quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Hitchcockiana – Luis Fernando Verissimo


Ele gritou: — “Janela indiscreta”! Ela: — O quê?
— O filme que você está vendo. Posso ver a sua televisão daqui.
Os fundos dos dois apartamentos davam para o mesmo poço. Mesmo andar. Da área de serviço de um se via tudo do outro.
Ele:
— Adoro o Hitchcock.
Ela:
— Eu também.
Já tinham se visto no elevador. Ela morava com uma amiga que nunca aparecia.
— Qual é o seu Hitchcock favorito?
— Estou vendo “Janela indiscreta” pela décima vez. Mas acho que meu favorito é “Um corpo que cai”. O seu?
— “Os pássaros.”
Ela fez uma cara feia.
Dias depois se encontraram na loja de vídeos.
— Olha o que eu achei — disse ele.
Era “Notorius”. Aquele em que a Ingrid Bergman e o Cary Grant se encontram na Cinelândia e concordam que o Rio é muito chato. Ela mostrou o filme que tinha alugado. “Os pássaros.” Ia rever para ver se desta vez gostava.
— Você não precisa gostar só porque eu gosto.
-— É por boa vizinhança — disse ela, rindo.
Naquela noite conversaram, área de serviço a área de serviço. Ele disse que o “Notorius” tinha envelhecido um pouco. E ela, o que achara de “Os pássaros”?
— Sei não... — disse ela.
— Vamos ter que vê-lo juntos.
Foi na noite seguinte. Apartamento dela. A amiga, diplomaticamente, no seu quarto. Os dois na sala. “Os pássaros”, argumentou ele, é o filme metafísico do Hitchcock. O único filme de terror na história do cinema sem monstros e sem vilões. O vilão é o mundo, é a natureza reagindo ao homem, uma ordem pré-humana se...
Antes de ele terminar a frase já estavam se beijando. Nem chegaram a colocar o DVD.
Passaram a se encontrar quase todas as noites. Só viam Hitchcock.
Às vezes discutiam, “‘Topázio’ é um Hitchcock menor!”. “O quê? O quê?!”
Passavam alguns dias sem se ver. Aí ele batia na porta dela com uma raridade (“Sabotagem”, por exemplo) e faziam as pazes. Até que um dia a amiga saiu do quarto e ele viu que se tratava de uma loira irresistivelmente hitchcockiana, e se apaixonou, apesar de a loira dizer que seu filme favorito era “Ghost”.

Ele tentou explicar sua traição (“Eu sou coerente! Eu sou coerente!”), mas não adiantou. Foi morto com uma tesourada, como em “Disque M para matar”.





Notorious, 1947 - Hitchcock 


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