segunda-feira, 29 de outubro de 2018

As propriedades cicatrizantes do abacaxi - Daniel Furlan

 Luciano Salles


Talvez a criatura mais grotesca do mundo animal seja o cão de raça. Reproduzido à exaustão em busca de uma certa característica, acaba reproduzindo a banalidade do seu criador. O pointer, como o próprio nome diz, aponta. Uma raça desenvolvida para apontar a presa ao caçador.
Então para mim foi uma surpresa, ao 13 anos de idade, quando o pointer de um amigo mordeu minha cara. O certo seria ele apontar para o meu rosto, para que o dono, sim, me mordesse. De resto, ele atendia às características da raça: pelo brilhoso e curto que facilita a higiene, além de temperamento dócil e alegre.
No hospital, com o rosto ensanguentado e um pedaço da cartilagem do nariz pendurado, ouvi o médico dizendo que os pontos ficariam bons e que ele ainda colocaria um curativo cicatrizante feito da proteína do abacaxi.
No dia seguinte, a escola. A existência do adolescente se baseia em estar 24h por dia preparado para o escárnio alheio, mas para minha surpresa, meus ferimentos fizeram sucesso e me transformei numa espécie de subcelebridade escolar instantânea.
Os meninos admiravam o heroísmo de ter tido o rosto atacado por um animal; e as meninas, vamos só dizer que o sentimento mais forte que um homem pode provocar numa mulher é a piedade. Meu rosto cheio de pontos cheirando a abacaxi era afrodisíaco puro.
No shopping, onde dedicava as tardes a rondar por lojas de discos ouvindo todo e qualquer CD com uma caveira na capa, sem nunca comprar nada, passei a ser abordado por ser “o garoto mordido na cara”.
Durante meses aquele sentimento foi meu oxigênio. O viciante sabor da piedade era meu único motivo para sair de casa. Mas com o tempo, as propriedades cicatrizantes da proteína do abacaxi começaram a fazer efeito: os ferimentos foram se fechando, até eu finalmente tirar os curativos e só me restarem pequenos cortes embaixo dos olhos e no nariz.
Ainda tentava contar a história do pointer e seu instinto de caça, mas ter que apontar exatamente onde estavam as quase imperceptíveis cicatrizes não tinha o mesmo glamour. Até que os cortes praticamente sumiram e tudo voltou ao normal. Eu não era mais “o garoto mordido na cara” e teria que suportar o peso de ser só eu mesmo, por quem eu culpo até hoje as propriedades cicatrizantes do abacaxi.

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