrever “não” é outra muito diferente. Um mero som muda o significado – haja trabalho para entender o elo entre som e sentido. O pensamento é falado para dentro e só pode surgir por meio de algum meio. Falar, memorizar, escrever, gravar, arquivar e divulgar revelam e transformam o mundo que, por sua vez, retorna modificando tudo novamente. 
A invenção da imprensa é um bom exemplo. Sabemos que ela produziu um imenso conhecimento e, dando a muitos aquilo que era de poucos, foi acusada de abuso. Como publicar protestos contra a religião dominante? Como satirizar a realeza e protestar contra o poder? Como contrariar a autoestima afirmando que não somos o centro do universo? Como estudar costumes primitivos? Ou escrever sobre os mais secretos desejos humanos? E pior que tudo isso, como especular sobre a possibilidade de que nada – salvo a orgulhosa coragem humana – faz sentido?
*
O meio é bom, mas a mensagem não presta, quando lemos algo contra nós. Mudando a mensagem – quem sabe –, equilibramos. Seria mordaça? Não, dizem os hipócritas. A “nobreza” da escrita não deveria contrariar os bons costumes (os nossos costumes!). Mas e se formos mais realistas – diz um outro – e proibirmos de uma vez por todas as imoralidades? 
Eis o que de imediato faz surgir a “subversão” – essa palavra relativizadora, que obviamente depende de um ponto de vista.
*
O dilema mostra como somos abertos a censura e a liberdade. Daí a expulsão do paraíso porque, como deuses em tamanho pequeno, tomamos partido mesmo sem saber porque assim o fazemos. 
Podemos, contudo, suprimir os meios mas não as mensagens que, com ou sem eles, adquiram corpos e espíritos. Se não se pode escrever, cantamos. Se não há estrutura partidária, usa-se a rede...
*
O último recurso é acusar a internet. Mas como impedir sua presença quando ela mal nasceu e já envelheceu? Num sistema cuja ética é a de não ter nenhuma fidelidade a coisa alguma, pois matamos faz tempo uma entidade chamada “Deus”, só resta admitir a impossibilidade impossível de parar de inventar. A bomba atômica e os pecados mortais não podem ser desinventados. 
*
Para complicar, pensemos num revolver. 
No filme Shane (Os Brutos Também Amam, Paramount, 1953), o dilema é apresentado de modo claro...
Shane é um pistoleiro tentando fugir de seu passado que resolve defender um agricultor pressionado pelos poderosos criadores de gado. Em meio à violência, surge o inesperado. Marian e esposa do roceiro e o seu filho Joey se enternecem por Shane que, freudianamente, tem um revolver. Numa cena em que Shane decide mostrar ao menino o poder da arma, tirando-a de uma sombra repressiva, ocorre um dialogo importante:
Shane: Uma arma é um instrumento, Marian; não é nem melhor nem pior do que qualquer outro instrumento. Uma arma é tão má ou boa quanto o homem que a usa. Lembre-se disso.
Marian Starrett: Seria muito melhor se não existisse uma única arma neste vale, incluindo a sua...
*
Pode-se acabar com o telefone porque ele é irresponsavelmente usado? Seria conveniente liquidar o jornal porque ele anuncia más notícias e gente como eu fala dessas coisas? 
Como acabar com bombas atômicas se não conseguimos nos envergonhar da pobreza que engendramos?
*
Cheguei no meu limite (de toques). Mas ainda tenho espaço para perguntar: 
Como detonar uma democracia? 
A mais efetiva é não aceitando os riscos de perder ou ganhar excluindo o concordar em discordar. Esse assombroso paradoxo para os neo-abundantes democratas nacionais.

terça-feira, 23 de outubro de 2018

O fim do comum - Mario Vargas Llosa

Na noite de 6 de janeiro de 2015, Phippe Lançon foi ao teatro com uma amiga, em Ivry, ver Noite de Reis, uma peça de Shakespeare sobre a qual teria de escrever no dia seguinte um artigo para o Libération. Mas, na manhã do dia 7, haveria também a reunião de pauta do Charlie Hebdo, para o qual ele também escrevia, na qual seria planejado número seguinte do semanário. Lançon decidiu-se por essa última. Enquanto os colegas discutiam a pauta, ele observava o desenhista Bernard Harris, seu bom amigo, que como sempre passou toda a discussão fazendo caricaturas dos presentes.
Terminada a reunião, quando todos começavam a se despedir, teve início a fuzilaria. Philippe foi o primeiro a receber um balaço, no rosto, que despedaçou sua mandíbula e o derrubou numa grande poça de sangue. Não perdeu os sentidos, mas não podia se mexer. Enquanto sangrava, viu os dois terroristas, os irmãos Kouachi, executarem todos os que estavam na sala, repetindo um mantra, Allahu Akbar!, Allahu Akbar! Philipe não podia acreditar no que via: a cabeça de Bernard Maris aberta a tiros, os miolos saindo. Num dado momento, viu ao lado de seu rosto os sapatos e a metralhadora de um dos assassinos. Por que não o mataram? Sem dúvida por achar que ele já estava morto.
Ele foi finalmente resgatado e uma ambulância o levou para o hospital, onde passou 282 dias e foi submetido a 30 operações que lhe reconstruíram prodigiosamente o rosto. Quando o conheci, em Princeton, há uns três anos, ainda parecia um monstro. Quando vi suas fotos, achei incrível que seu rosto estivesse absolutamente normal, sem uma única cicatriz que recordasse o horror da experiência que ele, no livro que acaba de publicar na França, Le Lambeau (o pedaço, o retalho) chama, com sombria elegância, de “o fim do comum”.
O mais impressionante nesse testemunho assustador, em que vemos um homem morrer e ir ressuscitando pouco a pouco graças à sua valentia e força moral, e sem dúvida à formidável ajuda que lhe deram os enfermeiros, médicos, auxiliares, e sobretudo à destreza e competência dra. Chloé, a cirurgiã autora daquela prodigiosa reconstrução facial – é a sobriedade e o equilíbrio com que está escrito. Não há ódio nem rancor, e aquela máquina de matar que aniquilou todos seus companheiros quase desaparece. O amor pela vida anima suas páginas, com a ajuda vivificante que lhe dão nessa longuíssima ressurreição certas obras literárias – Kafka, Proust, A Montanha Mágica – que relê buscando com elas reviver os momentos tão intensos que sentiu quando as leu pela primeira vez.
Creio que Philippe Lançon não fala de terrorismo em nenhuma dessas belas páginas. No entanto, Le Lambeau é um dos livros que melhor permitem entender os extremos da abominação e da selvageria a que pode chegar um ser humano escravizado pelo fanatismo religioso, convencido de que sua fé o autoriza a devastar o mundo e, se preciso, acabar com ele, purgando-o de infiéis. A essa barbárie crua e dura , Lançon opõe a razão, a humanidade, as belas artes, a poesia e as ideias, que considera os denominadores comuns entre os seres humanos, mais profundos e duradouros que as diferenças de línguas, crenças, raças e costumes, tudo aquilo que nos cerca e nos irmana e terminará prevalecendo sobre a irracionalidade e a loucura abissal de quem acredita que lançando bombas e assassinando inocentes vá obter justiça.
Aos hospitais onde Philippe Lançon luta para renascer, chegam parentes, amigos, sua ex-mulher, suas namoradas (sim, no plural) e também esse rumor poderoso que é o gigantesco movimento de solidariedade gerado na França e no mundo inteiro pela matança de Charlie Hebdo. Ainda que pareça mentira, até o humor abre caminho nessas páginas, e o leitor se vê sorrindo, divertido com os enredos sentimentais e pessoais em que se depara o personagem (chamado pelo pseudônimo de Monsieur Tarbes em um dos hospitais que frequentou), entre anestesias, injeções, vômitos, sondas, termômetros e passes de mágica de que tem de se valer para que haja harmonia onde poderiam eclodir o mau humor e o escândalo.
Nada como estar perto da morte para saber como é maravilhosa a vida. Descobrimos isso ao mesmo tempo que Philippe, quando consegue comer um pouco de iogurte e deixar de se alimentar por sonda, quando volta a mastigar e – por fim! – a falar, sem mais necessidade da lousinha que durante tantos meses ele usou para se comunicar-se com o próximo. E quão generosos e decentes podem ser os homens e as mulheres – como ele descobriu por meio das enfermeiras, atendentes, faxineiras e médicos que dia e noite se empenharam em devolver-lhe a saúde e fazê-lo sentir-se querido e protegido por uma muralha de amizade e de amor nesses longuíssimos meses nos quais voltou a ser um ser humano, deixando para trás o semicádaver que era quando chegou.
Há tempos um livro não me entristecia, emocionava e alegrava como Le Lambeau.Quando se acaba de lê-lo, compreende-se que o terrorismo – não só o islamista, mas todos os terrorismos políticos, sem exceção – não ganharão nunca a guerra que desfecharam, apesar dos danos (inúmeros) que podem causar. Não ganharão porque são primitivos e bárbaros. Perpetuam uma tradição que o desenvolvimento humano – a civilização – está fazendo retroceder e voltar às cavernas e é a própria negação das boas coisas que o progresso nos trouxe – a liberdade, a democracia, a coexistência na diversidade, a justiça, os direitos humanos, a igualdade perante a lei. Sem necessidade de se referir especificamente a esses temas, com o personagem lutando para retornar à vida, recordando-se de quão maravilhoso é um bom livro, uma bela sinfonia, o rejuvenescimento que trazem a amizade ou o amor, Le Lambeau nos faz conscientes da estupidez e cegueira que são o fanatismo e o uso do terror, e de quanto avançamos desde os tempos atrozes em que o ser humano ainda era uma fera entre as feras.
Esse progresso é uma realidade para um grande número de países – para muitos outros, por desgraça, ainda não –, e uma prova disso é que Philippe Lançon esteja vivo de novo, tenha sido capaz de escrever esse livro profundo, que Chloé e seus colegas tenham conseguido devolver a seu rosto a humanidade e a harmonia, que ele tenha se casado e, segundo me dizem, esteja comemorando o nascimento de seu primeiro filho. Isso me levanta o ânimo porque vejo em tudo algo de belo e exultante, a derrota da estupidez e da cegueira mental e moral do fanatismo, a vitória da vida.
Um dos episódios mais comoventes – há centenas mais – do livro é quando, em pleno atentado, Philippe tem uma esquisita sensação na boca e descobre que são seus dentes se soltando. Ao amigo comum, que me mostrou outro dia suas fotos de renascido, perguntei se ele viu como ficaram os dentes de Philippe. “Estão intactos, e além disso, branquíssimos”, respondeu. Senti que meu coração transbordava de felicidade. 
Há tempos um livro não me entristecia, emocionava e alegrava como 'Le Lambeau'.
TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Ele era tão bom para mim, nem me batia – Mariliz Pereira Jorge

Ele não gostava que eu passasse batom escuro, nem unha vermelha. Parei de usar as roupas que gostava e só me vestia do jeito que ele queria. Mas eu tinha que ficar bonita para ele, não para os outros ou para mim. É o que ele dizia. Ele era muito bom para mim. Nem me batia.
No começo do relacionamento ele era muito carinhoso, aos poucos foi ficando agressivo. Ele gritava por qualquer motivo, me assustava, às vezes eu tinha medo. Mas ele era tão bom comigo, nem me batia.
Eu era uma mulher confiante e bem resolvida, mas ele me fez perceber que, na verdade, eu era desastrada, não sabia fazer as coisas direito e era incapaz de cuidar da minha vida sozinha. Tão bom alguém para cuidar da gente. Ele era muito bom para mim, nem me batia.
Uma vez ele jogou os pratos na parede porque eu tinha colocado sal demais na comida. Ele tinha pedido lasanha, mas acabei fazendo bife à milanesa. Não custava ter feito o que ele havia pedido e prestar mais atenção na hora de temperar a comida. Que burra, eu. Logo com ele que era tão bom comigo. Nem me batia.
A gente discutia muito, mas no meio das brigas ele me deixava confusa e, então, eu percebia que tudo era minha culpa. E ele ainda me perdoava. Um homem que perdoa é um bom homem. E nem me batia.
Fui promovida com salário maior, carro e bônus, mas ele me fez perceber como eu trabalharia mais, como a empresa queria, na verdade, me explorar, eu teria que viajar e abrir mão de passar mais tempo com ele. Se não fosse ele, eu teria sido consumida pelo trabalho. Acabei pedindo demissão. Tão preocupado com o meu bem-estar. E ele nem me batia.
Ele não atendia o celular, desaparecia, eu nunca sabia onde ele estava, nem com quem. No começo eu perguntava, a gente discutia, mas ele ficava muito nervoso, jogava as coisas no chão, então, passei a fazer de conta que não sentia perfume de mulher nas roupas dele. Ele dizia que me amava. E ele nem me batia.
Tentei me separar muitas vezes, mas ele dizia que se suicidaria, que não podia viver sem mim. Eu me sentia culpada e desistia. Imagine um homem que se mataria por causa do seu amor. Ele era muito bom pra mim. E nem me batia.
Ele tinha todas as minhas senhas. Mas parei de usar as redes sociais, uma bobagem aquilo lá. Ele implicava com os likes dos amigos. Eu me estressava com os comentários das mulheres no perfil dele. Ele também não gostava que eu postasse nossas fotos, dizia que despertava inveja. Tão cuidadoso com o nosso relacionamento. E nem me batia.
Ele cuidava nas minhas contas, nunca fui boa com números, não sabia quanto dinheiro tinha. Ele controlava meu salário, meu cartão de crédito, não deixava que eu gastasse muito. Descobri que meu nome estava no Serasa porque ele usou meu cartão para umas compras e não tinha pago. Mas ele fez um empréstimo em meu nome, claro, e resolveu tudo. Como eu poderia reclamar de um homem desse? E nem me batia.
Eu parei de trabalhar porque ele queria que eu estivesse em casa sempre que ele chegasse do serviço. Queria que eu estivesse bonita, com o jantar pronto. Tem prova maior de amor do que um homem querer você só para ele? E ele nem me batia.
Ele sempre me comparava a outras mulheres. Mostrava como elas eram mais bonitas, mais gostosas, mais elegantes, mais inteligentes, mais espertas. Era um estímulo para que eu tentasse ser melhor a cada dia. Nunca era o suficiente. Mas eu sei que era para o meu bem. E ele nem me batia.
Eu parei de ver meus amigos e mal conseguia encontrar meus familiares porque ele estava sempre ocupado, nunca tinha tempo, a vida tinha outras prioridades. Por que não ia sozinha? Ahhh porque sentiria falta dele. Ele me disse que eu não me divertiria sozinha. Isso é muito amor, não é mesmo? Ele era assim, e nem me batia.
Eu me sentia triste, desvalorizada, feia, maltratada, desrespeitada, enganada, insegura. Mas relacionamentos são assim, difíceis. E ele dizia que me amava. E ele nem me batia. Até que percebi aos poucos que vivia uma relação doentia e abusiva, e enxerguei como estava inteira machucada por dentro, sem nunca ter levado uma única porrada.

História de amor parecida - Daniel Furlan

Luciano Salles



Casamento em cidade do interior é uma festa que envolve a cidade inteira. Talvez não seja mais assim, mas já foi um dia. Ou talvez nunca tenha sido, mas me disseram que era. 
E quando um parente meu, distante o bastante para não ter uma classificação de parente para defini-lo, resolveu se casar com uma certa moça, a família foi contra, sabe-se lá por quê. Mas mesmo assim, bancaram uma festa grandiosa, que de fato envolveu a cidade toda numa expectativa que há muito não se via. 
Mas numa dessas coisas que só pode ser verdade de tanto que parece mentira, na véspera da cerimônia, com tudo montado, a noiva resolveu fugir com um sujeito de fora da cidade numa moto. Não tenho certeza em relação à moto, mas tudo fica melhor numa versão com moto. No futebol, se os jogadores corressem de moto atrás da bola seria mais interessante. Ou aquele filme sobre o Buda. Falta moto.
O fato é que o rapaz ficou obviamente arrasado, ainda mais com a nuvem de “eu te avisei” da família que pairou sobre ele. É a pior nuvem. Fora a parte de ter que desmontar a festa sem uma poça de vômito no chão, sem um tio dormindo com brigadeiro amassado no bolso, sem um primo beijando o padre no banheiro. 
Nada mais triste do que desmontar uma festa que nunca aconteceu. Na verdade há várias coisas mais tristes, mas não interessa agora.
E veja você, a ex-noiva acabou voltando. Mais uma daquelas coisas que nunca acontece, mas acontece. O motivo não foi bem explicado, tudo indica que o rapaz da moto não era um cara muito legal. E, como se a situação já não fosse absurda o suficiente, o ex-noivo decidiu retomar o casamento. A família, em óbvio desespero, tentou dissuadi-lo a qualquer custo, mas não é o bom senso que freia um homem apaixonado. Na verdade, não é o bom senso que freia um homem.
A festa foi remontada e a cidade se recolocou no modo euforia pré-festividades sem muito questionamento. No dia da cerimônia, todos, principalmente a noiva, beberam o suficiente para que a alegria da festa superasse o constrangimento, e, obviamente, deu certo. O álcool nunca falha. Quem falha somos nós. E quanto ao noivo, ao ser questionado no altar se aceitava se casar com a noiva, ele disse sua única palavra na festa, naquele sotaque de italiano da roça:
“No!”
E foi embora.

sábado, 20 de outubro de 2018

Apesar de você - Marcelo Rubens Paiva

Apesar de você, as cores do arco-íris continuarão as mesmas, ele sempre estará entre o céu e a terra, continuará lindo a nos emocionar. Mulheres continuarão a desejar mulheres, homens se beijarão e se amarão: o amor não tem limites, o desejo não tem barreiras. A composição familiar nunca mais será a mesma. Os jovens não deixarão de mudar padrões, quebrar regras. O amor vencerá a bala. A Inteligência sempre vencerá a burrice. 
Drummond continuará arquiteto das palavras, Niemeyer, o poeta das formas. Ambos continuarão gauche na vida. Livros poderão ser proibidos, mas jamais serão esquecidos, poderão estar escondidos nos labirintos das estantes, no labirinto da nossa memória.
Apesar de você, a palavra será a melhor arma, o pensamento, livre, as ideias brotarão, os questionamentos serão infinitos, é da nossa essência, é nossa vocação.
Apesar de você, florescerá na primavera, a solidariedade existirá, o altruísmo continuará vital como o ar. Apesar de você, a bondade estará entre nós. Vamos esperar para tudo melhorar, vamos esperar para o dia amanhecer sem ódio, sem tiros, vamos esperar a tempestade passar.
Apesar de você, Dom Quixote lutará contra moinhos de vento, Riobaldo, contra o amor por outro jagunço, Canudos, contra as tropas da insensatez, Zumbi, contra a escravidão. A dívida social não será paga. A história dos negros não será reescrita nem recontada. Uma ditadura continuará a ser assassina, e a tortura, nunca mais! Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.
Hoje é dia 20 de outubro. Hoje é celebrado o dia do poeta. Hoje é dia de Manuel Bandeira. Apesar de você, podemos ir embora pra Pasárgada, onde somos amigos do rei, termos o amor que quisermos, na cama que escolhermos e, se aqui não somos felizes, lá a existência será uma aventura, lá faremos ginástica, andaremos de bicicleta, montaremos em burros brabos e, cansados, nos deitaremos na beira do rio, porque em Pasárgada tem tudo, é outra civilização, nos sentiremos seguros, e no dia mais triste, o mais triste de todos, amaremos quem quiser, porque lá somos amigos do rei.
Apesar de você, toda a cultura será acessível, Brecht proporá a revolução, a angústia estará na solidão, a dor da alma não terá cura, até o dia em que decidirmos não sofrer mais e agir. Sofreremos por causa de você, superaremos apesar de você. Nossos ancestrais não sairão do lugar, seus ensinamentos irão nos guiar, apesar de você. Os mortos continuarão vivos entre nós. Continuarão a nos inspirar. Luther King continuará mito. Jesus a nos defender. Simone de Beauvoir nos fez pensar. Gandhi é o mito da paz. 
O índio guerreiro vai lutar, vai se esconder e sobreviver, vai defender a sua mata, unir-se aos animais, defender sua família, até o último guerreiro, e mais uma vez o mal não vencerá. Os rios terão o poder de se regenerar, os mares, de se recompor, a fumaça vai se dissipar, as bombas vão se calar. A floresta vai renascer das cinzas. A destruição não nos acometerá. 
Cometas vão passar. O Universo continuará a se expandir e ser enigmático. As descobertas nos surpreenderão. O conhecimento será sempre o caminho, não o ponto final. O desconhecido será conhecido, para voltar a ser desconhecido, que será conhecido, e desconhecido. Teorias podem ser reescritas, nunca extintas ou ignoradas.
Michelangelo será eternamente belo. Leonardo, genial. Van Gogh pintará as cores do vento. Pollock, a representar nossa loucura. Picasso, a incongruência. Miró será eternamente arrebatador. Rimbaud será nosso poeta que faz da vida, versos, da sua andança, sentido: “Que venha a manhã, com brasas de satã, o dever é ardor. Ela foi encontrada. Quem? A eternidade é mar misturado ao sol”.
Shakespeare nunca deixará de mostrar o horror de reinos, a loucura de reis. Campos de Carvalho narrarei de cor. Continuará píncaro do espetacular.
Lobos uivarão para a lua. Cachorros latirão uns para os outros. Gatos se esconderão na escuridão. Sabiás cantarão antes do amanhecer, nos despertando com a beleza da sua inconveniência. À noite, será sempre noite, por vezes desesperadora, por vezes longa demais, dolorida e saudosa. Enfim, o sol aparecerá. O ciclo das estações não se alternará. O minuto de daqui a pouco será depois o minuto que se foi. O amanhã será ontem.
A Justiça não será parcial, a defender os que mais têm. A verdade poderá nunca prevalecer. Mas nenhum doutor irá nos convencer do contrário. A polícia continuará a reprimir, a defender o bem de quem os têm. Mas nunca será eliminado o fato de sermos tão desiguais, de que quem não tem luta para dividir. Os grilhões se romperam. As amarras se romperão. Apesar de você. 
Hoje é dia de poesia e samba. Todo dia é dia de samba. Apesar de você, o sol há de brilhar mais uma vez, a luz há de chegar aos corações, do mal será queimada a semente, o amor será eterno novamente. Quero ter olhos pra ver, a maldade desaparecer. Amanhã será um novo dia. Apesar de você.

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Fake news - Ruy Castro




Em novembro de 1955, depois do “golpe preventivo” do então ministro da Guerra, general Henrique Teixeira Lott, para garantir a posse de Juscelino Kubitschek na Presidência, Otto Lara Resende foi entrevistar Lott para a revista Manchete. Mas o general era ruim de verbo e não estava sabendo contar a história. Daí, Otto, com as informações que apurara, escreveu-a ele próprio como se fosse Lott falando. Lott não se queixou. Ao contrário, adorou. E até passou à história como autor de uma expressão que Otto pusera na sua boca: a do “retorno aos quadros constitucionais vigentes” —querendo dizer que a Constituição era intocável. 
Vinte anos depois, em 1975, Carlos Heitor Cony, repórter da mesma Manchete, foi entrevistar o famoso falsário Walmir Vieira Azevedo, autor de grandes golpes em São Paulo. Mas, ao lhe ser apresentado na delegacia, Walmir não quis falar. Cony não se apertou. Inventou tudo e ocupou quatro páginas da revista com a genial “Entrevista de mentira com um falsário de verdade” —sem deixar o leitor saber se o texto era a sério ou não. 
Nos anos 60, Millôr Fernandes escreveu uma peça de teatro sobre o bairro boêmio da Lapa. Numa passagem, o valentão Madame Satã enfrenta a polícia de Getulio Vargas. Bate em 20 soldados e só é levado preso porque o subjugam e amarram a um burro-sem-rabo, do qual sai de cena em triunfo. Essa história nunca aconteceu e a peça não foi encenada. Mas Satã ficou sabendo da passagem e gostou. Anos depois, o Pasquim entrevistou Satã e ele a contou como se fosse verdade. Um dos entrevistadores era o próprio Millôr —que não o desmentiu, para não desapontá-lo. Afinal, Satã acreditava mesmo que tinha batido na polícia.   
Essa é a diferença. As fake news inventadas por Otto, Cony e Millôr mereciam ser verdade.
As de hoje fedem à distância e só acredita nelas quem, além do olfato, perdeu a visão.

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Os homens, os insetos e o machismo - Ruth Manus

Muito se engana quem pensa que o machismo é um problema só para as mulheres. O machismo é um problema para todo mundo. É ele que faz com que os homens ainda se constranjam ao chorar, é ele que faz com que um homem pense duas vezes antes de comprar uma camisa cor-de-rosa que adorou, é ele que faz com que meninos não brinquem com bonecas por acharem que isso significa algo além de exercitar o instinto paterno.
Enfim, o machismo é uma porcaria generalizada. Mas disso todos nós já sabemos. Esse texto pretende apenas falar sobre mais um dos problemas que o machismo nos traz: a relação entre os homens e os insetos.
Em algum momento da história fixou-se a ideia estapafúrdia de que mulheres têm o direito de ter pavor de insetos, enquanto os homens não. Realmente não me ocorre nenhuma relação entre baratas e virilidade, mas diz o senso comum que homens não devem subir no sofá e pedir socorro quando esses bichos dão o ar da graça.
Comecei a notar tal problema há uns 5 anos, quando eu e meu pai entrávamos no carro e eu vi um besouro caminhando no painel. Comecei um certo escândalo, confesso. Não tenho muito medo de insetos, mas um besourão daqueles dentro do carro merecia cada nota aguda do meu chilique.
Meu pai, que não via o besouro, esbravejou “Ruth, para de frescura, fecha essa porta e vamos embora que sua mãe está esperando a gente pra almoçar”. Eu tentei justificar o perigo, mas ele não deu trela. Fechei a porta e recolhi minhas pernas para cima do banco, já que havia perdido o besouro de vista.
Cerca de 5 minutos depois, estávamos parados num farol da Avenida Santo Amaro. Coisa rara, meu pai estava com o vidro aberto. Acho que ele estava com algum receio do Conto do Besouro no Painel não ser obra de ficção. Foi quando eu vi. O besouro estava escalando a barriga do meu pai (que não perde para gestante nenhuma na sala de espera da Pro Matre). Ele ia bem na trilha dos botões da camisa azul. E eu disse baixinho “ai... o besouro tá na sua barriga...”.
Meu pai olhou para baixo e, por motivos óbvios de vinho e amendoim, não enxergava o besouro que ainda não tinha feito a curva do umbigo e disse com desprezo “não tem besouro nenhum, Ruth”. Até que bem no fim da frase, o animal, do tamanho de uma bola de golfe, foi surgindo frente aos olhos do meu pai. Acho que eu nunca tinha ouvido ele dizer um P... QUE O PARIU tão sonoro quanto aquele. Não satisfeito ele disse P... QUE O PARIU QUE P... BICHÃO, enquanto dava um tapa no besouro que voou desgovernado pela janela.
Na sequência, meu pai se vira para mim com a cara mais lavada do mundo e diz “Viu? Não era nada demais, não precisava daquele escândalo todo”. Era óbvio que meu pai tinha ficado com mais medo do besouro do que eu. Mas o machismo jamais permitiria que ele admitisse isso.
Na minha recente lua de mel, foi a vez do meu marido. Como bom europeu, ele não conhece insetos de verdade. Só aqueles bichinhos bobos do velho mundo. Nada de borrachudo, barata voadora ou formiga vermelha. Estávamos no jardim botânico de San Miguel de Allende e eu já havia dito que estava incomodada com aquelas aranhas imensas e com todos os outros bichos que nos rondavam. Ele dizia “exagero teu”.
Até que ele parou para olhar um cacto e – bingo – uma formiga vermelha quis provar o sangue lusitano. Ele falou uns “ai, ai” contidos, levou a mão ao tornozelo e resmungou alguns palavrões ininteligíveis. Picada de formiga vermelha dói horrores. Eles deveriam poder chorar e tudo o mais. Mas, não, o machismo exige que eles sigam caminhando.
Homens: libertem-se dessas amarras. Assumam o medo de barata, o asco por lacraia, o pavor de aranha. Vocês têm esse direito, tá? O machismo já nos roubou muita coisa. Não vamos deixar que ele nos roube ainda mais. E podem subir no sofá sim, ok?

terça-feira, 16 de outubro de 2018

Cabeças Neandertais - João Pereira Coutinho

O empoderamento feminino só é uma ameaça para cabeças neandertais

Jantar de amigos. Uma psicóloga, com ar sapiente, disserta sobre a “crise da masculinidade”. Tese dela: os homens estão em crise. E a crise tem uma explicação: as mulheres.
Ri alto. É óbvio que os homens estão em crise por causa das mulheres, disse eu. Sempre estiveram: a história da humanidade poderia ser resumida às crises que os homens atravessam por razões sentimentais.
Engano meu. A questão não é romântica. É de “autoestima”, essa grotesca palavra que deveria ser abolida do vocabulário comum. Diz a especialista que as mulheres estão hoje presentes em todas as áreas da sociedade. Justiça, medicina, universidades.
E, como se não bastasse, o movimento MeToo assusta os homens e torna-os mais inseguros do ponto de vista sexual. “É difícil ser homem no século 21." E os homens, dominantes ao longo de séculos, têm de encontrar o seu novo papel.
Enquanto isso não acontece, a saúde psíquica dos machos sofre. E, em casos extremos, a agressão contra as mulheres aumenta.
Não é opinião isolada. Regularmente, encontro textos severos sobre essa crise. O New York Review of Books, por exemplo, publicou um texto de Arlie Russell Hochschild em que os números suportam a ciência.
Os rapazes falham mais na escola do que as moças. Sofrem mais de deficit de atenção e são medicados por causa disso. Consomem mais álcool, consomem mais opioides. E, no mundo da criminalidade, não há paridade de gênero.
Respeito os números. Respeito a ciência. Mas há algo de desconfortável na teoria.
 
Ponto prévio: não nego que as mulheres estão mais presentes em áreas acadêmicas ou profissionais em que estavam ausentes. Sou professor. Vejo isso todos os dias e celebro o fato todos os dias também.
Não sei se os meus alunos (homens) sofrem por causa disso. Nunca notei, francamente. Mas que diria eu a um aluno —ou, melhor, a um filho— se ele se viesse lamuriar por haver mais mulheres a disputar a supremacia?
Provavelmente, diria a ele para se portar como um homem. Não no sentido sexual do termo; no sentido cavalheiresco de quem não suporta a autovitimização.
Se existem mais mulheres fazendo doutorados ou cursando medicina, os homens relapsos deveriam aprender alguma coisa com elas: hábitos de trabalho; seriedade acadêmica; comprometimento profissional.
A crise da autoestima masculina faz lembrar as birras das crianças quando não têm um brinquedo fácil. Não tolero isso em crianças. Por que motivo deveria tolerar em homens adultos?
De resto, a afirmação implícita de que os homens agridem mulheres porque se sentem “inseguros” soa a justificativa repugnante. Um homem que agride uma mulher é um criminoso, não uma “vítima” da emancipação feminina. Isso é tão absurdo como afirmar que HannibalLecter optou pelo canibalismo quando a McDonald’s conquistou o mundo.
Admito que o empoderamento feminino constitui uma ameaça para cabeças neandertais. Mas quem precisa dessas cabeças? E quem sente compaixão, genuína compaixão, pelo pessoal que vive nas cavernas?
Em rigor, um pai não deve educar um filho para um mundo “dominado” por mulheres. Deve simplesmente educar a descendência para um mundo partilhado por iguais.
Se há homens que não entendem isso, talvez a palavra “homens” seja um abuso de linguagem.
Ângelo Abu


Cabeças neandertais

Pergunta científica: quando um homem se dedica ao onanismo, fantasiando com uma mulher que não deu o seu consentimento para isso, estamos na presença de uma forma de violência metassexual?
Dito de outra forma: existirá um crime de objetificação da mulher através da "masturbação não consensual"?
Três autores submeteram o estudo à revista Sociological Theory. O estudo foi rejeitado, o que me parece sensato: se houvesse delito, ninguém passaria pela adolescência sem conhecer o presídio. Mas a notícia do ano não é essa.
A notícia do ano é que os autores —Helen Pluckrose, James A. Lindsay e Peter Boghossian— submeteram mais 19 estudos igualmente delirantes a outras publicações científicas de prestígio. Saldo: sete ensaios foram acolhidos; quatro foram publicados; três aguardam publicação.
Além disso, outros 7 continuavam em jogo quando os autores foram denunciados pelo embuste acadêmico. Mas o estrago estava feito.
E o estrago, nas palavras dos próprios, procurou mostrar como certos estudos das "ciências sociais" não procuram necessariamente a verdade. Procuram, apenas, responder a ressentimentos igualitários e a agendas ideológicas politicamente corretas.
Nesse sentido, os autores tentaram provar (com sucesso) que a transfobia masculina poderia ser aliviada se os homens (hétero) experimentassem um vibrador de vez em quando. Que os parques para cachorros são antros de violação canina (do cachorro dominante sobre o cachorro oprimido).
E que não há nenhum motivo para admirarmos a "construção" de músculo nas academias, desprezando a acumulação de gordura. "Construção" é "construção".
(Sobre esse último ponto, devo dizer que concordo com os pesquisadores, embora a minha senhora discorde. O debate continua.)
Eis um retrato sobre o estado das "ciências sociais". Fato: não é possível generalizar. Será injusto até. Mas qualquer pessoa com um conhecimento mínimo do que se estuda, ensina e publica em certos covis acadêmicos sabe que a sanidade não abunda. E que é difícil distinguir a fraude inconsciente da fraude consciente. Que fazer?
Defendo há vários anos que as "humanidades" (prefiro essa palavra; "ciência social" é uma contradição nos termos) deveriam seguir o espírito dos esteticistas em finais do século 19. A arte pela arte, diziam eles?
Então o conhecimento pelo conhecimento, digo eu. Sem a pretensão lunática e mendaz de "construir um mundo melhor".
Um bom modelo seria o colégio All Souls, da Universidade de Oxford, esse paraíso de liberdade intelectual por onde passaram William Gladstone, T.E. Lawrence (o "Lawrence da Arábia") ou Isaiah Berlin.
Todos os anos, o colégio aceita dois candidatos para um período de estudos de sete anos. Para entrar, o dito cujo tem de se submeter ao "exame mais difícil do mundo", com duração de 12 horas de escrita e dividido em dois dias.
O jornal Daily Telegraph partilhou com os leitores algumas das questões que as mentes mais brilhantes tiveram pela frente neste ano. As minhas preferidas, que me obrigaram a parar e a pensar, são:
"Será que existem livros a mais?"
"O turismo é um mal necessário?"
"Shakespeare é demasiado bom para atores?"
"Será que o iluminismo aconteceu?"
E, sobretudo, esta:
"Você preferia ser um vampiro ou um zumbi?"
Infelizmente, por motivo de agenda, não pude comparecer ao exame de 2018 (embora declare aqui que, na canseira da sociedade pós-industrial, existem sérias vantagens em sermos zumbis).
Mas é possível fazer um teste ao leitor desta Folha:
"Você considerou absurdas essas questões?"
Em caso afirmativo, parabéns: você está preparado para estudar os grandes temas das "ciências sociais" do nosso tempo.

P.S.: Escrevi em coluna recente que "o empoderamento feminino só é uma ameaça para cabeças neandertais". Algumas dessas cabeças reagiram com insultos para o meu email. Tese comprovada.
Gostaria de acrescentar, porém, que existem "cabeças neandertais" em ambos os sexos. Daisy Goodwin, produtora e roteirista britânica da série "Victoria", afirmou recentemente que séries de TV em que as mulheres têm os papéis principais podem ser um obstáculo para a luta pela "igualdade". Por quê? Porque o público pode acreditar na ficção, esquecendo a dura realidade em que as mulheres não têm igual protagonismo.
Eis a moral dessa história: mulheres em papéis menores são um problema; e mulheres em papéis maiores, também. Qual será a conclusão lógica? A abolição das mulheres?
Esperemos pela opinião do próximo neandertal.

O furor das letras - Humberto Werneck

Nos momentos de aperto (como este agora, com a cabeça sequestrada por angústias eleitorais, enquanto a tela em branco espera que eu a povoe), me pergunto às vezes se não seria o caso de dar uma de Ryoki Inoue. 
Pode ser que você não esteja ligando o nome à pessoa – e que pessoa! Está no Guinness, e não nesse nosso, tupiniquim: no Guinness internacional. Há boa chance estatística de que você já tenha lido alguma coisa do Ryoki, autor de um monte de livros. Quantos? Perdi a conta. O homem escreve pelos cotovelos. Quando estive com ele, em 1996, já tinha desovado 1.040.
Se você não se lembra, é porque a maioria das obras saiu sob pseudônimo. No que ele bem obrou, pois Ryoki Inoue não é nome de autor best seller, nem aqui nem no Japão. 
Este furor das letras está na praça desde 1986, quando, cansado de dar plantão em UTI, o cirurgião José Carlos Ryoki de Alpoim Inoue trocou o bisturi pelo teclado da máquina de escrever. Nele se pôs a batucar com notável economia de dedos, usando apenas os dois médios e os dois indicadores, com discreta ajuda dos polegares. Não incorporou nem um mindinho ao transitar para o computador. O que o faz ainda mais digno de admiração: foi catando milho, com avidez de galinha magra, que, em dez anos, o Ryoki pôs em seu ninho literário aquelas 1.040 crias. Só no milésimo – E Agora, Presidente?, de 1992 –, ele saiu de seu armário literário, tornando-se um autor que ousa dizer o seu nome. 
Até então Ryoki, paulistano neto de japoneses e filho de portuguesa, se internacionalizava por detrás de denominações gringas – nada menos de 39 –, a começar pelo James Monroe que assinou seu primeiro livro, Os Colts de McLee, bangue-bangue cuja feitura lhe custou um mês, enormidade de tempo em termos ryokianos. Rompida a casca, o velocista das letras desandou a quebrar também, um após outro, os recordes que o levaram ao Guinness. 
Tendo ouvido falar do ritmo coelhal em que Ryoki proliferava, o jornalista americano Matt Moffett, do Wall Street Journal, houve por mal desafiá-lo: que provasse, ante seus olhos, ser capaz de produzir um romance em 6 horas, como andava alardeando. 
Pois não, assentiu o imperturbável Ryoki. Aboletou-se em frente ao computador às 11 da noite, puxou uma cadeira para o gringo – e, 5 horas e meia depois, não 6, pingou um ponto final na página 210 de mais um romance, uma história de sequestro, com o título provisório A Chave, em que o personagem principal se chamava... Matt Moffett. 
“Meu nome, não, por favor!”, conseguiu balbuciar o repórter. Tudo bem, concedeu o jovial romancista, e, em fulminante manobra no teclado, fez com que o protagonista passasse a se chamar Roy Hamilton.
Nada de excepcional para a metralhadora literária de Ryoki Inoue que, em outros tempos, chegara a disparar três livros num só dia, em gêneros diversos como o policial, a história de guerra, a espionagem, a ficção científica e, principalmente, o faroeste – aqui e ali apimentados com escaldantes passagens eróticas, não necessariamente rapidinhas. E seria capaz de muito mais, me disse ele sem fanfarrice, se dispusesse de uma datilografia de 10 dedos, à altura de uma cabeça que, segundo o portador, está sempre um parágrafo à frente das mãos.
*
Feitos como aquele que deixou sem fala o repórter do Wall Street Journal impressionariam qualquer um – menos a artista plástica francesa Nicole Kirsteller que, por ser casada com Ryoki, já conhecia a presteza com que o homem se desempenhava. No teclado, ao menos. Foi ela, aliás, quem incentivou o marido médico a mudar de rumo: “Você sempre gostou de escrever, eu gosto de pintar, a gente segura a barra”.
No mesmo dia, Ryoki não só depôs o bisturi como comprou a Olivetti portátil na qual passou a limpo o manuscrito de Os Colts de McLee. Não tardaram ele e Nicole a formar dobradinha para uma desenfreada produção editorial doméstica. Quando os conheci, trabalhavam na mesma sala, com um tabique a separar a mesa de um e a prancheta da outra. 
“Onde é que você está?”, indagava ela de cá. 
“Chegando com a diligência numa cidadezinha”, rebatia ele de lá.
“Com índio ou sem índio?”, tornava ela, e assim acabavam juntos, quer dizer, texto e capa chegavam ao The End ao mesmo tempo. Mas aconteceu mais de uma vez de o desenho ficar pronto primeiro – como aconteceu também de histórias nascerem de capas concebidas por Nicole para livro algum.
Mas por que estou aqui a papaguear sobre o simpático e prolífico Ryoki Inoue? Ah, sim, queria era falar de um truque dele para driblar a angústia que acomete escribas até mesmo calejados na iminência de principiar um texto. “Escrever jamais é sabido”, admite ninguém menos que o imenso João Cabral, pois ter escrito um texto não resolve o problema de escrever o seguinte. 
Talvez por isso, quando à beira dessa piscina gelada que é a tela vazia de um escritor, Ryoki Inoue não se permite retardar o mergulho – atira-se logo, destemida e temerariamente, e se põe a escrever, seja lá o que for, até achar o fio e ganhar desenvoltura. 
“Depois você pode até derrapar”, me ensinou ele, “mas o importante é arrancar, sair andando, nem que seja de lado, feito um siri”.
Não me leve a mal, portanto, se cheguei aqui meio de banda.

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Os diferentes de mim - Ruth Manus

Na tal biblioteca pública onde centenas de pessoas passam algumas horas de suas semanas, há uma varanda bem grande com vista para o gramado. Nessa varanda, as solidões dos estudiosos acabam por se encontrar, sobretudo na hora do almoço. Não quero dizer que suas solidões cheguem a interagir nessas ocasiões, elas apenas convivem, cada uma com a sua marmita, seus trejeitos e interesses. 
Era uma quinta-feira ensolarada, porém fresca, na qual somente duas ou três nuvens e algumas gaivotas desnorteadas estampavam o céu azul. Perto das 13 horas, as seis mesas da varanda estavam ocupadas pelas seguintes solidões.
Na primeira mesa estava um homem de cerca de 50 anos com um cabelo grisalho enrolado, comprido e completamente desordenado, como só os artistas têm. Presumi que ele fosse músico, talvez um maestro, daqueles tão geniais quanto malucos. Seu almoço era tão bagunçado como o cabelo: maçã, sardinha na lata, pão preto, queijo amarelo e peito de frango, tudo ao mesmo tempo em potes coloridos que repousavam sobre a mesa.
Na mesa ao lado estava um(a) chinês(a). Uma daquelas pessoas muito, muito modernas, com um cabelo curtinho, óculos redondos, uma roupa preta larga que realmente não nos permite saber se é saia ou calça, se é homem ou mulher e que nos dá, de certa forma, um grande alívio por não nos informar absolutamente nada. Uma verdadeira trégua. A pessoa fumava um cigarro e quebrava a casca de um único ovo cozido na mesa de metal.
A terceira mesa era ocupada por dois amigos bem jovens evidentemente gays, que provavelmente estavam fazendo um complexo trabalho para a faculdade de design ou algo do gênero. Comiam sanduíches e wraps, enquanto brilhavam, reluzentes e alegres, com suas peças de roupas coloridas, tão bem escolhidas.
Na quarta mesa uma freira negra, provavelmente angolana, de pouco mais de 30 anos, com um ar simpático e bochechas fartas, comia arroz com frango numa vasilha amarela muito pequena e folheava três livros de psicologia. Uma cena inusitada, porém agradável. Dava vontade de continuar olhando, se não fosse invasivo.
Na quinta mesa, um rapaz forte de 20 e alguns anos, que não deveria falhar um único dia de academia, fazia cálculos complexos com sua calculadora – que tinha quase o tamanho de uma caixa de sapatos – enquanto bebia um daqueles estranhos shakes que, em tese, podem substituir algumas das refeições. Coitadinho.
Na sexta mesa, eu. Eu, com minha beterraba aos cubos num potinho, com meus raviólis orgânicos em outro, uma garrafinha com água fresca, roupa preta, óculos e sapatos verdes, unhas cor-de-rosa, livros sobre o impacto da globalização na economia do trabalho e os olhos incansavelmente atentos.
Achei curioso perceber que quanto mais o tempo passa, mais eu gosto de estar em lugares nos quais as pessoas são tão diferentes de mim. Trata-se de uma estranha afeição por aqueles que não têm quase nenhuma semelhança comigo. Tento entender.
Na faculdade de direito, olho para aqueles meus supostos semelhantes, me comparo e sempre acabo por me sentir inadequada – minha roupa não é tão bonita quanto a dos outros, minha bolsa não é tão chique, meus livros e minhas conversas não são tão sóbrios e monotemáticos quanto parece que deveriam ser por ali.
Já naquela varanda de biblioteca pública, eu me sentia absolutamente confortável no meio de tanta diferença. Parece que eu tinha mais direito de ser eu mesma e menos obrigação de me adequar. Talvez, no fundo, a diferença aproxime bem mais do que a semelhança. Só sei que gente parecida comigo me interessa cada vez menos. Nada contra eu mesma, só estou mesmo contente com a companhia do músico cabeludo, do chinês andrógino, dos gays desruptivos, da freira angolana e do fortão de exatas. Eles fazem com que eu me sinta em casa.

domingo, 14 de outubro de 2018

Português atravessa estrada em Londres - Ricardo Araújo Pereira

Luiza Pannunzio


Nesta semana aconteceu de novo: eu estava noutro país, aproximei-me de uma faixa de pedestres e havia dois grandes grupos de cidadãos estrangeiros, de cada lado da estrada, todos muito civilizados, esperando que o sinal ficasse verde.
Na estrada, nem um carro. Passaram alguns segundos. E então, evidentemente, eu atravessei sozinho. Primeiro, os estrangeiros sustiveram a respiração. O que fazia aquele bárbaro? Com que desfaçatez transgredia a regra, desrespeitava a autoridade da luz vermelha? Quereria ele fazer ruir toda a civilização? E por que é que ele era tão bonito? Estrangeiros sabem analisar situações.
Mais alguns segundos passaram. Depois, primeiro hesitantes mas logo decididas, as pessoas civilizadas começaram a atravessar a estrada ignorando o sinal. Havia surpresa nelas mas, pareceu-me, também aquela forma de alegria que só a fruição da liberdade proporciona. E depois veio um carro e atropelou três. Mentira. Correu tudo bem.
E não foi a primeira vez que eu libertei estrangeiros do jugo da luz vermelha em estradas desertas. Quase sempre que atravesso estradas noutros países sou Simão Bolívar de pedestres.
Não é uma característica exclusiva de portugueses. Uma vez, em São Paulo, eu conversava com um amigo brasileiro sobre a quantidade de carros com todos os vidros filmados.
"Em Portugal isso é proibido", disse eu. "É, aqui também", disse ele. Nunca ficou tão claro para mim que, de fato, portugueses e brasileiros são povos irmãos. Para nós, as regras são, digamos, uma referência. Claro que a gente quer cumpri-las —e cumpre, a maior parte das vezes. Mas desconfiamos delas, adaptamo-las, tornamo-las um pouco mais humanas. A rigidez não nos agrada.
Dizem que Júlio César, o imperador romano, terá escrito, a propósito das tribos que habitavam o território que hoje corresponde a Portugal: "Há, nos confins da Ibéria, um povo que nem se governa nem se deixa governar". Foi muito perspicaz da parte dele, até porque na altura não havia faixas de pedestres.
Podia ter dito o mesmo de um certo povo que vive agora nos confins da América do Sul. À circunstância admirável de a gente não se deixar governar, ele juntou o problema: eles também não se governam. Porque isso do temperamento rebelde à autoridade, realmente, não é só poesia.
Mas uma coisa é certa: o fascismo não combina conosco.

Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...