quinta-feira, 25 de outubro de 2018

O meio e a mensagem - Roberto DaMatta

Eis um par perturbador que vai do fuxico a como agir sobre o mundo, e ao modo pelo qual somos obrigados a nos dirigir ao rei, a Deus e aos mortos.
De que modo seremos mais bem ouvidos? Mas será que somos ouvidos quando sabemos que o sofrimento jaz no silêncio das perguntas sem resposta? 
Se eu escrever “mão”, é uma coisa, mas escrever “não” é outra muito diferente. Um mero som muda o significado – haja trabalho para entender o elo entre som e sentido. O pensamento é falado para dentro e só pode surgir por meio de algum meio. Falar, memorizar, escrever, gravar, arquivar e divulgar revelam e transformam o mundo que, por sua vez, retorna modificando tudo novamente. 
A invenção da imprensa é um bom exemplo. Sabemos que ela produziu um imenso conhecimento e, dando a muitos aquilo que era de poucos, foi acusada de abuso. Como publicar protestos contra a religião dominante? Como satirizar a realeza e protestar contra o poder? Como contrariar a autoestima afirmando que não somos o centro do universo? Como estudar costumes primitivos? Ou escrever sobre os mais secretos desejos humanos? E pior que tudo isso, como especular sobre a possibilidade de que nada – salvo a orgulhosa coragem humana – faz sentido?
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O meio é bom, mas a mensagem não presta, quando lemos algo contra nós. Mudando a mensagem – quem sabe –, equilibramos. Seria mordaça? Não, dizem os hipócritas. A “nobreza” da escrita não deveria contrariar os bons costumes (os nossos costumes!). Mas e se formos mais realistas – diz um outro – e proibirmos de uma vez por todas as imoralidades? 
Eis o que de imediato faz surgir a “subversão” – essa palavra relativizadora, que obviamente depende de um ponto de vista.
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O dilema mostra como somos abertos a censura e a liberdade. Daí a expulsão do paraíso porque, como deuses em tamanho pequeno, tomamos partido mesmo sem saber porque assim o fazemos. 
Podemos, contudo, suprimir os meios mas não as mensagens que, com ou sem eles, adquiram corpos e espíritos. Se não se pode escrever, cantamos. Se não há estrutura partidária, usa-se a rede...
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O último recurso é acusar a internet. Mas como impedir sua presença quando ela mal nasceu e já envelheceu? Num sistema cuja ética é a de não ter nenhuma fidelidade a coisa alguma, pois matamos faz tempo uma entidade chamada “Deus”, só resta admitir a impossibilidade impossível de parar de inventar. A bomba atômica e os pecados mortais não podem ser desinventados. 
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Para complicar, pensemos num revolver. 
No filme Shane (Os Brutos Também Amam, Paramount, 1953), o dilema é apresentado de modo claro...
Shane é um pistoleiro tentando fugir de seu passado que resolve defender um agricultor pressionado pelos poderosos criadores de gado. Em meio à violência, surge o inesperado. Marian e esposa do roceiro e o seu filho Joey se enternecem por Shane que, freudianamente, tem um revolver. Numa cena em que Shane decide mostrar ao menino o poder da arma, tirando-a de uma sombra repressiva, ocorre um dialogo importante:
Shane: Uma arma é um instrumento, Marian; não é nem melhor nem pior do que qualquer outro instrumento. Uma arma é tão má ou boa quanto o homem que a usa. Lembre-se disso.
Marian Starrett: Seria muito melhor se não existisse uma única arma neste vale, incluindo a sua...
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Pode-se acabar com o telefone porque ele é irresponsavelmente usado? Seria conveniente liquidar o jornal porque ele anuncia más notícias e gente como eu fala dessas coisas? 
Como acabar com bombas atômicas se não conseguimos nos envergonhar da pobreza que engendramos?
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Cheguei no meu limite (de toques). Mas ainda tenho espaço para perguntar: 
Como detonar uma democracia? 
A mais efetiva é não aceitando os riscos de perder ou ganhar excluindo o concordar em discordar. Esse assombroso paradoxo para os neo-abundantes democratas nacionais.

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