segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Rainha de Marte - Daniel Furlan

Luciano Salles



Algumas músicas tocam há tanto tempo que já nascemos fartos de ouvi-las. Tipo “Ob-La-Di Ob-La-Da”. Talvez o choro do nascimento tenha a ver com isso. Os filhos se comunicam através do choro, às vezes combinado com vômito no ombro de uma visita.
De algumas músicas já nascemos gostando, eu acho. Ou pelo menos propensos a gostar. Ter uma mãe beatlemaníaca que cantava “Mother Nature’s Son” e “Julia” para mim na barriga possivelmente tem alguma influência no fato do meu disco preferido ser o “Álbum Branco”. Ou talvez seja só coincidência (e não é verdade quando dizem que coincidências não existem. É evidente que existem, sim). 
Em todo caso, “Julia” não é uma de que eu goste tanto, talvez por ser sobre uma mãe ausente que foi atropelada por um motorista embriagado. Minha mãe não é atropelada há anos e, pai e mãe ao mesmo tempo, passou muito longe de ser ausente, ainda que na pré-adolescência eu exigisse que me deixasse na esquina da escola para eu fingir que chegava sozinho. Não sei se alguém acreditava. 
Curiosamente, quando eu me arrebentava, não fazia tanta questão de chegar no hospital sozinho. No hospital ou na casa do vizinho veterinário, que desinfetou e tirou grãos de arroz de dentro da minha mão quando caí escada abaixo segurando um prato de risoto. Mas foi só essa vez. Ainda que eu tenha exagerado numa oportunidade dizendo que era sempre levado ao veterinário quando me machucava, todas as outras vezes eu fui levado em hospitais humanos. 
Minha mãe ficou triste quando falei isso porque parecia que ela não tinha feito um bom trabalho como mãe, que eu era uma criança tratada no veterinário, e chorou. As mães se comunicam pelo choro às vezes.
Algumas músicas já não só nascemos ouvindo, como sabendo de cor. “Rocky Racoon”, sei desde sempre. E é de onde provavelmente veio o meu nome, quando minha mãe fez uma redação numa prova de inglês em que simplesmente transcreveu essa letra e tirou uma nota 10 com louvor, da professora que obviamente não conhecia a música. Quem não conhece o “Álbum Branco” merece mesmo ser passado para trás. E quem sabe o “Álbum Branco” de cor não leva o filho ao veterinário, que como eu disse antes, aconteceu uma vez só, para dar um jeito numa mão cortada com risoto dentro. 
Não lembro que risoto era.

Daniel Furlan
Ator, comediante e roteirista, é um dos criadores da TV Quase, que exibe na internet o programa "Choque de Cultura".

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