quarta-feira, 30 de agosto de 2017

A Legítima e A Outra - Luis Fernando Verissimo

   A Outra tanto fez que conseguiu entrar na UTI, onde encontrou a legítima agarrada à mão dele. Deitado de barriga para cima, com tubos e fios saindo para todos os lados e conectando-o à aparelhagem em volta, ele parecia um avião recém-pousado depois de uma longa viagem. Um Boeing com as turbinas apagadas, mantido vivo pelo pessoal da terra.
   - Querido! - gritou a Outra, procurando uma parte dele que também pudesse agarrar.
   A Legítima nem piscou.
   - O que você fez com ele? - exigiu a Outra.
   A Legítima nada.
   - Eu sabia que cedo ou tarde você o mataria. - acusou a Outra.
   A Legítima, uma pedra.
   - Só comigo ele tinha o carinho de que precisava. Você fez isso com ele! Você! Com sua frieza, com sua maldade, com sua...
   Então a Legítima falou:
   - Nós estávamos fazendo amor.
   A Outra recuou como se tivesse levado um choque.
   - Mentira!
   A enfermeira fez "sssh", mas a Outra falou ainda mais alto.
   - MENTIRA!
   - Ele morreu nos meus braços - disse a Legítima no mesmo tom triunfal.
   - Ele não está morto - corrigiu a enfremeira.
   - Morreu nos meus braços, está ouvindo?
   - Despeito! Despeito! Ele só fazia amor comigo.
   - Sabe quais foram as suas últimas palavras?
   A Outra tapou os ouvidos.
   - Eu não quero ouvir!
   - Suas últimas palavras foram "Agora cruza!".
   - Não!
   - Sim! Sim! Nós estávamos fazendo o Alicate!
   - NÃO!
   Um médico apareceu e ameaçou retirar as duas de perto do paciente. Elas não lhe deram atenção. A Outra soluçava.
   - Não, O Alicate não!
   - Sim! Tudo o que ele fazia com você, ele fazia em casa. Experimentava em você para fazer comigo.
   A Outra interrompeu os soluços para espiar por entre os dedos que tapavam seu rosto e perguntar, incrédula:
   - A Borboleta também?
   - A Borboleta, A Chinesa Assoviadora, o Baile dos Cossacos...
   - NÃO!
   - Sssshh!!
   - Tudo. Tudo! Você era um campo de provas. Eu era pra valer. Com você era treino. Comigo era pelos pontos!
   Então a Outra gritou uma palavra indecifrável e avançou num dos aparelhos que cercavam a cama, tentando arrancar os fios, até ser controlada pelo médico e a enfermeira e empurrada para fora do cubículo. Da porta a Outra ainda conseguiu gritar:
   - O Salgueiro Despencado ele não fazia com você!
   - Fazia! Fazia!
   Perfilada ao lado da cama, a Legítima respirou fundo. Depois, sentou-se. Ia pegar a mão dele, mas recuou. Em vez disso, cochichou no seu ouvido.
   - Joca?
   Insistiu:
   - Joca?
   Depois:
   - Como era o Salgueiro Despencado?
   Depois:
   - Seu safado. Como era o Salgueiro Despencado?

   E o Boeing quieto.


Amely - Priscila Vieira

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