Meu nome é Emanuel. Há tempos, eu pensava em criar um blog sobre leitura mas não encontrava o nome.
"Crônicas Recolhidas e Cia Ilimitada" é, por enquanto, o nome provisório do blog. Além das crônicas, artigos de opinião, contos e poemas terão seu espaço aqui.
Sempre que possível, além do texto, serão incluídos links e/ou imagens relativos ao tema.
— O filme que você está vendo. Posso ver a sua televisão
daqui.
Os fundos dos dois apartamentos davam para o mesmo poço.
Mesmo andar. Da área de serviço de um se via tudo do outro.
Ele:
— Adoro o Hitchcock.
Ela:
— Eu também.
Já tinham se visto no elevador. Ela morava com uma amiga que
nunca aparecia.
— Qual é o seu Hitchcock favorito?
— Estou vendo “Janela indiscreta” pela décima vez. Mas acho
que meu favorito é “Um corpo que cai”. O seu?
— “Os pássaros.”
Ela fez uma cara feia.
Dias depois se encontraram na loja de vídeos.
— Olha o que eu achei — disse ele.
Era “Notorius”. Aquele em que a Ingrid Bergman e o Cary
Grant se encontram na Cinelândia e concordam que o Rio é muito chato. Ela
mostrou o filme que tinha alugado. “Os pássaros.” Ia rever para ver se desta
vez gostava.
— Você não precisa gostar só porque eu gosto.
-— É por boa vizinhança — disse ela, rindo.
Naquela noite conversaram, área de serviço a área de
serviço. Ele disse que o “Notorius” tinha envelhecido um pouco. E ela, o que
achara de “Os pássaros”?
— Sei não... — disse ela.
— Vamos ter que vê-lo juntos.
Foi na noite seguinte. Apartamento dela. A amiga,
diplomaticamente, no seu quarto. Os dois na sala. “Os pássaros”, argumentou
ele, é o filme metafísico do Hitchcock. O único filme de terror na história do
cinema sem monstros e sem vilões. O vilão é o mundo, é a natureza reagindo ao
homem, uma ordem pré-humana se...
Antes de ele terminar a frase já estavam se beijando. Nem
chegaram a colocar o DVD.
Passaram a se encontrar quase todas as noites. Só viam
Hitchcock.
Às vezes discutiam, “‘Topázio’ é um Hitchcock menor!”. “O
quê? O quê?!”
Passavam alguns dias sem se ver. Aí ele batia na porta dela
com uma raridade (“Sabotagem”, por exemplo) e faziam as pazes. Até que um dia a
amiga saiu do quarto e ele viu que se tratava de uma loira irresistivelmente
hitchcockiana, e se apaixonou, apesar de a loira dizer que seu filme favorito
era “Ghost”.
Ele tentou explicar sua traição (“Eu sou coerente! Eu sou
coerente!”), mas não adiantou. Foi morto com uma tesourada, como em “Disque M
para matar”.
Minha tese é a seguinte: o que falta para qualquer relacionamento
dar certo é o apelido. O homem e a mulher — ou o homem e o homem e a mulher e a
mulher, ninguém aqui tem preconceito — devem providenciar apelidos um para o
outro assim que o relacionamento der sinais de que vai ser sério. Não valem
apelidos já existentes, de infância. Os dois devem se dar apelidos novos, só
deles. Pichuchinha. Gongonzongo. Não importa que sejam ridículos.
O apelido é uma forma de você tomar posse de outra
pessoa. Dos dois anularem suas identidades anteriores e assumirem outras, só
deles. Por isso a troca de apelidos entre namorados deveria ter a solenidade de
um batizado, sem padre nem testemunhas. Deveria ser um sacramento secreto, um
ritual particular de apropriação mútua, para toda a vida. Uma união só é
indissolúvel com apelidos. O único amor verdadeiro é o amor com apelido.
— Sei não. Romeu e Julieta...
— Não tiveram tempo de ser "Ro" e
"Juju".
— O Duque e a Duquesa de Windsor?
— "Bobsky" e "Bubsky." Li em algum
lugar.
O importante é não esperar para se darem apelidos. Achar
que com o tempo os apelidos virão. É um erro pensar que uma união feliz produz
apelidos carinhosos. É o contrário: apelidos carinhosos produzem uniões
felizes.
Claro, há sempre o perigo de um apelido entre casais ser
usado para chantagem. Um homem chamado de "Tiquinho" em segredo pela
mulher jamais se separará dela com medo que ela espalhe o apelido e explique
sua origem.
E há casos pungentes.
— Bem, posso lhe pedir um favor?
— Qual é?
— Em vez de "Chururuca"...
— Sim?
— Pode ser "Morenão"?
— "Morenão"?!
— Ninguém vai ficar sabendo.
— Mas você nem moreno é!
— Eu sei. Mas eu prefiro "Morenão".
— Tá bem.
Ela passaria a chamá-lo de "Morenão" quando
estivessem sozinhos. Mas com uma ressalva:
A Outra tanto
fez que conseguiu entrar na UTI, onde encontrou a legítima agarrada à mão dele.
Deitado de barriga para cima, com tubos e fios saindo para todos os lados e
conectando-o à aparelhagem em volta, ele parecia um avião recém-pousado depois
de uma longa viagem. Um Boeing com as turbinas apagadas, mantido vivo pelo
pessoal da terra.
- Querido! -
gritou a Outra, procurando uma parte dele que também pudesse agarrar.
A Legítima nem
piscou.
- O que você fez
com ele? - exigiu a Outra.
A Legítima nada.
- Eu sabia que
cedo ou tarde você o mataria. - acusou a Outra.
A Legítima, uma
pedra.
- Só comigo ele
tinha o carinho de que precisava. Você fez isso com ele! Você! Com sua frieza,
com sua maldade, com sua...
Então a Legítima
falou:
- Nós estávamos
fazendo amor.
A Outra recuou
como se tivesse levado um choque.
- Mentira!
A enfermeira fez
"sssh", mas a Outra falou ainda mais alto.
- MENTIRA!
- Ele morreu nos
meus braços - disse a Legítima no mesmo tom triunfal.
- Ele não está
morto - corrigiu a enfremeira.
- Morreu nos
meus braços, está ouvindo?
- Despeito!
Despeito! Ele só fazia amor comigo.
- Sabe quais
foram as suas últimas palavras?
A Outra tapou os
ouvidos.
- Eu não quero
ouvir!
- Suas últimas
palavras foram "Agora cruza!".
- Não!
- Sim! Sim! Nós
estávamos fazendo o Alicate!
- NÃO!
Um médico
apareceu e ameaçou retirar as duas de perto do paciente. Elas não lhe deram
atenção. A Outra soluçava.
- Não, O Alicate
não!
- Sim! Tudo o
que ele fazia com você, ele fazia em casa. Experimentava em você para fazer
comigo.
A Outra
interrompeu os soluços para espiar por entre os dedos que tapavam seu rosto e
perguntar, incrédula:
- A Borboleta
também?
- A Borboleta, A
Chinesa Assoviadora, o Baile dos Cossacos...
- NÃO!
- Sssshh!!
- Tudo. Tudo!
Você era um campo de provas. Eu era pra valer. Com você era treino. Comigo era
pelos pontos!
Então a Outra
gritou uma palavra indecifrável e avançou num dos aparelhos que cercavam a
cama, tentando arrancar os fios, até ser controlada pelo médico e a enfermeira
e empurrada para fora do cubículo. Da porta a Outra ainda conseguiu gritar:
- O Salgueiro
Despencado ele não fazia com você!
- Fazia! Fazia!
Perfilada ao
lado da cama, a Legítima respirou fundo. Depois, sentou-se. Ia pegar a mão
dele, mas recuou. Em vez disso, cochichou no seu ouvido.
– Em 700 metros, vire à direita, e logo em seguida à esquerda.
Quando o homem se enganava e não seguia suas instruções, a voz não perdia a calma. Dava novas instruções para corrigir o erro, pausadamente e sem fazer comentários. E o homem nunca deixava de se admirar com aquilo: de algum lugar do espaço um satélite o seguia, e uma voz etérea – Como? Saindo de onde? – lhe dizia o que fazer, baseada na informação do satélite. E o satélite via tudo, e nunca errava. Era como um deus em órbita estacionária da Terra. Mas um dia o homem discordou do satélite. Depois de ouvir as instruções da voz, disse:
– Não mesmo.
E ouviu a voz dizer:
– O quê?
– Esta estrada eu conheço bem, e sua direção não está certa – disse o homem, antes de se dar conta que a voz estava dialogando com ele. A voz estava dialogando com ele!
– Vai por mim – disse a voz.
E o homem, apavorado (“Devo estar ficando louco”, pensou), obedeceu, e descobriu que o satélite tinha razão. O caminho indicado era mais curto do que o que ele conhecia. E quando chegaram ao destino desejado mais cedo, pelo atalho, a voz disse:
– Viu só?
*
O homem e a voz passaram a conversar. Ficaram íntimos. Agora, a voz terminava cada instrução com um “querido”. E tornou-se confidente do homem, que lhe contava sua vida e pedia sua orientação. Era muito sozinho. Gostava de uma moça, mas ela ainda não sabia. Ele deveria declarar-se?
– Declare-se – mandou a voz.
– Será?
– Vai por mim.
Ele estava descontente no trabalho. Tinham lhe oferecido outro cargo, em que não precisaria viajar tanto. Deveria aceitar? Sim, disse a voz. Ele estava ficando estressado com tantas horas sozinho nas estradas.
Noutro dia ele declarou que sua vida era uma porcaria e ele não queria mais viver.
– Vire para a esquerda, agora! – ordenou a voz.
– Peraí. Se eu virar para a esquerda vou invadir a outra pista.
– E ser amassado por uma jamanta, certo. Não é isso que você quer?
Depois a voz do GPS mandou:
– Daqui a 200 metros, vire para a direita.
– Onde nós estamos indo?
– Um hospital psiquiátrico que eu conheço. Esta nossa conversa é obviamente uma alucinação sua. Você precisa de tratamento.
– Você acha?
– Vai por mim. Dois Destinos
Você nasceu num vilarejo da África Equatorial. Não importa o seu nome, você é uma entre milhares. Além das outras desgraças que a esperavam, você nasceu mulher. Sobreviver ao parto já foi uma vitória sobre as estatísticas. Chegar viva à sua idade sem sofrer qualquer tipo de mutilação foi um milagre. Sua mãe morreu de uma epidemia, você mal a conheceu. Seu pai você nunca soube quem foi. E seu destino está fixado nas estrelas.
Deve haver uma palavra na sua língua para “destino”. Talvez seja a mesma palavra para “danação”. Sua biografia já foi decidida, antes de você nascer. Quem a decidiu você também nunca soube quem foi.
Seu destino está fixado nas estrelas – mas as estrelas se movem. Não estão fixadas no mesmo lugar todas as noites. E algumas fogem. Você vê os riscos que deixam no céu as estrelas que fogem. E você decide fugir também. Fugir do seu destino. Fugir da danação. É pouco provável que exista o termo “livre-arbítrio” na sua língua. Você o descobre em você. Você inventa sua própria liberdade.
E você foge da sua biografia. Com outros do seu vilarejo, caminha para o Norte, para o Mediterrâneo. Não morre no caminho – outro milagre! Não morre sufocada no barco abarrotado de fugitivos que atravessa o Mediterrâneo. Não morre afogada antes de chegar ao seu outro destino, o destino que você escolheu. E começa outra biografia.
Ou:
Você nasce numa cidade chamada Londres. Seu nome não só importa como é sujeito de uma especulação nacional, até ser escolhido. Sua mãe é linda, seu pai é rico e tem emprego garantido, sua foto provoca êxtases, você já é uma celebridade internacional. Ah, e um detalhe: você é a quarta na linha de sucessão ao trono da Inglaterra. Dependendo da disposição das estrelas, pode acabar Rainha. Nada lhe faltará.
Mas, mesmo que queira, jamais poderá fugir da biografia que prepararam para você. Danação.
As pessoas são mais inteligentes dormindo do que acordadas. Todas sonham, mesmo que não se lembrem depois, e seus sonhos são sofisticadas narrativas cifradas, de grande complexidade temática e riqueza simbólica. Meninos de rua sonham como Borges, engenheiros são surrealistas oníricos, debutantes vazias levam a arte da elipse visual a extremos de criatividade, quando dormem. O sonho não é apenas um grande nivelador intelectual - qualquer cerzideira escreveria como a Clarice Lispector, se apenas pudesse botar a trama dos seus sonhos num papel - também é o grande apagador de fronteiras: os sonhos da Rita Cadillac e do arcebispo estão plugados no mesmo provedor de signos, disfarces, desejos e medos, o mesmo roteirista maluco, de todo o mundo. Os sonhos só não são a linguagem comum da espécie porque ainda não se chegou a um vocabulário comum para entendê-los. As mensagens são as mesmas para todos nós, variam as interpretações. * Só posso especular, por exemplo, sobre o significado de um sonho que tive há tempos, sobre o que o sonho estava querendo me dizer. Enquanto eu sonhava, sua mensagem era claríssima. Quando acordei não entendi mais nada. Eu estava no meio do mar, mexendo braços e pernas para me manter à tona. De acordo com a ortodoxia freudiana, sonhar com água tem alguma coisa a ver com sexo. Pensando bem, para a ortodoxia freudiana tudo tem alguma coisa a ver com sexo, água é só o mais óbvio. Mas já estou naquela idade em que nem a ortodoxia freudiana funciona mais. Interpretei minha situação como a continuação, no mundo cifrado, do pensamento sobre a condição humana que começara antes de dormir. Isto raramente funciona, como você sabe. Pouco adianta pensar com força na Patrícia Pillar antes de dormir, ela não aparecerá no seu sonho. Pode aparecer um símbolo da Patrícia Pillar, mas isso você só saberá depois, na interpretação (aquele pássaro - era ela!), quando for tarde demais. Deduzi que o Oceano Atlântico era o Tempo e eu, modestamente, era a Humanidade. * A distância entre a superfície do mar e o fundo simbolizava o tempo transcorrido desde a criação do mundo, eu representava o tempo da nosso existência no planeta. Contando todas as nossas formas pré-históricas desde o primeiro hominídeo, somos uma espécie recentíssima. E, mesmo na síntese histórica do meu corpo agitado, só a porção da testa para cima representava o homem agrícola-pastoril-industrial que começamos a ser ante-ontem, em termos relativos. Durante a maior parte, quase noventa por cento, do nosso passado como gente fomos caçadores-catadores. Ainda temos os dentes caninos, e uma vaga inquietude de nômades, para nos lembrar desse tempo. Dizem até que éramos melhores então: comíamos mais proteínas e tínhamos uma dieta mais variada antes de descobrir a agricultura - e fazíamos mais exercício, mesmo fugindo de mamutes. Com a agricultura e a domesticação de animais vieram as monoculturas, o sedentarismo e os primeiros grupos humanos a conviver com dejetos, os seus e os dos seus bichos. Nasciam, ao mesmo tempo, a civilização e a falta de higiene.
* Qual era, então, o meu significado, na superfície daquele oceano, a quilômetros do seu fundo e da origem da vida? Acho que eu era um símbolo da megalomania humana, da nossa absurda pretensão que 10 mil anos de existência ereta nos dão um significado maior do que o da libélula, que vive só um dia. Em comparação com o tempo transcorrido desde que a primeira ameba se dividiu no miasma borbulhante, a espécie humana também viveu só um dia. E uma noite, para sonhar com ele. Me debatendo no meio do oceano simbólico, eu não passava de um mosquito na superfície de um caldeirão de melado, convencido que toda aquela doçura era em seu louvor. A síntese do meu sonho, então, era essa: não passamos de mosquitos pretensiosos. * Mas aí veio uma barcaça embandeirada com a Cleópatra e o Dom Pedro II abraçados na popa, enquanto alguém na proa gritava na minha direção: “Deleta! Deleta!”, e tudo ficou misterioso outra vez. HAGAR - DIK BROWNE
Ideia para uma história. Um preso moço é colocado na mesma cela de um preso velho. Antes de entrar na cela, ouve de um guarda o aviso: – Cuidado.
Pergunta por que, mas o guarda não diz mais nada. Só sacode a cabeça, lamentando toda a loucura do mundo.
O preso velho está deitado na sua cama, virado para a parede. O moço o cumprimenta e diz o seu nome. O velho não responde nem se vira. O moço insiste: pergunta qual é o nome do velho. O velho nada. O moço desiste.
Naquela noite, ouve o velho falando sozinho. Sua fala é cadenciada. O moço não entende as palavras. O velho parece estar recitando uma oração. Uma litania. Pausadamente.
– ...zabel ...unior ...oxo... Isto acontece todas as noites.
– ...arvalho ...viviê... antas...
Aos poucos, o moço começa a decifrar as palavras que o velho diz. São nomes. Isso, nomes. Nomes de ruas... As ruas de Copacabana! O moço finalmente as identifica. O velho recita os nomes de todas as ruas transversais de Copacabana, da Princesa Izabel à Francisco Otaviano. Todas as noites. E pela ordem.
– Princesa Isabel... Prado Junior... Belfor Roxo... Ronald de Carvalho... Duvivier... Rodolfo Dantas...Fernando Mendes... República do Peru... Paula Freitas... Hilário de Gouveia...
Há anos que ele faz isso, pensa o moço. Todas as noites, há anos.
E ele sempre pula uma rua, estranha o moço. A Dias da Rocha, entre Raimundo Correia e Constante Ramos. Devo alertá-lo de que ele está esquecendo uma ou é melhor não me meter? Ele obviamente não quer conversa comigo. Recitar as ruas de Copacabana deve ser sua maneira de lembrar sua vida lá fora.
De evocar seus dias de liberdade e sol. De sonhar, de não enlouquecer. Ou talvez ele pule a Rua Dias da Rocha de propósito. Algo aconteceu na Rua Dias da Rocha que ele prefere não lembrar. Mas chamar atenção para a sua falha talvez seja um jeito de me aproximar dele, pensa o moço. De nos conhecermos, de começarmos a nos relacionar, já que estamos condenados a viver juntos nesta cela.
O moço decide esperar o momento para intervir.
– ...Santa Clara... Raimundo Correia...
– Dias da Rocha! – grita o moço.
Silêncio.
– Você esqueceu a Dias da Rocha – diz o moço.
São necessários três guardas para arrancar as mãos do velho da garganta do moço e tirar o moço da cela. No caminho de outra cela, onde ficará a salvo da fúria do velho, o moço ouve um dos guardas dizer:
– Você teve sorte de a gente chegar a tempo. Ele já matou dois.
Na calada da noite, quando o silêncio é tão denso que não se escuta nem o espirro de um guarda noturno, meus pensamentos delirantes despertam, e meu cérebro começa a azucrinar.
Eu ordeno a ele: quieto! Estamos na calada da noite, essa expressão não te sugere nada?
Ele não me dá trela e passa a listar as preocupações que me aguardam no dia seguinte. Amanhã, você precisa trocar o horário da aula de inglês com a Karin, será que ela estará livre na quarta? Amanhã, você precisa acrescentar batata-doce na lista de compras do supermercado. Amanhã, você precisa checar que barulho é aquele que seu carro está fazendo quando dá ré.
Amanhã, você precisa adicionar mais 10 minutos de cenas no roteiro do filme que está escrevendo e dar uma sacudida na personagem principal, ela ainda está meio desmaiada. Amanhã, você precisa escrever mais duas crônicas inéditas de qualquer jeito, ou não conseguirá viajar tranquila pro Rio. Amanhã, você precisa checar se a camisa branca está limpa para a palestra.
São 3h30min da manhã, e a noite segue calada, mas meu cérebro não fecha a matraca. E o pior está por vir: ele logo entrará em sessão de terapia. Adora fazer isso no meio da madrugada.
Tenho a impressão de que aquele texto que você publicou duas semanas atrás foi um recado para uma amiga sua. E não ter respondido aquele WhatsApp de anteontem foi uma provocação estúpida. Se você tem vontade de largar tudo, por que não larga? Aliás, comece largando o pé da sua filha, deixe que ela viva do jeito que quiser. Não acredito que você vai falar de novo sobre aquela vez em que perdeu o avião porque ficou trancada no banheiro. Óbvio que você não queria embarcar.
São 4h30min da manhã, nunca fiquei presa em banheiro de aeroporto, então é sinal de que a terapia desandou e agora estou entrando naquele período dramático em que recebo a visita dos meus demônios, sempre pontuais.
Essa mancha no seu braço. Está com a maior pinta de ser um melanoma. Você precisava ter tomado três cálices de vinho? Marque uma hora no gastro se não quiser morrer de cirrose até a próxima sexta-feira. Você não vai viver muito, sabe disso. A dor no joelho é da idade, mas o aperto no peito é problema cardíaco grave, você tem um mês de vida, você tem duas semanas de vida, você tem que deixar um bilhete de despedida para seus entes queridos, tchau querida, acho que você não vai nem acordar.
São 6h da manhã, o guarda noturno espirra, e eu acordo. Fim de mais uma tagarelice cerebral numa noite calada coisa nenhuma.
Tiê "A Noite"
Flávio Venturini/Sá & Guarabyra e 14 bis - Noites com Sol
“Vamos assistir o quê?”, ela pergunta, se aboletando no sofá. É sexta à noite, as crianças estão na casa da avó, não temos nenhum compromisso social, nenhuma pendência profissional, chove lá fora e aqui, caro Lobão, não faz tanto frio, pois estamos debaixo de um cobertor; à minha frente uma TV gigante, na minha mão um controle pequenininho e a poucos cliques, via Apple TV ou Net- flix, praticamente todos os filmes ou programas televisivos já produzidos desde a invenção do cinematógrafo. Parece a abertura de uma noite perfeita. Parece.
“Um Woody Allen?”, proponho. “De novo? Vamos ver alguma coisa diferente. Documentário?” Colocamos “Documentário” na Apple TV e vamos escrutinando as capinhas. Muita coisa parece boa, algumas parecem ótimas, mas por que ficar com o ótimo se podemos chegar ao excelente?
Depois de uns 20 minutos, conseguimos fechar em três docs: um sobre as prévias americanas, um sobre maus- tratos aos bichos no Sea World, um sobre os Rolling Stones. Estamos quase tirando um cara ou coroa entre as orcas e o Keith Richards, quando... “E série, hein? Faz tempo que a gente não tem uma série pra chamar de nossa. Lembra dos tempos de Mad men, Breaking bad, Sopranos? Vamos ver se a gente acha alguma coisa?” Ela assente, receosa. Coloco os três documentários na “Lista de desejos” e pulamos pra “Séries”.
“Séries” é sempre um problema. Nunca sabemos se devemos preencher algumas lacunas da nossa formação e assistir a The wire ou The west wing ou se devemos tentar acompanhar algum dos lançamentos mais recentes: Stranger things? Horace and Pete? Ficamos clicando nas capinhas, lendo sinopses e mandando coisas pra “Lista de desejos”. O tempo passa, “ele foge: irreversivelmente o tempo foge”, escreveu Virgílio, já é quase meia-noite e a lembrança do poeta latino me sugere que, nas águas turbulentas das crises, é sempre prudente atracar no porto seguro dos “Clássicos”.
“Billy Wilder?” “A gente já viu todos.” “Godard?” “Pelo amor de Deus, Antonio, a ideia é se divertir!” Truffaut bate na trave. Por uns momentos chegamos a comemorar a vitória do Bergman, mas o peso daqueles gigantes vai, furtivamente, criando uma ânsia por leveza. “Comédia!”, eu sugiro. “Jerry Lewis?! Eu nunca vi Jerry Lewis depois de adulto, dizem que é muito bom.” “Ah, não! A gente tem todos os filmes do mundo e vai escolher justo um que passa na Sessão da Tarde?!” “Woody Allen, então?” “De novo???”
Às três da manhã, já não há mais método na loucura. Vamos de um documentário sobre batatas fritas pra Oito e meio, de Goonies pra Luzes da ribalta, d’O dragão da maldade contra o santo guerreiro pra Caverna do dragão. Às cinco e cinquenta e nove, a última gota de esperança é finalmente evaporada pelo primeiro raio de sol. Desligamos a TV, viramos pra janela. O céu fica roxo, depois laranja, depois amarelo. “E aí, que que cê achou?”, pergunto.
“A fotografia é linda, mas o roteiro é péssimo.” “Previsível. Parecia que o sol ia nascer, daí começou a nascer e no fim, nasceu mesmo.” “É. Sem contar que é a 10ª vez que a gente assiste.” Dormimos no sofá. Acordo poucas horas depois com o mais novo golpeando minha cabeça com uma Peppa inflável e gritando “Babai!”, “Babai!”, “Babai!”.
A declaração de amor não serve para seduzir o objeto de
amor, mas para apaixonar-se cada vez mais
Os sentimentos funcionam como picadas de mosquito, que
coçamos e recoçamos até que se tornem feridas infectadas e, às vezes,
septicemias generalizadas (quem sabe fatais). Salvo um exercício difícil de
autocontrole, qualquer picada pode adquirir uma relevância desmedida: a gente
tende a se coçar muito além da conta porque descobre que se coçar não é um
alívio, mas um prazer autônomo em si.
Por isso mesmo, em geral, não confio nos sentimentos --nem
nos meus, nem nos dos outros. Não é que eu supunha que os humanos mintam quando
amam, odeiam ou se desesperam no luto. Nada disso.
Apenas verifico que os sentimentos, em geral, são condições
autoinduzidas: transtornos ou desvios produzidos pelos próprios indivíduos,
que, se não procuram sarnas para se coçar (como diz o ditado), no mínimo adoram
coçar as sarnas que eles têm. Detalhe: coçando, aumenta o prurido, assim como
aumentam a vontade e o prazer de se coçar.
Tomemos o exemplo do amor. Eu encontro, conheço ou vislumbro
de longe alguém que preenche algumas condições básicas para que eu goste dela.
Sussurrando entre quatro paredes ou gritando em praça pública, anotando no meu
diário ou escrevendo para grandes editoras, passo a encher o ar ou as páginas
com as descrições da beleza inigualável de minha amada e com as declarações hiperbólicas
de meu sentimento.
Claro, minha prosa ou poesia poderão, quem sabe, conquistar
meu objeto de amor, mas esse é um efeito colateral. O efeito mais importante (e
esperado) de minhas palavras de amor não é tanto o de seduzir o objeto de meus
sonhos, mas o de eu me apaixonar cada vez mais. Pois a intensidade do meu amor
será diretamente proporcional à insistência e virulência de minhas declarações.
Em linguística, chamamos performativas aquelas expressões
que, ao serem proferidas, constituem o fato do qual elas falam. Exemplo
clássico: um chefe de Estado dizendo "Declaro a guerra" --essa frase
é a própria declaração de guerra.
Dizer que sou apaixonado, que odeio ou que me desespero no
luto talvez não sejam propriamente performativos. Mas se trata, no mínimo, de
semiperformativos, ou seja, talvez os sentimentos existam antes de serem
declarados, mas eles só crescem e tomam conta da gente na hora de serem ditos,
descritos e contados --na hora de sua declaração, pública ou privada.
Há três razões pelas quais o amor é absolutamente
indissociável da literatura amorosa. A primeira é que a gente aprende a amar e
a declarar o amor pela literatura. A segunda é que o amor se tornou relevante
em nossa vida à força de ser descrito e idealizado pela literatura. A terceira
é que o amor, como sentimento, é um efeito das palavras que o expressam: a
literatura nos instiga a amar tanto quanto nossas próprias declarações
amorosas.
Acabo de terminar a prazerosa leitura de "Como os
Franceses Inventaram o Amor" (editora Prumo). Nele, Marilyn Yalom percorre
a literatura francesa e revela que ela é um repertório completo do amor.
A coisa começa com o triângulo amoroso, que não é um
acidente ou um imprevisto do amor; ao contrário, o amor começa, mil anos atrás,
com o triângulo amoroso. Tristão escolta Isolda, a futura esposa de seu tio, e
se apaixona por ela. Lancelote venera seu rei Artur, mas se apaixona pela
rainha. E, em geral, os poetas do amor cortês amam damas casadas (e
frequentemente fiéis a seus senhores, aliás).
A França é, para Yalom, a pátria do amor. Não só pela
riqueza de sua literatura, mas justamente porque, na cultura francesa, do amor
cortês do século 12 até as conversas das preciosas nos salões parisienses do
século 17 (que Molière ridicularizava, mas também admirava), amar é, antes de
mais nada, uma arte de dizer, de ser efeito das próprias palavras que usamos ao
declarar e descrever nosso sentimento.
Alguns acham que falta amor em sua vida. Como Emma Bovary ou
Anna Kariênina (extraordinária a tradução de Rubens Figueiredo, pela Cosac
Naify), temem que, sem amor, sua vida nunca chegue a ter a dignidade de um romance.
A eles, recomendo paciência: os tempos mudam, e talvez se afirme hoje, aos
poucos, uma retórica nova, menos sentimental, capaz de dar valor literário a
uma vida sem amores e paixões.
Outros se queixam dos estragos que o excesso de amor faz em
sua vida. Aqui a cura é simples: eles não vão acreditar, mas basta se calar um
pouco, assim como é suficiente não se coçar para que as picadas de mosquito
parem de incomodar.
Laerte
Walter Franco - Feito Gente
Paulo Diniz - Poema Para Léa
Homens que amam – Cláudio Moreno
Dez anos os gregos mantiveram Troia sitiada; por dez anos,
dia após dia, os portões da grande cidade se abriram para que os troianos
saíssem ao encontro do inimigo, guiados pela coragem exemplar de Heitor. Heitor
defende Troia, mas, acima de tudo, defende uma mulher e uma criança.
Sabe que o dia virá em que seus passos vão cruzar os passos
de Aquiles, seu implacável oponente – mas não pensa em outra coisa senão
proteger Andrômaca, por quem está disposto a morrer. E vai ser assim, sob o
olhar desesperado da mulher, do pai, da mãe e de todos os troianos, que ele
vai, finalmente, receber de Aquiles os golpes que o matarão.
A História nos mostra que não há nada como o amor para nos
tornar corajosos diante de um perigo mortal. Esse foi, sem dúvida, o segredo do
extraordinário Batalhão Sagrado de Tebas, uma tropa de elite que, para a
surpresa de toda a Antiguidade, enfrentou e derrotou o temível exército
espartano na batalha de Tégira. Este batalhão, também conhecido como Batalhão
dos Amantes, era formado por trezentos homens – na verdade, cento e cinquenta
casais de namorados, decididos, como Heitor diante dos olhos de Andrômaca, a
dar sua vida para salvar a de seu amado.
No combate daquela época, o homem via a morte de frente: no
lugar da destruição anônima e impiedosa dos mísseis e dos canhões, a luta era
sempre corpo a corpo, na distância máxima do comprimento da lança ou do braço
armado com a espada.
A solidariedade entre os combatentes era o fator decisivo
entre a derrota e a vitória; um soldado sabia que o seu escudo devia proteger a
si e parte do corpo do companheiro a seu lado. Um dependia do outro, e todos se
moviam como se fossem um só. Com homens que se amavam, lutando lado a lado,
isso chegava à perfeição, permitindo, como sugeria Platão, que “um simples
punhado de bravos enfrentasse o mundo inteiro”.
O Batalhão dos Amantes encontrou seu fim na batalha de
Queroneia, quando enfrentou os exércitos de Filipe da Macedônia e de seu filho,
o futuro Alexandre Magno. Acossados por um número muito maior de combatentes,
lutaram até o último homem. Conta a lenda que Filipe ficou emocionado ao ver
todos aqueles corpos juntos, e, ao saber quem eram eles, para lhes prestar a
justa homenagem de um guerreiro, enterrou-os todos no mesmo lugar, onde ergueu
a estátua de um gigantesco leão de mármore.
Escavações modernas encontraram 254 esqueletos, lado a lado,
arranjados em sete fileiras; presume-se que os demais tenham sido feridos e
capturados pelos macedônios. O que nos serve de lição é que tanto aqueles que
os mataram, quanto os que desenterraram seus despojos em momento algum
duvidaram que ali estavam homens como eles, capazes de morrer pela pessoa – ela
ou ele, não importa – que escolheram amar.
Por que dói o amor? Porque implica encontro e união e,
também, desencontro e desunião. Não pode aprisionar, nem ser aprisionado. É de
sua natureza ser fluxo, estar sempre pronto a se desfazer e refazer. O amor só
é eterno enquanto dura, diz Vinicius de Moraes. Só a duração é eterna.
Falar sobre o amor é abordar um dos temas mais recorrentes
da vida humana e que todos experimentamos em alguma de suas formas. Difícil de
ser conceituado, encontramos sua ambiguidade já na Grécia Clássica, em que o
amor aparece em três vocábulos (eros, philia e agapè) que enfatizam não o que
se ama, e sim, o tipo de relação que se estabelece.
Eros designa o amor acompanhado de desejo. Já a segunda
palavra (philia) se refere ao amor por algo com o que nos associamos – podendo
ser tanto amor a uma pessoa, como na relação de amizade, como amor a uma ideia
ou valor, como na filosofia. Por fim, há a agapè, que se encontra relacionada a
um valor específico, talvez próximo da “renúncia”. Seria um amor da ordem da
ternura, sem reciprocidade, uma espécie de amor puro, como o amor ao próximo
pregado pela tradição cristã da caridade.
Eros se relaciona diretamente com o desejo, que se apresenta
como falta, na tradição platônica, ou como força, produção, na versão
nietzschiana. Na primeira, surgem as questões: pode-se amar aquele que já se
tem ou só o que nos faz falta? Como poderia alguém desejar o que já possui?
Como se pode prescindir do que já se tem?
O amor em relação a algo (ou alguém) parece nascer de sua
falta. Instala-se, assim, no imaginário coletivo, por séculos, a ideia do
desejo como falta e, portanto, do amor como algo sempre oscilante entre a
fartura e a saciedade, em uma busca constante.
Mas o amor não é imune ao tempo e, nas flutua- ações da
história e das revoluções que marcam a existência humana no Ocidente, vemos
mutações nos modos de amar, com múltiplas práticas eróticas e formas amorosas
se desenhando, a partir do exercício do amor como produção, energia, força,
sempre em conflito, pois essa é a característica básica do amor enquanto fluxo
– abundância e carência.
Na experiência contemporânea, vivemos a velocidade como um
valor em si mesmo, com sutis e profundas repercussões no plano das relações e
das práticas amorosas. Órfãos de nossas certezas, seguimos em busca de um chão
menos escorregadio, de vínculos, se não estáveis, pelo menos intensos em seu
significado afetivo. E não importa a dor, amar e se apaixonar é tudo porque a
vida vale a pena.
Malvados - André Dahmer
Letuce, Blubell e O Terno - Que Se Chama Amor (Só Pra Contrariar)
Letuce - Lugar Para Dois
O amor é um lugar tranquilo, silencioso e ensolarado -
Mariliz Pereira Jorge
O grande problema das histórias de princesa não é a
passividade das moçoilas à espera de príncipes, que serão sua salvação. Não é o
machismo que se discute ou o culto à magreza impossível. Isso tudo tem remédio.
A pior mentira contada é que o amor é algo impossível, cheio de obstáculos e
sempre haverá muita tristeza, decepção e desencontros antes do "final
feliz". Caí nesse conto. Não devo ser a única.
O que tiramos desses tipos de livro é que o tal do
"final feliz" é um lugar onde poucas pessoas conseguem chegar e quase
nunca têm habilidade para explicar o que exatamente podemos encontrar por lá.
A gente cresce acreditando que um amor de verdade tem
doses cavalares de sofrimento, angústia, doação, que precisamos abrir mão de
muita coisa, ser dedicados, pacientes e compreensivos, caso contrário o danado
do amor se rebela e vai embora porque não nos comportamos direito.
É tudo mentira. Só acaba quando não é amor.
Fui feliz várias vezes, mas sempre me conformei com o
inevitável fato de que a maior parte do tempo a gente tenta completar um
quebra-cabeças com duas peças que não se encaixam. Num primeiro olhar, elas
parecem compatíveis. Num primeiro momento, a promessa é de amor.
Achei que era amor muitas vezes. Perdi as contas de
quantos encontros me fizeram pensar "agora vai", mas quase sempre era
apenas um passeio de montanha-russa em que me senti muito eufórica em algumas
fases e em outras como se caísse num precipício de sentimentos com os quais
nunca sabia lidar.
Então, a gente se acostuma com histórias em que as
narrativas mostram o amor apenas num papel triste de figurante. Ficamos em
relações em que tem de tudo: falta de respeito, de paciência, de planos em comum,
de afinidade. Só não tem amor, porque no fundo nem sabemos reconhecê-lo.
Me enganei a vida toda.
Achei que era amor aos 14, outra vez aos 18, depois aos
28. Então, perdi a conta. Achei que era amor, mas eram hormônios em ebulição e
espinha na testa. Achei que era amor de novo, mas era só maconha e maresia.
Tinha certeza de que era o raio do amor. Nada, era só aluguel mais barato,
dividido por dois. E várias vezes achei que era o encontro mais especial da
vida, mas eram apenas noites mal dormidas depois de sexo bem feito e o braço
adormecido da conchinha.
Até o dia em que ele chegou e nunca mais foi embora. E
durante muito tempo desse momento "nunca mais foi embora" esperei com
paciência o instante em que a gente percebesse que as duas pecinhas que somos
nós não se encaixavam. A gente daria de cara com o fim da estrada e cada um
pegaria um atalho para bem longe um do outro.
Esperei. Esperei. Esperei. E enquanto aguardava que tudo
desmoronasse, a gente se trombava, pedia desculpas, saía por uma porta, engolia
o orgulho, voltava pelo mesmo caminho, se divertia, se amava, sentia saudade,
saía correndo, fazia planos, comprava uma cama, pendurava um quadro na parede,
discutia, fazia as pazes, tinha acessos de risos. Os dois. Uma sintonia.
Eu sentia amor e pavor ao perceber que nossas histórias,
personalidades, desejos e tralhas, que acumulamos pela vida, se encaixavam cada
vez mais.
Hoje, quando ele entrou em casa, o achei tão lindo e
atraente, me peguei sorrindo, sem prestar atenção no que ele contava. Foi como
se o olhasse pela primeira vez. Acontece com frequência. E enquanto eu me
acomodava no sofá, as respostas que tenho procurado há tanto tempo estavam bem
ali.
O amor não te deixa triste, inseguro, solitário, com
medo. Você não acorda no meio da noite ou perde o apetite. Não há silêncios
dolorosos. Não há dúvidas. As brigas não machucam.
Não tem nada a ver com sofrimento, medo, doação. É
difícil descrever o que encontramos ao chegar no tal do "final
feliz". Eu diria que é um lugar tranquilo, silencioso e ensolarado, num
domingo de primavera.
Hoje, quando ele entrou em casa, percebi que parte da
minha vida tem sido exatamente desse jeito. E eu não tenho a menor vontade de
estar em outro lugar porque sei que ele também não quer. Laerte
Ângela Rô Rô - Amor, meu grande amor
PRO AMOR VIVER EM PAZ - Video Clip Lory F. Band
Amor só acontece para quem é teimoso - Mariliz
Pereira Jorge
É mais fácil desistir do amor. A gente economiza um tanto de
frustração, de lágrimas, de dor no peito, de lenços descartáveis e do fígado.
Ah... o fígado, aquele herói da resistência dos corações partidos. Aquele velho
amigo em quem a gente se debruça sem pedir licença.
Tão bom sentir o coração vazio. Tão bom quanto acordar
depois de um dia de dieta líquida e sentir a barriga chapada. Sentir o interior
vago. O vazio confortável. Mas nada como um pão quentinho com manteiga para
forrar esse espaço ocioso. E lá vamos nós de novo.
Muito mais fácil desistir do amor. Muito mais. A gente não espera
mensagem, ligação, nem like no Facebook. Não checa o telefone incansavelmente
em busca dos dois tracinhos verdes. Não sofre com os silêncios. Os silêncios
que dizem tudo, mesmo que a gente não queira entender o que dizem.
A gente dorme. Quem ama sem receber amor em troca sabe que o
sono custa a chegar, vai embora no meio da noite e nos vence pelo cansaço já
pela manhã, na hora de levantar e encarar mais um dia. Que tarefa cruel
enfrentar o mundo, as pessoas, o trabalho, quando tudo que queremos é ficar em
casa sofrendo em paz. Deixe-me.
Melhor sem amor. Sem amor não tem dor, não tem falta de
apetite, não tem insônia, não tem dor de barriga, não tem nada. Também não tem
muita graça. A não ser que a graça tenha dado o ar da graça em outra coisa. Que
a vida sem amor seja opção e não fuga. Pior do que sem amor é tentar fugir
dele.
O amor está difícil, reclamam. Desde quando foi fácil?
Ninguém quer nada com nada. Mentira, nunca se casou tanto no Brasil. Não sou eu
quem diz, é o IBGE. Também nunca se descasou tanto. Tem mais gente voltando ao
mercado em busca de relações felizes. O numero de casamentos é três vezes maior
do que o de separações.
Mas vamos encarar a realidade, não se encontra amor na
primeira tentativa, tampouco na vigésima. Muitas vezes é tudo, menos amor.
Muitas vezes é amor, mas tudo dá errado. Amor só acontece para quem é teimoso.
O amor só acontece para quem não tem medo de colecionar
histórias de desamor. Para quem espera a ressaca passar, toma um banho e está
pronto para outra. É verdade, há dias em que a gente acorda com uma daquelas
homéricas e promete nunca mais sentir, amar, apaixonar-se.
Resoluções que acabam assim que a gente bate o olho, o
coração bate e a gente se pega com o ombrinho caído e o olhar desmoronado de
paixão. Mesmo sabendo que pode dar errado, dar em nada, que pode dar com os
burros n'água. O teimoso vai lá e arrisca mesmo que sejam enormes as chances de
que seja apenas mais um amor que vai descer pela goela feito uísque paraguaio.
O teimoso entra no chuveiro frio, toma um Engov com café
quente e logo está pronto para outra. O teimoso se diverte com suas histórias
equivocadas. O teimoso ri de suas presepadas. O teimoso é um sobrevivente. O
teimoso sabe que vai engolir muito uísque falsificado nessa vida. Mas o teimoso
está lá com o coração prontinho para viver todos os amores paraguaios, porque
no fundo, mesmo que seja no fundinho, ele sabe que para um dia dar certo dará
muito errado antes.
Malvados - André Dahmer
"A que sabe o Amor" - Vanda Furtado Marques
- Mãe, a que sabe o amor?
- Hum, boa pergunta, mas isso vais tu ter que descobrir, minha querida.
A menina ficou inquieta, e foi pensar como o fazer. Coçou a cabeça, arregalou os olhos, meteu a mão no queixo, mas a coisa estava difícil.
Até, que uma ideia enorme, lhe apareceu à frente dos seus olhos!
Perguntar às pessoas que conhece! Alguma delas há-de saber!....
Começou, pelo Sr.José da pastelaria que ficava por baixo da sua casa.
- Sr.José, a que sabe o amor?
- Sabe a pastéis de nata acabadinhos de sair do forno.
A menina anotou no seu caderno das perguntas e continuou.
Parou na D. Hermínia da papelaria.
-D. Hermínia, a que sabe o amor?
Hummm, sabe a um poema de amor, saído pela boca de um poeta.
E anotou no seu caderno.
Caminhou, mais um pouco e parou no Sr. Ernesto do supermercado.
-Sr Ernesto, a que sabe o amor?
-Ora deixa lá ver, sabe a uma sopinha de legumes feita pela minha mulher.
A menina anotou.
Seguiu para casa dos avós, bateu à porta. Apareceu a avó, com um enorme sorriso.
- Entra, entra...
- Avó, a que sabe o amor?
- Muito fácil, sabe aos abracinhos do avô Fernando.
Anotou no caderno e procurou o avô.
-Avô, a que sabe o amor?
O avô, coçou o queixo, virou os olhos para cima, e a menina continuava suspensa à espera da resposta.
-Sabe, aos teus beijnhos e às tuas visitas.
Anotou no caderno, mas estava a ficar cada vez mais confusa.
Decidiu, ir para casa e perguntar ao pai.
- Pai, a que sabe o amor?
O pai olhou-a com carinho e esboçou um sorriso.
- Sabe ao conforto, de vos ver todos os dias comigo.
Anotou no caderno e foi ter com a mãe.
- Mãe, eu fiz como tu disseste, fui perguntar a que sabe o amor, mas cada um, a quem pergunto dá uma resposta diferente e assim é difícil.Pelos vistos, sabe a tanta coisa!
- Pois é meu amor, é aí que está a beleza do amor, pode saber a tanta coisa, mas cada um pode sentir de forma diferente. No amor cabe tudo.
A menina, olhou para a mãe, e naquele momento percebeu.
- Mãe, cada um pode sentir e saborear o amor de forma diferente, e está tudo certo. Devemos procurar saborear o amor à nossa maneira, e abraçar esse amor.
- Muito bem, minha querida, depois de sabermos saborear e abraçar o nosso amor, estaremos prontos para dar amor ao mundo.
A menina e a mãe deram um abracinho do tamanho do mundo.
Tenho a certeza que o mundo sentiu o calor deste amor e se fortaleceu com esta beleza."
Demorei a perceber. Por isso confiamos em pouquíssimas
pessoas em nossa vida.
E podemos passar uma vida inteira sem confiar em ninguém. É
tão difícil confiar quanto amar. Tão raro. A confiança e o amor são
conquistados. Exigem tempo, observação, sinceridade, lealdade, soma de
atitudes.
Não é porque é sua mãe ou seu pai ou seu irmão que você vai
confiar. Família não traz garantias. Confiar não é genético. Confiar é
intimidade recompensada. Confiar é recíproco. É quando damos e recebemos
simultaneamente. Confiar é contar um segredo e ver, já no finzinho de nossa
história, que nunca foi revelado.
É uma previdência privada de nossos mistérios. É quando as
ações comprovam as palavras.
Confiar não é para os apressados, mas representa o retorno
de uma longa viagem mental. É a velhice dos nossos hábitos, a velhice das
nossas frases, a velhice de nossos juramentos. É quando um gesto recebeu a
proteção do silêncio.
Quando alguém confia sem conhecer, na verdade, está
esperando confiar. É uma aposta para tornar mais fácil a convivência.
Demonstramos despojamento no início das relações, mas somos complexos no
decorrer da cumplicidade. Entregamos a chave da nossa casa para perguntar todo
dia se o outro não a extraviou. E perguntar é desconfiar.
No máximo, confiamos desconfiando. Com o pé atrás e um olho
lá na frente. Confiamos com medo de confiar, sofrendo o receio de ser
enganados, tremendo por depender de alguém, temendo pela nossa vulnerabilidade.
Assim como o amor.
Falamos que amamos antes de amar, para nos convencer de que
é amor. Falamos que confiamos antes de confiar, para nos convencer de que é
amizade.
Confiar é se desiludir, é se frustrar, é se decepcionar.
Assim como o amor. É criar as mais altas expectativas e depois se acomodar com
o que é possível. Como o amor.
É aparecer com todas as certezas do mundo de que aquela é a
pessoa certa e descobrir, aos poucos, que ela mente e pensa torto como você.
Confiar dói. Como o amor. Ainda mais quando a confiança é quebrada e não há
como restaurá-la com discussões, colá-la com desculpas, consertá-la com declarações
grandiloquentes.
Confiar é ter uma relação única com alguém, inimitável, e
não dividi-la com um terceiro. É o contrário da falsidade, que significa ser
igual com todos fingindo diferença e exclusividade.
Deixar de confiar é deixar de amar – perde-se junto a
admiração, o alumbramento e o respeito incondicional. Deve-se desamar para amar
de novo.
Terreno Baldio - Loucuras De Amor
Angeli
Os amores mortos no lustre - Fabrício Carpinejar
Você só se dá o trabalho de tirar o lustre quando a lâmpada queima.
É sempre quando ela estoura. Pode levar meses ou anos para desenroscar a redoma.
Ninguém limpa o lustre se a lâmpada não queimar. Não recebe o cuidado semanal das janelas e dos espelhos.
Mesmo enxergando camadas negras de insetos no vidro transparente. Mesmo que o lustre seja um cemitério de asas, um vaso de mariposas mortas.
Por preguiça, para não buscar a escada e interromper a rotina, para não se incomodar em apagar a energia, porque parte do princípio de que nenhum louco ficará conferindo esses detalhes no teto.
Somos iguais com os assuntos amorosos.
Quando a relação está acesa, não nos mexemos, ainda que esteja falhando. Não limpamos, não realizamos a manutenção, não nos preocupamos em nos antecipar com gentilezas e prevenir danos, não questionamos se a nossa companhia está feliz daquele jeito, não eliminamos os aborrecimentos pontualmente.
Esperamos a luz estalar até apagar de vez, para assim remover a sujeira. Esperamos o filamento de tungstênio romper seu ciclo, de tanto ligar e apagar o interruptor, para cuidar dos restos.
Agimos pelas necessidades imediatas, por urgências profissionais e familiares.
A casa é feita para funcionar, a relação é feita para funcionar, não mais para gerar beleza e poesia.
Somente nos importamos se os canais a cabo estão em dia, se o wi-fi navega, se a geladeira continua gelando. Bastam sexo e fidelidade no casamento e seguimos adiante. Nada pode adiar o nosso calendário. As distrações atrapalham. Desprezamos os soluços do lar. Ignoramos os suspiros dos objetos.
Não gastamos mais tempo com bobagens do lar. Não desperdiçamos tempo com conversas despropositadas de noite, brincadeiras e lembranças à toa, tudo o que tem que ser dito deve ser importante, girando sobre emprego ou agenda. Não queimamos nossa atenção com besteiras como retirar os bichinhos desenganados do lustre. É um capricho, pode esperar, não há pressa, não existe motivo para se preocupar.
Somos apenas o que pode ser visto. O que brilha. O que traz reconhecimento. O que pode ser elogiado. Dedicamos à nossa vida aos grandes feitos, limpar o lustre constantemente não trará recompensa, será chamado de maníaco por limpeza, debochado por não ter mais o que fazer.
Quem ama e cuida do seu amor é o que olha e lava o lustre antes de a lâmpada queimar, antes de a relação chegar ao fim, mas para renovar a transparência da vida dentro de residência.
Malvados - André Dahmer
Karina Buhr e O Terno - Não Me Ame Tanto
Mariana Aydar - Eu Te Amo Você
Os gatos nos ensinam que o amor de verdade sempre volta para casa - Marcel Camargo
Há pouco mais de um ano, apareceu uma gatinha em meu quintal. Eu nunca tivera gatos, somente cães a minha vida toda. Deixei-a na minha garagem, enquanto procurava por um possível interessado em ficar com ela, mas ele nunca apareceu. E ela foi ficando, ficando e ficou.
Estranhei, desde o início, o jeito de um gato, sua autossuficiência, seu olhar de altivez, sua calma, enquanto tudo à volta pode estar fervendo. E um dos comportamentos que até hoje me faz sofrer é a liberdade de ir e vir que o gato possui. Ela sai e volta quando quiser, bem como fica na rua o tempo que for, o qual nunca é uniforme.
Dias atrás, ela saiu de manhãzinha e não voltou o dia todo. Cheguei do trabalho e ela não aparecera desde a manhã daquele dia, o que me deixou nervoso – ela nunca ficara mais de duas horas na rua. Coloquei sua foto no Facebook, numa página de proteção aos animais aqui de minha cidade, totalmente desolado. Saí a pé, de carro, pelas redondezas, à sua procura, e nada. Somente lá pelas nove da noite, ela apareceu, como se nada tivesse acontecido, e foi comer sua ração calmamente.
Minha gata está me ensinando muita coisa, principalmente em se tratando de relacionamentos e amor. Ela me ama e deixa claro isso quando dorme sob minha barriga, quando se esfrega em forma de um oito entre minhas pernas enquanto escovo os dentes, quando lambe minha mão com sua língua crespa. Ela me ama e sempre volta: ela quer que eu entenda que ela vai voltar para mim. Todo dia. Ela vai voltar.
Aprendo, a cada dia, que amor é o que faz a gente retornar, por mais que a gente se ausente, por mais que o tempo passe, por mais que demore essa volta. O amor é livre, o amor passeia por aí e nem por isso deixa de ser fiel. O amor requer qualidade e não quantidade. Amor é laço que não aperta. É confiança no outro, enquanto ele está longe de nossos olhos.
Agora mesmo, ela está passeando pelas ruas, há horas, enquanto fico com o coração apertadinho a esperando. Ainda não adquiri a confiança que ela requer, porque meu amor ainda é egoísta e humano. Talvez eu nunca chegue a desenvolver esse desprendimento em relação a quem amo. Mesmo assim, minha gata não desiste de me provar que amor é confiança, é tranquilidade, é confiar no quanto o outro nos ama, mesmo não deixando de ser quem é.
O amor não desiste, por isso ela sempre sai, apesar de me deixar intranquilo, porque ela quer me provar que não desistirá nunca de mim. Nunca.
Rafael Corrêa
Arrigo Barnabé & Vânia Bastos - O Gato
Amor - Luis Fernando Verissimo
Os três melhores negócios no Brasil, hoje, a julgar pela quantidade, são: farmácias, academias de ginástica e lojas para animais domésticos. Deduções sociológicas à vontade.
Multiplicam-se as farmácias porque o país está doente ou porque há uma oferta cada vez maior de remédios vitais ou paliativos e perfumaria, promovidos agressivamente por uma indústria bilionária sem limites de verba publicitária?
Academias de ginástica por todo lado atestam o culto à forma física que cresce no mundo inteiro e são também pontos de encontro, em que as pessoas suam e confraternizam em doses iguais. Dizem que nas academias já existe até uma rotina de paquera chamada de “romance de esteira”, que raramente dura até depois do banho, mas pode ficar sério. De qualquer maneira, o brasileiro está malhando, o que é bom para a saúde nacional – sem falar na saúde financeira dos fornecedores de acessórios para ginástica.
E nas lojas para animais domésticos encontra-se de tudo para gatos, cachorros e outros bichos de estimação. Sua proliferação é mais difícil de explicar. A procura pelos seus produtos e serviços – casaquinhos para o frio, pratinhos personalizados, xampus, escova, manicure, veterinários de plantão, até atendimento psiquiátrico – já era grande, e nos últimos anos tem aumentado.
É fácil ridicularizar essa atenção exagerada a bichos, uma atenção que é negada às crianças abandonadas, por exemplo, uma crítica sempre repetida. Mas a relação das pessoas com seus animais e destes com seus donos ultrapassa o ridículo, é uma forma de amor mais profunda do que qualquer outra. Muito mais profunda do que a do amor entre humanos.
O animal domesticado garante ao seu dono amor desinteressado. Ou, vá lá, devoção total e eterna em troca de pouca coisa, só casa e comida. Entre dono e bicho existe um entendimento impossível ou muito raro no convívio humano. De um lado, um extremo de carinho que só existe igual no amor a um filho ou no amor sexual, sem nenhuma das complicações do amor a um filho e do amor sexual, do outro, lealdade absoluta. Ajuda o fato de o bicho não saber falar, salvo no caso de papagaios respondões. Amor sem discussão, o ideal.
Entende-se, portanto, que se queira dar aos animais tudo que é possível comprar numa das lojas especializadas que hoje já são, no Brasil, mais numerosas do que videoshops. É amor. Se sobrar algum para as crianças abandonadas, melhor.
O amor existe - Luis Fernando Verissimo
Chamava-se José e amava Rosa, mas Rosa não o amava. Rosa não só não amava José como fazia discursos contra o amor na cara do José, para desanimá-lo. (“Vê se te enxerga, Zé!”) O amor era uma coisa antiga, ultrapassada, obsoleta, piegas, ridícula. Quem amava hoje em dia? Rosa fez a pergunta retórica para toda a mesa. Depois para todo o bar. Alguém ali amava alguém? Ficaram todos em silêncio. Amar, amavam. Tinham namoradas e namorados. Adoravam suas mães e seus cachorros. Alguns eram casados. Alguns sonhavam com a Patricia Pillar todas as noites. Mas todos compreenderam que o alvo da revolta da Rosa era o José. Sentado ao lado da Rosa, José só sacudia a cabeça, sorrindo tristemente, lamentando a incompreensão do mundo.
*
Um dia, aproveitaram que a Rosa ainda não aparecera no bar e fizeram uma proposta ao José. Porque a verdade era que havia misericórdia no bar pelo pobre apaixonado. Havia uma solidariedade silenciosa que ninguém se arriscava a expressar na presença da Rosa, que era conhecida por quebrar cadeiras quando perdia uma discussão. Longe dela, ajudariam o José a conquistar a Rosa. A torná-lo mais palpável aos olhos da Rosa. O José aceitava ser ajudado?
– Aceito – disse José. – Se não der certo, vou apelar pro papa.
*
– Vamos começar pelo físico – disse alguém, que tomara a liderança da operação. – O que podemos fazer de novidade?
– Uma plástica?
– Nem pensar
– Outro penteado?
– Não faria diferença...
– Você e a Rosa não têm algum gosto em comum? Algum assunto que dê conversa?
– Bom... Eu sei que ela toma muito chope...
– Isso nós todos nesta mesa tomamos, meu caro.
– E se eu deixasse crescer um bigode?
– Meu amigo, duvido muito que um bigode conquiste a Rosa. Ela é capaz de tirar o seu bigode a tapa!
– Eu sei! – gritou alguém de outra mesa. – Ciúme! Nunca falha.
*
Combinaram o seguinte. O José passaria a frequentar a mesa com uma mulher que apresentaria como “Sulamita, minha noiva”. Enlouquecida pelo ciúme, Rosa tentaria o suicídio.
Garfield - Jim Davis
Will Tirando
Samba de verdade - Eduardo Gudin e Léla Simões
Bebel Gilberto - Samba e amor
O amor mais que romântico – Martha Medeiros
Quando era criança, assistia a filmes e novelas românticas e
pensava: será que um dia escutarei “eu te amo” de alguém? É bem verdade que
ouvia todo dia da minha mãe, mas não era do mesmo jeito que o Francisco Cuoco
dizia para a Regina Duarte. Eu sonhava com o “te amo” apaixonado, dito por um
homem lindo, e com a voz um pouco trêmula, para deixar sua emoção bem evidente.
Será que era invenção do cinema e da tevê, ou essas coisas poderiam acontecer
mesmo?
Passou o tempo. Cresci, ouvi e retribuí. Clichê? Que seja,
mas não há quem não se emocione ao escutar e ao dizer, ao menos nas primeiras
vezes, em pleno encantamento da relação, quando a declaração ainda é fresca,
pungente, verdadeira, a confirmação de algo estupendo que se está
experimentando, um sentimento por fim alcançado e que se almeja eterno. Depois
ele entra no circuito automático, vira aquele “te amo” dito nos finais dos
telefonemas, como se fosse um “câmbio, desligo”.
O tempo seguiu passando, e me encontro aqui, agora,
descobrindo que há outro tipo de “te amo” a ser escutado e falado, diferente
dos que acontecem entre pais e filhos e entre amantes. É quando o “te amo” não
é dito a fim de firmar um compromisso, para manter alguém a par das nossas
intenções ou experimentar uma cena de novela. Ele vem desvinculado de qualquer
mensagem nas entrelinhas, não possui nenhum caráter de amarração e tampouco
expectativa de ouvir de volta um “eu também”. É singular. Estou falando do amor
declarado não só quando amamos com romantismo, mas também de outra forma.
Explico: tenho dito “te amo” para amigas e amigos e escutado
deles também. Uma declaração bissexual e polígama, que resgata esse sentimento
das garras da adequação. Volta a ser o amor primitivo, verdadeiro, sem nenhuma
simbologia, puro afeto real. Amor por pessoas que não conheci ontem num bar, e
sim por quem já tenho uma história de vida compartilhada.
Amor manifestado espontaneamente àqueles que não me exigem
explicações, que apoiam minhas maluquices, que fazem piada dos meus defeitos,
que já tiveram acesso ao meu raio X emocional e sabem exatamente o que levo
dentro – e eu, da mesma forma, tudo igual em relação a eles. Mais do que nos
amamos – nos sabemos.
É um “te amo” que cabe ser dito inclusive aos ex-amores, ao
menos aos que nos marcaram profundamente, aos que nos auxiliaram na composição
do que nos tornamos, e que mesmo nos tendo feito sofrer, foram fundamentais na
caminhada rumo ao que somos hoje. E indo perigosamente mais longe: esse ex-amor
pode ainda ser seu marido ou sua mulher, mesmo já não fazendo seu coração
saltar da boca. Pelo trajeto percorrido, e por ter alcançado o posto de um
amigo mais que especial, merece uma declaração igualmente comovida.
É quando o “eu te amo” deixa de ser sedução para virar
celebração.
A VIDA COMO ELA YEAH ADÃO ITURRUSGARAI
Eu não sei falar de amor - Zé Rodrix
Mauricio Pereira - A Mais
As Razões que O Amor Desconhece – Martha Medeiros
Você é inteligente. Lê livros, revistas, jornais. Gosta dos filmes do Ettore Scola, dos irmãos Coen e do Robert Altman, mas sabe que uma boa comédia romântica também tem o seu valor. É bonita. Seu cabelo nasceu para ser sacudido num comercial de xampu e seu corpo tem todas as curvas no lugar. Independente, emprego fixo, bom saldo no banco. Gosta de viajar, de música, tem loucura por computador e seu fettuccine al pesto é imbatível. Você tem bom humor, não pega no pé de ninguém e adora sexo. Com um currículo desses, criatura, por que diabo está sem namorado?
Ah, o amor, essa raposa. Quem dera o amor não fosse um sentimento, mas uma equação matemática: eu linda + você inteligente = dois apaixonados.
Não funciona assim. Ninguém ama outra pessoa pelas qualidades que ela tem, caso contrário os honestos, simpáticos e não-fumantes teriam uma fila de pretendentes batendo à porta. O amor não é chegado a fazer contas, não obedece à razão. O verdadeiro amor acontece por empatia, por magnetismo, por conjunção estelar. Costuma ser despertado mais pelas flechas do Cupido do que por uma ficha limpa.
Você ama aquele cafajeste. Ele diz que vai ligar e não liga, ele veste o primeiro trapo que encontra no armário, ele só escuta Egberto Gismonti e Sivuca. Não emplaca uma semana nos empregos, está sempre duro e é meio galinha. Ele não tem a menor vocação para príncipe encantado, e ainda assim você não consegue despachá-lo. Quando a mão dele toca na sua nuca, você derrete feito manteiga. Ele toca gaita de boca, adora animais e escreve poemas. Por que você ama esse cara? Não pergunte pra mim.
Você ama aquela petulante. Você escreveu dúzias de cartas que ela não respondeu, você deu flores que ela deixou a seco, você levou-a para conhecer sua mãe e ela foi de blusa transparente. Você gosta de rock e ela de chorinho, você gosta de praia e ela tem alergia a sol, você abomina o Natal e ela detesta o Ano-Novo, nem no ódio vocês combinam. Então? Então que ela tem um jeito de sorrir que o deixa imobilizado, o beijo dela é mais viciante que LSD, você adora brigar com ela e ela adora implicar com você. Isso tem nome.
Ninguém ama outra pessoa porque ela é educada, veste-se bem e é fã do Caetano. Isso são só referências. Ama-se pelo cheiro, pelo mistério, pela paz que o outro lhe dá, ou pelo tormento que provoca. Ama-se pelo tom de voz, pela maneira que os olhos piscam, pela fragilidade que se revela quando menos se espera. Amar não requer conhecimento prévio nem consulta ao SPC. Ama-se justamente pelo que o amor tem de indefinível. Honestos existem aos milhares, generosos têm às pencas, bons motoristas e bons pais de família, tá assim, ó. Mas ninguém consegue ser do jeito que o amor da sua vida é.
Malvados - André Dahmer
Tiê - Medo de Amar nº3
Tulipa Ruiz - Só sei dançar com você
Cuide do seu jardim de amor e ilusão com as próprias mãos -
Clara Baccarin
Quem nunca sofreu por se encantar com alguém, por alimentar
expectativas, cultivar sonhos, alimentar uma estória que coloca mais sentido
nos dias e então perceber que esse olhar de encantamento é unilateral?
Acho que todos já sofremos, pelo menos uma vez na vida, por
uma paixão não recíproca. Deixamos nosso sentimento voar longe, se perder de
vista, e de repente, lá das alturas, abrimos um pouco os olhos e nos damos
conta que estamos sozinhos: voando com as próprias pernas, dando asas a nossa
própria imaginação.
A gente pode não perceber, mas se o amor nasceu é porque
havia vontade, ímpeto, terra fértil nos terrenos do coração. Era tão fértil a
vontade de amar que as sementes todas brotaram mal caíram em terra, mal
passaram pelos pensamentos. Era primavera dentro de nós e ela crescia
independente, sem perguntar se o objeto de nosso encantamento estava também na
mesma estação, se também iria entrar na dança.
Para a primavera, um olhar de soslaio é como chuva farta, uma
meia conversa é sol acolhedor, cheio de luz boa, um gesto de amizade é o
pipocar de flores coloridas nas árvores verdes.
Mas acontece, por vezes, da gente perceber que o ser-objeto
de nosso encantamento não vai mergulhar no nosso jardim. Que ele está lá com
seu olhar de inverno, com seus passos e sonhos em outras direções, com o
coração já cheio ou num momento infértil e com os pensamentos morando longe.
E a gente não entende, como pode?! Como pode ele/ela não
participar dessa festa de cores, aromas e sabores, se foi justo de seu sorriso
que germinou uma semente? Se dele nasceu-me um mundo?
E a gente fica triste porque a gente quer compartilhar nossa
florada, nossos arranjos, nossos buquês.
A gente se frustra e fica bravo e culpa o outro e se sente
desperdiçado e desperdiçando belezas e a gente começa a pensar que o ser amado
é um bruxo, irresponsável, mal, insensível, mentiroso, inconsequente, cego,
etc, etc…
Aí a nossa razão nos diz para sermos menos ridículos e
matarmos logo esse jardim proibido, tascarmos fogo nos doces pensamentos,
abortarmos as sementes de esperança e ignorarmos os desejos maduros.
Afinal, amar sem cumprir expectativas é suicídio, não é
mesmo?
Não, não acho!
Acho que se estou assim amando, solitária, voando em meus
próprios sonhos, eu posso também escolher me responsabilizar por eles, eu posso
escolher manter a minha primavera, regar as minhas próprias flores, deixar que
me povoem e que cresçam selvagens e fortes até onde quiserem e puderem.
Eu posso perceber que o amor é todo meu e agradecer ao mundo.
Eu posso sentir a serenidade bela do meu próprio jardim de ilusões. Afinal, ele
é todo meu, nasceu e cresceu aqui.
Que ele fique enquanto houver sol e que acabe quando sentir
que mudaram as estações.
Recruta Zero - Mort Walker
Gabriel Moon - Fábio Bá
Todos os Amores São Iguais - Maglore
Superguidis - O Banana
Mais uma que
fala de amor - Gabriela Dalbosco
Aratiba/ RS -
Publicado por cronicanto2012 em 17/05/2013
Todos os dias
eu passava pela mesma rua, e sempre encontrava um casal. Sobre eles, não tinha
informações concretas, só as conclusões que tirava por mim mesma. Mas aquele
casal me encantava!
Eram
fisicamente incompatíveis; o homem com um ar sempre misterioso, uma das poucas
pessoas que preservava o hábito de usar chapéu, parecia sempre calado, um bom
ouvinte, alto, um pouco acima do peso, olhos azuis, cabelos ralos e brancos. A
mulher por sua vez, era baixinha, magra, cabelos compridos combinando com a cor
do cabelo do marido, usava óculos, tinha rugas profundas – imagino que por
viver sempre sorridente – olhos castanhos, tagarela. Sempre que passava, lá
estavam eles, sentados no mesmo banco de um parque na frente de sua casa,
esbanjando cumplicidade e alegria. Exceto nos dias de chuva.
Em certa
segunda-feira, algo mudou. O dia estava triste, o céu nublado, tudo parecia
pintado em tons de cinza. Observei o banco em que sentavam: tão limpo, tão
cinza, tão triste… Mas o tempo estava para chuva, não é?! A razão era essa.
Pelo resto da semana, os dias permaneceram chuvosos.
Mas quando o
sol apareceu de novo, trouxe consigo uma notícia inesperada. Creio que pela
primeira vez, o casal se separou, honrando a promessa de que ficarem juntos até
que a morte os separasse.
Daí em
diante, o tal senhor não se viu mais fora de casa. O banco do parque, sempre
vazio. Uma vez ou outra o via espiando da janela, com um olhar nostálgico,
talvez porque havia perdido uma parte de si próprio.
Como já
disse, não sabia muito a respeito deles, mas foi o amor mais bonito que vi.
Foi? Perdoem-me. É o amor mais bonito que já vi; porque acredito que algo
aparentemente tão puro, não termina assim. O senhor, longe da mulher, agora
apenas existe. Se esse tal de “amor eterno” existe, eu não sei, mas esse com
certeza chega bem perto disso.
Naldo Junio - Desenhos de um garoto solitário
Cida Moreira - O Amor
Céu & Herbie Hancock - Tempo De Amor
O maior espetáculo da Terra - Ruth Manus
Quando entrei pela porta principal da biblioteca naquela quinta-feira de tempo esquisito, logo vi: a moça da limpeza passou pelo segurança e sorriu. Ele sorriu de volta e não parou de sorrir depois de ela já ter atravessado a porta. O homem permaneceu sorrindo, seguramente, por mais uns 15 segundos.
Naquele momento, aquele fato não me pareceu tão importante. Fui, como de costume, para a sala principal da biblioteca, a mais clara de todas – e que tem banheiro perto, o que é, sem dúvida, um grande diferencial. Me instalei numa cadeira de costas para a janela e comecei a organizar meus livros.
Cerca de uma hora depois desse primeiro incidente, a moça da limpeza apareceu na sala onde eu estava estudando os efeitos da globalização na economia do trabalho. Ela ia limpar aquela bonita porta de vidro do canto esquerdo, que tem uma moldura de madeira pintada de dourado, acima da qual uma placa diz claramente “acesso restrito” para eventuais curiosos. Limpou os vidros por fora, mas precisava limpá-los também por dentro. Tentou uma, duas, três vezes, mas não conseguia abrir a porta. Dia de sorte.
A moça saiu apressada, ajeitando seus cabelos no rabo de cavalo baixo e, segundos depois, voltou acompanhada do segurança sorridente. Ela caminhava na frente e ele atrás, em fila indiana. A ansiedade dos dois era evidente. Ele estava performático: o peito inflado, a barriga encolhida e os ombros armados, mesmo que, de costas, ela não pudesse vê-lo.
Ela era bem miúda, com ombros magricelos embaixo do avental verde-água, pele morena clara, cor de doce de leite, cabelos pretos e um rosto fino e manchado. Deveria ter uns quase 40 anos e parecia cansada. Não cansada naquele momento, mas cansada pela vida, ao longo dos anos. Via-se nos seus ombros magros que a vida não tinha facilitado as coisas para ela.
Ele era alto, gorducho e rosado. Tinha os cabelos claros raspados curtinhos e quando sorria, via-se a falta de um pré-molar do lado direito. Seu uniforme cor de café com leite envelhecia-o até os 47, embora ele possivelmente só tivesse 42. Tinha um ar bom e solitário. Via-se facilmente que ele não tinha ninguém, mas que não se tornou amargurado por conta disso. Coisa rara.
Os dois sorriam de forma escancarada quando não se olhavam. Quando se olhavam, desviavam o sorriso para o chão, para a porta, para o teto, para o livro de anatomia que uma moça lia na primeira mesa, numa vã tentativa de disfarce. Os curiosos podiam não ter permissão para entrar na área restrita, mas entravam sem dificuldades na história da moça da limpeza e do segurança.
Ele armou os braços como um gladiador e abriu a porta dourada sem dificuldade alguma. Estufou ainda mais o peito, orgulhoso do seu sucesso. Ela riu aquele riso que quase toda mulher ri quando quer pendurar-se num pescoço, como quem diz “ainda bem que você existe”.
Ele procurou um pretexto para ficar mais alguns segundos ao lado dela. Apontou para a janela e disse algo que ela certamente não ouviu. Depois, voltou os olhos para ela, sorriu devagar e foi embora. Ela agradeceu enquanto arrumava uma mecha de cabelo atrás da orelha.
Era absolutamente evidente que o amor estava na minha frente. Talvez nascendo, talvez crescendo, não sei muito bem. Mas estava. Não era paixão, faísca, flerte, ocasião. Era muito maior do que isso. E eu estava lá, na primeira fila para assistir a uma coisa tão grande. Como eu poderia me preocupar com a economia internacional? Coisa tão irrelevante perto do amor.
Pagamos ingressos de cinema para presenciar histórias fictícias de amor, mas temos cada vez menos disponibilidade para assistir a amores reais. Nossos olhos estão desatentos. Mas eles estão aí, todo dia, aguardando plateia sem que haja bilheteria. Gastamos nosso tempo de forma muito equivocada.
NÍQUEL NÁUSEA - FERNANDO GONSALES
Tom Jobim, Chico Buarque e Telma Costa - Eu Te Amo
Olhos Sentimentais - Eduardo Gudin e Paulo César Pinheiro
O Diagnóstico e a terapêutica - Eduardo Galeano
O amor é uma das doenças mais bravas e contagiosas. Qualquer um reconhece os doentes dessa doença. Fundas olheiras delatam que jamais dormimos, despertos noite após noite pelos abraços, ou pela ausência de abraços, e padecemos febres devastadoras e sentimos uma irresistível necessidade de dizer estupidezes.
O amor pode ser provocado deixando cair um punhadinho de pó de me ame, como por descuido, no café, na sopa ou na bebida. pode ser provocado mas não pode impedir. Não o impede nem a água benta, nem o pó de hóstia, tampouco o dente de alho, que neste caso não serve para nada. O amor é surdo frente ao Verbo divino. e ao esconderijo das bruxas. Não há decreto de governo que possa com ele, nem poção capaz de evitá-lo, embora as vivandeiras apregoem, nos mercados, infalíveis beberagens com garantia e tudo.
André Dahmer
Luciano Salles
História de amor - Daniel Furlan
E aí, tem namorada?
Eu tenho cinco anos de idade, é óbvio que eu não tenho namorada. Essa era a resposta que eu gostaria de dar sempre que me deparava com a fatídica pergunta da namorada na volta da escola. Mas eu só dizia que sim. A bem da verdade, na minha cabeça, se você gostava de alguém, essa era automaticamente a sua namorada.
Da mesma forma que, quando você tinha um vizinho da sua idade, ele era naturalmente seu melhor amigo. Hoje sei que o primeiro caso era na verdade um crush, mas esse termo não existia na época (bons tempos), e o segundo era só uma criança qualquer que hoje é alcoólatra e anda armado.
Mas a pressão era tanta por notícias sobre o andamento do namoro que decidi que era hora de eu e minha namorada, aquela que não sabia que era minha namorada, darmos o nosso primeiro beijo. O nome dela era Brunella, mas não lembro se era com dois L porque na época eu não sabia escrever legal. Mas vamos de dois para efeitos deste texto.
Ela estava arremessando pedaços de lápis de cera nas crianças mais novas na hora da saída e eu me aproximei. “Posso jogar lápis de cera neles também?” E sim, ela disse que sim! Achei romântico.
Partimos alegremente nessa atividade até que entendi que o momento tinha paixão o suficiente e inclinei-me para beijá-la nos lábios. Ela me beijou de volta. Parecia que eu tinha levantado voo. Eu realmente poderia acreditar estar voando se não estivesse encarcerado numa pré-escola. Mas de qualquer forma estava materializado o símbolo do nosso amor.
Entretanto, o símbolo do nosso amor durou cerca de um segundo até que ela fez uma cara de nojo e saiu correndo limpando a boca, me deixando ali com tocos de lápis de cera verde nas mãos.
Mais de uma década depois, encontrei Brunella numa calourada da universidade. Ela estava meio longe, mas não foi difícil reconhecê-la. Minha memória sempre foi muito boa, infelizmente. Ao lado de uma amiga, ela olhava para mim com um sorriso.
É difícil interpretar se o sorriso significa “gosto de você” ou “você é ridículo”. Talvez fosse uma combinação dos dois, já que não demorou muito e a amiga veio em minha direção perguntar se eu lembrava de Brunella. Brunella, linda como sempre. Eu sorri de volta, acenei para ela e disse a amiga que não lembrava não.
DAIQUIRI - CACO GALHARDO
PÉSSIMAS INFLUÊNCIAS - ESTELA MAY
Toni D Agostinho
Fellini - Amor Louco
Uma história de amor - David Coimbra
Pois pedi. E Sônia me liberou para contar a história com nomes e sobrenomes por inteiro, mas, pensando bem, melhor não. Há outros envolvidos que talvez não gostem de ser identificados, então vou revelar-lhes apenas os prenomes.
Deu-se na Liverpool do Rio Grande: o IAPI. Sônia teve a sorte de para lá se mudar quando estreava nos tempos hormonais da adolescência. Em poucos meses, conheceu um guapo vizinho chamado Alfredo, e por ele se apaixonou. Apaixonaram-se, na verdade, que Sônia era correspondida.
O namoro, com seus altos e baixos, mais altos do que baixos, estendeu-se por 10 anos.
Neste ponto, estamos em 1976. Geisel era o presidente da República, o Inter seria bicampeão brasileiro com o maior time da sua história e, na Irlanda, a banda U2 começava a ser montada. Não existia internet nem telefone celular. A maioria dos moradores do IAPI não contava nem com telefone fixo em casa, e nessa categoria se enquadravam Sônia, Alfredo e o degas aqui.
Foi exatamente neste ano, enquanto eu dava lançamentos precisos de 57,5 metros no campo do Alim Pedro, namorava a Alice, a morena mais bonita do bairro, e estudava no Amstad, que ficava entre o Postão e cemitério, foi exatamente neste ano que a irmã de Alfredo chamou Sônia e lhe disse algo terrível: Alfredo havia se repoltreado no pecado com uma vizinha sinuosa e a dita cuja estava grávida.
Sônia quedou-se mais destruída do que os pontas que enfrentavam Cabral, o lateral-direito do Canarinho. Amava Alfredo, mas não perdoaria a traição. Não o recebeu mais. Alfredo batia à porta de seu apartamento, e ela não atendia. Alfredo tentou duas vezes, três, 10, 20, tentou por meses de angústia, e Sônia, orgulhosa, não atendeu. Num tempo em que a comunicação se fazia pessoalmente, olho no olho, uma porta fechada era intransponível.
Sônia e Alfredo se separaram em definitivo. O tempo, que apaga ardores e alivia dores, fez o seu trabalho, e cada um tomou um rumo diferente na vida.
Só que, duas décadas depois, em 1996, quando Fernando Henrique era o presidente da República, o Grêmio conquistava o bicampeonato brasileiro e os Mamonas Assassinas morriam num acidente aéreo, naquele ano Sônia descobriu que a irmã de Alfredo havia inventado a história do caso dele com a vizinha.
Por que ela havia feito isso? Talvez porque não aprovasse o relacionamento, talvez porque não gostasse de Sônia, talvez por maldade. Seja. O fato é que deu certo.
Sônia agora, em 2016, 40 anos depois de tudo ocorrido, quando Temer substituirá Dilma na Presidência da República, Grêmio e Inter não são campeões brasileiros e a MPB acabou, agora Sônia me envia um e-mail relatando essa triste história e conclui confessando:
“Alfredo continua sendo, e sempre será, o amor da minha vida”.
Bonito. E triste. Aconteceu no IAPI, a Liverpool do Rio Grande.
BUENA ONDA CYNTHIA B.
Bruna Caram - Quem sabe isso quer dizer amor
Wanderléa - Poema para Léa
Café com Leite – Antonio Maria
É preciso amar, sabe? Ter-se uma mulher a quem se chegue, como o barco fatigado à sua enseada de retorno. O corpo lasso e confortável, de noite, pede um cais. A mulher a quem se chega, exausto e, com a força do cansaço, dá-se o espiritualíssimo amor do corpo.
Como deve ser triste a vida dos homens que têm mulheres de tarde, em apartamentos de chaves emprestadas, nos lençóis dos outros! Como é possível deixar que a pele da amada toque os lençóis dos outros! Quem assim procede (o tom é bíblico e verdadeiro) divide a mulher com quem empresta as chaves.
Para os chamados “grandes homens”, a mulher é sempre uma aventura. De tarde, sempre. Aquela mulher, que chega se desculpando; e se despe, desculpando-se; e se crispa, ao ser tocada, e cerra os olhos, com toda força, com todo desgosto, enquanto dura o compromisso. É melhor ser-se um “pequeno homem”.
Amor não tem nada a ver com essas coisas. Amor não é de tarde, a não ser em alguns dias santos. Só é legítimo quando, depois, se pega no sono. E há um complemento venturoso, do qual alguns se descuidam. O café com leite, de manhã. O lento café com leite dos amantes, com a satisfação do dever cumprido.
No mais, tudo é menor. O socialismo, a astrofísica, a especulação imobiliária, a ioga, todo ascetismo da ioga... tudo é menor. O homem só tem duas missões importantes: amar e escrever à máquina. Escrever com dois dedos e amar com a vida inteira.
Só preciso de
alguém que viva por mim, que queira estar junto de mim, me abraçando.
Não exijo que
esse alguém me ame como eu o amo, quero apenas que me ame, não me importando
com que intensidade.
Não tenho a
pretensão de que todas as pessoas que gosto, gostem de mim…
Nem que eu
faça a falta que elas me fazem, o importante pra mim é saber que eu, em algum
momento, fui insubstituível…
E que esse
momento será inesquecível...
Só quero que meu
sentimento seja valorizado.
Quero sempre
poder ter um sorriso estampando em meu rosto, mesmo quando a situação não for
muito alegre…
E que esse
meu sorriso consiga transmitir paz para os que estiverem ao meu redor.
Quero poder
fechar meus olhos e imaginar alguém… e poder ter a absoluta certeza de que esse
alguém também pensa em mim quando fecha os olhos, que faço falta quando não
estou por perto.
Queria ter a
certeza de que apesar de minhas renúncias e loucuras, alguém me valoriza pelo
que sou, não pelo que tenho…
Que me veja
como um ser humano completo, que abusa demais dos bons sentimentos que a vida
lhe proporciona, que dê valor ao que realmente importa, que é meu sentimento… e
não brinque com ele.
E que esse
alguém me peça para que eu nunca mude, para que eu nunca cresça, para que eu
seja sempre eu mesmo.
Não quero
brigar com o mundo, mas se um dia isso acontecer, quero ter forças suficientes
para mostrar a ele que o amor existe…
Que ele é superior
ao ódio e ao rancor, e que não existe vitória sem humildade e paz.
Quero poder
acreditar que mesmo se hoje eu fracassar, amanhã será outro dia, e se eu não
desistir dos meus sonhos e propósitos, talvez obterei êxito e serei plenamente
feliz.
Que eu nunca
deixe minha esperança ser abalada por palavras pessimistas…
Que a
esperança nunca me pareça um “não” que a gente teima em maquiá-lo de verde e
entendê-lo como “sim”.
Quero poder
ter a liberdade de dizer o que sinto a uma pessoa, de poder dizer a alguém o
quanto ele é especial e importante pra mim, sem ter de me preocupar com
terceiros…
Sem correr o
risco de ferir uma ou mais pessoas com esse sentimento.
Quero, um
dia, poder dizer às pessoas que nada foi em vão…
Que o amor
existe, que vale a pena se doar às amizades e às pessoas, que a vida é bela
sim, e que eu sempre dei o melhor de mim… e que valeu a pena.
Toninho Horta - Viver de Amor (1979)
Milton Nascimento/Toninho Horta - Viver de Amor
BENS - Luiz Celso & Jorge Murad (1986)
O Amor Nunca Morre de Morte Natural - Fabrício Carpinejar
Morre porque o matamos ou o deixamos morrer.
Morre envenenado pela angústia. Morre enforcado pelo abraço. Morre esfaqueado pelas costas. Morre eletrocutado pela sinceridade. Morre atropelado pela grosseria. Morre sufocado pela desavença.
Mortes patéticas, cruéis, sem obituário e missa de sétimo dia.
Mortes sem sangramento. Lavadas. Com os ossos e as lembranças deslocados.
O amor não morre de velhice, em paz com a cama e com a fortuna dos dedos.
Morre com um beijo dado sem ênfase. Um dia morno. Uma indiferença. Uma conversa surda. Morre porque queremos que morra. Decidimos que ele está morto. Facilitamos seu estremecimento.
O amor não poderia morrer, ele não tem fim. Nós que criamos a despedida por não suportar sua longevidade. Por invejar que ele seja maior do que a nossa vida.
O fim do amor não será suicídio. O amor é sempre homicídio. A boca estará estranhamente carregada.
Repassei os olhos pelos meus namoros e casamentos. Permiti que o amor morresse. Eu o vi indo para o mar de noite e não socorri. Eu vi que ele poderia escorregar dos andares da memória e não apressei o corrimão. Não avisei o amor no primeiro sinal de fraqueza. No primeiro acidente. Aceitei que desmoronasse, não levantei as ruínas sobre o passado. Fui orgulhoso e não me arrependi. Meu orgulho não salvou ninguém. O orgulho não salva, o orgulho coleciona mortos.
No mínimo, merecia ser incriminado por omissão.
Mas talvez eu tenha matado meus amores. Seja um serial killer. Perigoso, silencioso, como todos os amantes, com aparência inofensiva de balconista. Fiz da dor uma alegria quando não restava alegria.
Mato; não confesso e repito os rituais. Escondo o corpo dela em meu próprio corpo. Durmo suando frio e disfarço que foi um pesadelo. Desfaço as pistas e suspeitas assim que termino o relacionamento. Queimo o que fui. E recomeço, com a certeza de que não houve testemunhas.
Mato porque não tolero o contraponto. A divergência. Mato porque ela conheceu meu lado escuro e estou envergonhado. Mato e mudo de personalidade, ao invés de conviver com minhas personalidades inacabadas e falhas.
Mato porque aguardava o elogio e recebia de volta a verdade.
O amor é perigoso para quem não resolveu seus problemas. O amor delata, o amor incomoda, o amor ofende, fala as coisas mais extraordinárias sem recuar. O amor é a boca suja. O amor repetirá na cozinha o que foi contado em segredo no quarto. O amor vai abrir o assoalho, o porão proibido, fazer faxina em sua casa. Colocar fora o que precisava, reintegrar ao armário o que temia rever.
O amor é sempre assassinado. Para confiarmos a nossa vida para outra pessoa, devemos saber o que fizemos antes com ela. Márcio Vaccari
Renan César
Wander Wildner - Eu Tenho Uma Camiseta Escrita Eu Te Amo
Meu Amor se Mudou Pra Lua (Versão Ensaio) | Nenung & Projeto Dragão
Caio Camacho
Marcos Caiado
VIVER DÓI FABIANE LANGONA
AMELY - PRYSCILA VIEIRA
Aguente declarações de amor sem gracinhas - Fabrício Carpinejar
O sarcasmo destrói a sinceridade. Já fui vítima e já fui algoz.
O homem, principalmente, tem vergonha de se declarar e vive se escondendo em brincadeiras. Tem vergonha de se emocionar e vive mascarando com piadas os momentos próximos das lágrimas.
É perceber que vai chorar ou umedecer os olhos que ele retira uma ironia do fundo de si para escapar ileso da entrega. Em vez de retribuir uma delicadeza ou entrar no clima romântico, ele vem com uma grosseria para tentar descontrair.
Não faça mais isso, aprendi a não fazer. É tão difícil ser sincero, leva muito tempo para o outro encontrar força para dizer algo importante, não banalize o encontro com a sua desatenção.
É custoso formular o que talvez nunca tenha sido dito para ninguém, não estrague com o deboche.
Sua namorada pode ter atravessado décadas naqueles minutos para entender um sentimento e partilhar uma verdade.
Relembre seus amores platônicos e doloridos da infância: quantas vezes procurou se declarar para uma menina, as frases subiram até a boca e voltaram ao silêncio? Você deseja que sua companhia passe pelo mesmo sofrimento?
Ninguém é covarde sozinho. Somos covardes porque nos deixam sozinhos com as palavras, não somos ajudados a falar o que nos incomoda.
Apoie a coragem de sua namorada. Devemos economizar e preservar as confissões de amor. Devemos valorizar e inspirar as confissões de amor. Temos que diferenciar a hora da ironia da hora de falar sério.
Não desestimule a sinceridade com palhaçadas. Drama pede meia-luz, mãos dadas e olhos nos olhos (o gênero comédia romântica é uma mentira – é só romance, colocaram comédia no nome para forçar o namorado a ir ao cinema).
Não dê motivos para que ela desconfie de seu compromisso – é o que acontece quando reage superficialmente diante de conversas mais profundas.
Fique quieto, parado, ouvindo, sei que você se enxergará emparedado, encurralado, assustado com a queda repentina de testosterona no corpo, pronto para abrir a porta do riso e sair correndo, mas segure a respiração e suporte escutar que você é a pessoa mais importante de alguém, sem baixar a cabeça, sem buscar refúgio no celular, sem nenhuma gracinha.
Serão juras que salvarão o relacionamento quando estiver em crise.
Renné Magritte, Amor à distância, 1965
Eliete Negreiros - Febre de Amor
Maria Beraldo - Eu Te Amo
O amor acaba - Paulo Mendes Campos O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.
O amor acaba: Karina Buhr lê Paulo Mendes Campos
MICK STEVENS é cartunista da revista "The New Yorker".
Benett
Galvão Bertazzi
A máquina e o primeiro amor - Milton Hatoum
“Isso aí imprime?”
Você escreve e imprime ao mesmo tempo, respondi.
A fita era velha, do século passado; mesmo assim, datilografei cinco letras: as marcas cinzentas na folha branca formaram a palavra “tempo”. Eles riram, examinando o objeto como se fosse um totem. Mas não era nem foi um totem, e sim uma musa sempre presente, companheira cotidiana, inseparável. Com ela saí do Brasil numa noite da década de 1970; moramos juntos num quartinho em Madri, depois num apartamento modernista em Gracia, no coração de Barcelona.
Fracassamos juntos no primeiro manuscrito de uma pretensa ficção; quer dizer, eu fracassei, pois enquanto escrevia, ela me alertava: isto não é um romance, é uma reportagem adaptada... Fuja dos fatos, invente personagens com alma e corpo, ou só com alma e rosto.
Teimoso (a teimosia é um vício terrível), ignorei as advertências da musa, reiteradas por um amigo argentino, exilado na Espanha.
“E se você quiser cortar umas frases...? Tem que escrever tudo de novo?”
Sim, tudo de novo.
“Perda de tempo”, resmungou um menino, impaciente.
Mas naquela época ainda se perdia tempo, pensei. E o tempo perdido parecia fora do tempo, que é o tempo do sonho e do prazer.
Recordei as primeiras aulas de datilografia no porão de uma casa manauara, perto do Luso Sporting Clube. Eu era o único curumim numa sala de cunhantãs, mas isso não me envergonhava. E ali, entre o Luso e a Escola Normal, moravam duas irmãs, amigas de minha irmã. Uma, rechonchuda e baixinha, sorria com uma alegria solar; parecia desconhecer a angústia e a aspereza da vida. É provável que uma pessoa muito deprimida, ao lado dela, encontrasse algum sentido à vida. Mas eu não era esse deprimido, e sim um tímido fascinado pela irmã dessa Eufrosina do Amazonas.
Alta e esguia, essa irmã mais velha era séria, fechada feito um cofre. Não sabia, até hoje não sei o que guardava aquele cofre. Eu emergia do porão e passava em frente à casa das duas irmãs, com a esperança de ver o rosto misterioso na varanda. Quando dava sorte, o rosto olhava para mim e sorria, mas era um sorriso também guardado, talvez condescendente: os lábios se separavam e se alongavam um pouco, e eu via nessa morosa dança labial uma remota promessa de amor. O tempo me revelou que era apenas um aceno para o irmão de uma amiga.
Mal sabe ela quantos poemas escrevi para o seu sorriso, o rosto e o corpo inteiro. Poemas e cartas datilografados no porão mais úmido de Manaus, onde eu cruzava a fronteira da infância com a juventude: fronteira imaginária, mas a travessia era real, com seus perigos e prazeres.
Eram cartas e poemas ridículos. Anos depois, li os famosos versos de um poema de Pessoa: “Todas as cartas de amor são/ Ridículas./ Não seriam cartas de amor se não fossem/ Ridículas...”.
A barulheira dos (quase) jovens ao redor me tirou desse devaneio. Dedos fortes batiam no teclado e escreviam letras invisíveis. Mais um pouco, arrebentariam a musa de metal. Não sabem datilografar, esses moleques. E ainda não sabem nada do amor... Mas será que alguém sabe, de verdade?
O AMOR É UM IMPERATIVO CÓSMICO? - Reinaldo José Lopes
Autora de uma palestra que faz estrondoso sucesso na internet, agora transformada em livro, professora inglesa tenta conferir lógica a um sentimento que sempre esteve mais próximo da poesia do que da álgebra. É improvável que funcione, mas, em se tratando de coração, por que não tentar alguma explicação racional?
Do amor quase tudo já foi dito, escrito e cantado. Descrevê-lo, mais até do que encontrá-lo, é uma das mais frequentes buscas do ser humano. E, no entanto, nas palavras de Shakespeare, "é um amor pobre aquele que se pode medir" (desculpado o uso muito provável e esperado de uma citação shakespeariana numa reportagem sobre o mais doído dos sentimentos). Se a poesia não basta para descrever o amor sentido, por que não tentar uma âncora nas ciências exatas?
A matemática inglesa Hannah Fry, da Universidade College London, dá passos firmes nessa direção no livro The Mathematics of Love (A Matemática do Amor), fruto de uma famosa palestra com milhões de acessos on-line em um evento do TED, organização sem fins lucrativos que promove ideias inovadoras. Hannah compila equações capazes de explicar cada estágio do amor: como encontrar o par ideal; a fórmula para saber se rolou química; a probabilidade de a relação durar. Seus cálculos, dispostos em jogos de lógica, anseiam definir os padrões da busca pela sonhada paixão eterna.
O sucesso das apresentações de Hannah está colado a uma tendência que foi levada ao estrelato com a série de livros Freakonomics, de Steven Levitt e Stephen Dubner, craques em associar ciências supostamente áridas, como a economia, para desvendar aspectos do comportamento humano, desde a sexualidade e o respeito às leis até a propensão à violência. Hannah caminha na mesma estrada, aplicando razão ao que sempre foi descontrolado e mercurial. Para tratar de amor, Hannah passeia numa seara que começou a ascender nos anos 90, década em que a antropóloga americana Helen Fisher tirou a emoção do campo etéreo e a racionalizou ao associá-la a reações químicas do corpo, facilmente explicáveis. Para Helen, o amor virou um hormônio, a oxitocina, liberada quando uma mãe olha seu filho ou quando se estabelece a paixão de um casal.
Conceder certezas ao irracional fez com que cientistas se debruçassem sobre o tema. Biólogos buscaram a resposta nos corpos. Matemáticos, nos números. Foi um marco a série de estudos conduzidos pelo psicólogo americano Arthur Aron. Em um exercício lógico composto de 36 perguntas que deveriam ser feitas por um casal, de um para o outro, Aron garantiu ser plenamente possível fazer com que quaisquer estranhos se apaixonassem, desde que as respostas casassem.
O método se mostrou furado quando posto à prova em experiências, mas reforçou o nascimento do interesse científico. Em 2005, os matemáticos Peter Sozou e Robert Seymour buscaram na economia a resposta à mesma pergunta no cerne das pesquisas de Aron: como seduzir um amado? Com base na teoria dos jogos da economia, a dupla definiu que parceiros devem ser considerados oponentes. Sempre existiria o conquistador e o conquistado, e é preciso escolher de qual lado se estará. Disse a VEJA Hannah Fry: "A matemática é a linguagem que ordena a natureza.
As emoções humanas são naturais e, portanto, seguem padrões que podem ser numerados e organizados". Em seu livro, Hannah se apoia principalmente nas recentes e extraordinárias facilidades da era do big data para levar suas apostas à mesa. Hoje, a cada dois dias, produzimos e conseguimos medir mais dados digitais do que tudo que foi criado até 2003. Essa possibilidade inédita de aferição permitiu que Hannah compilasse números que brotam ao redor de nossas relações pessoais. Ela bebeu da fonte dos sites de namoro. Há mais de 2 500 serviços do tipo nos Estados Unidos, que registram as preferências amorosas de milhões de indivíduos e são atalho para a construção de fórmulas capazes de definir se uma pessoa é a adequada para a outra.
Com uma amostra de 5 000 mulheres do OkCupid, Hannah tentou desvendar se beleza é realmente fundamental na formação de pares. A descoberta: homens belos, assim como os considerados feios, afastam pretendentes. Já indivíduos de beleza tida como mediana, mas com diferenciais (como tatuagens), ganham interessadas. Os criadores do OkCupid, ressalve-se, são matemáticos, o que tornou possível o bom uso de algoritmos capazes de cruzar informações indicativas de quais usuários são apropriados para uma relação amorosa promissora.
As pessoas são separadas em uma lista, por porcentagem de compatibilidade, como num cardápio. Parece frio, mas vale destacar: um terço dos casamentos americanos começa nesses sites. Um dos segredos de Hannah Fry é não se levar muito a sério. Evidentemente, ela tenta atrair a atenção de quem deseja acertar no amor, mas se contenta apenas em divertir.
As fórmulas até ajudam a explicar a paixão óbvia de pessoas que compartilham gostos. No entanto, justificariam, matematicamente, a atração improvável - fictícia, mas ao mesmo tempo tão real - de Ben Braddock (Dustin Hoffman) por Elaine Robinson (Katharine Ross), filha de sua amante, a Ms. Robinson (Anne Bancroft) do clássico, de 1967,
A Primeira Noite de um Homem? Muito possivelmente não, porém pouco importa. Entre uma montanha e outra de números, fatores e produtos, o melhor é se comportar como sugere um poema minúsculo de Oswald de Andrade, feito de apenas duas palavras sem nada a separá-las: "Amor Humor".
Amar- Marília Pêra (Carlos Drummond de Andrade)
O amor bate na aorta - Drica Moraes (Carlos Drummond de Andrade)
Fernanda Torres- Necrológio dos desiludidos do amor (Carlos Drummond de Andrade)
Selvagens à Procura da Lei - O Amor Existe, Mas Não Querem Que Você Acredite
"O amor é um rock 2" - Selvagens à Procura de Lei
André Dahmer
Todas as Cartas de Amor são Ridículas – Álvaro de Campos
Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.
As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.
Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.
A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)
Álvaro de Campos, in "Poemas" ( Heterónimo de Fernando Pessoa )
Perhaps Love - John Denver & Placido Domingo
Perhaps Love - John Denver
Perhaps love is like a resting place, a shelter from the storm
It exists to give you comfort, it is there to keep you warm
And in those times of trouble when you are most alone
The memory of love will bring you home
Perhaps love is like a window, perhaps an open door
It invites you to come closer, it wants to show you more
And even if you lose yourself and don't know what to do
The memory of love will see you through
Love to some is like a cloud, to some as strong as steel
For some a way of living, for some a way to feel
And some say love is holding on and some say letting go
And some say love is everything, and some say they don't know
Perhaps love is like the ocean, full of conflict, full of pain
Like a fire when it's cold outside, thunder when it rains
If I should live forever, and all my dreams come true
My memories of love will be of you
Some say love is holding on and some say letting go
Some say love is everything and some say they don't know
Perhaps love is like the ocean, full of conflict, full of pain
Like a fire when it's cold outside, thunder when it rains
If I should live forever, and all my dreams come true
My memories of love will be of you
Talvez amor - canção: John Denver Interpretação em dueto de: John Denver & Plácido Domingo
(Placido Domingo)
Talvez o amor seja como um local de descanso
Um abrigo da tempestade
Ele existe para te dar conforto
Ele está lá para te manter aquecido
E naqueles tempos de dificuldade
Quando você está mais sozinho
A lembrança do amor vai te trazer para casa
(John Denver)
Talvez o amor seja como uma janela
Talvez uma porta aberta
Ele te convida para chegar mais perto
Ele quer te mostrar mais
E mesmo se você perder a si mesmo
E não sei o que fazer
A lembrança do amor vai te acompanhar
(Placido Domingo)
Oh, o amor para alguns é como uma nuvem
Para alguns tão forte como o aço
(John Denver)
Para alguns um modo de viver
Para alguns um modo de sentir
(Placido Domingo)
E alguns dizem que o amor está segurando
E alguns dizem que deixar ir
E alguns dizem que o amor é tudo
E alguns dizem que eles não sabem
(John começa acompanhado por Placido)
Talvez o amor seja como o oceano
Cheio de conflitos, cheio de dor
Como um fogo quando está frio lá fora
Trovão quando chove
Se eu viver para sempre
E todos os meus sonhos se tornam realidade
Minhas lembranças do amor serão sobre você
(Placido Domingo)
E alguns dizem que o amor está segurando
E alguns dizem que deixar ir
(John Denver)
E alguns dizem que o amor é tudo
Alguns dizem que eles não sabem