Eu tenho um novo ídolo. Não sei o nome dele, a idade, onde
mora nem o que pensa sobre blocos de Carnaval, o VAR ou a descriminalização da
maconha. Só sei que aparece no YouTube sempre que eu teclo "costela no
escapamento da moto" --e eu tenho teclado "costela no escapamento da
moto" sempre, ultimamente. É meu cigarro, minha cachaça, meu cafezinho.
Ó o que o cara faz: embrulha uma costela de boi em bastante
alumínio. Com arames e um alicate, prende a costela ao escapamento de uma moto
e sai de Cananeia, litoral de São Paulo, em direção à Itapetininga, interior.
Segundo meu Google Maps, são 217 km, ou 3h37. Se eu fosse opinar, diria que uma
costela precisa de pelo menos 400 km para assar direito. Rio x São Paulo seria
o ideal, mas a costela do figura era pequena, vai quê?
Meu ídolo chega em Itapetininga e vai abrir o embrulho. Família e amigos o cercam, apreensivos, naquela tensão que eu chamaria de gastrossuspense. Quem nunca sofreu, ao abrir um alumínio com carne, peixe, porco ou legumes, as dores do gastrossuspense? Ao puxar a bandeja de um Airfrier? Ao destampar a panela de barro de uma moqueca? Ao abrir uma lata de leite condensado colocada na pressão?
O auge do meu gastrossuspense foi durante a quarentena, em
São Francisco Xavier. Eu e dois amigos pegamos uma panela gigante. Jogamos lá
dentro batata-doce, mandioquinha, abóbora japonesa, cebolas, alho, repolho,
pimentão, tomates, abobrinha, berinjela. Uma picanha, paio, linguiça
portuguesa, linguiças frescas de diferentes tipos, uma costela de porco.
Temperamos com todas as ervas que tínhamos a mão: muito cheiro verde, tomilho,
alecrim, manjericão, manjerona, cominho, pimenta-do-reino, sal e azeite.
O jardim da casa de São Francisco tinha um buraco no chão,
feito para fogueiras. Enchemos de lenha e deixamos queimar por umas duas horas,
até que o círculo parecesse a entrada principal do inferno. Pusemos o caldeirão
sobre as brasas, tampamos, fechamos o buraco com ripas de madeira, folhas de
bananeira e lacramos com um monte de lama, tirada com enxada da beira do rio.
(Sim, estou me exibindo como um Putin cavalgando sem camisa, mas a nossa
masculinidade não era tóxica, era orgânica e inofensivamente patética, pela
distância entre nossas panças branquelas respingadas de lama e, digamos, um
Rambo com os peitorais riscados por carvão).
Pois bem, esperamos quatro horas, saboreando cada gotinha de adrenalina e cortisol do gastrossuspense. Tiramos o panelão com auxílio de conchas, panos e alavancas. Abrimos e... Tava cru, infelizmente. Tivemos que finalizar no fogão. Mas isso é outra história. Eu queria era falar da costela no escapamento.
Lá em Itapetininga, o figura abre o alumínio. Num primeiro
momento, todos acham que a costela tá crua. Mas o cara corta um pedacinho e
prova. Sorri. Dá pra ver a tensão desaparecer do ombro de cada um ali. Eu, já
praticamente um membro da família, também me alegro, em casa –todas as vezes.
Conseguimos.
Imagino um super-herói. Ele erra pelo mundo em sua motoca,
roupa de couro e capacete, cheio de embrulhos laminados no escapamento. Quando
percebe uns amigos famintos, bebendo no bar, um coração partido num ponto de
ônibus, um casal lariquento na madrugada, surge: o cheiro precede o ronco do
motor. Sem jamais tirar o capacete, ele saca um alicate do bolso, corta os
arames e serve o banquete de carnes, tubérculos e legumes. Depois some no
horizonte, deixando só um rastro de fumaça e uns esvoaçantes pedacinhos de
papel alumínio a brilhar sob as luzes dos postes.
Ilustração: Adams Carvalho