quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Maria - Luis Fernando Verissimo

Olinda, entre outras belezas, tem um museu de esculturas sacras, quase todas de santos conhecidos ou desconhecidos. Todo o espaço de uma das salas é ocupado por homens santos de pedra, salvo por uma vitrine que protege a figura de uma menina adolescente. A menina se destaca do resto justamente por estar cercada de machos beatificados, muitos com quase o dobro do seu tamanho. Outras salas do museu têm um número equilibrado de santos e santas. Algumas das santas são populares, como as Sant’Anas. A menina não é popular. Não existe, acho eu, outra escultura ou pintura da menina nessa idade, no mundo. Ou será só em Olinda? Depois, a menina entrará em varias histórias. Sua milagrosa história pessoal, a história do Cristo, a história da arte. Por enquanto, ela é apenas uma adolescente a caminho de casa, sem ninguém para avisá-la do que virá. Ou que a História não é para adolescentes. 
Um curto texto no chão da redoma nos informa que a menina é Maria, mãe de Jesus. Maria antes de crescer, Maria sem nem imaginar o que a vida lhe prepara, quando crescer. Agora, por que um ateu irremediável como eu está emocionado na frente dessa pequena maria solitária, a caminhos de ser a Maria mãe e santa? A menina que me olha através do vidro da vitrine não sabe, mas ela já é a Maria que Michelangelo esculpirá na sua Pietà, um filho morto no colo da mãe, toda a dor do mundo tirada de um bloco de mármore, e não há nada que eu possa fazer, minha filha.
O Fernando Sabino contava que um amigo seu dizia:
– Eu não acredito em Deus, mas tenho uma certa queda pela Virgem Maria...
Eu também. Maria é devidamente cultuada por cristãos. Existe mesmo uma forte corrente marista na Igreja. Mas é inescapável a sensação de que ela não recebe toda a devoção que merece. A Bíblia, por exemplo, descreve toda ascendência, através de gerações, não da Maria – mas do José! Que, como se sabe, não teve nenhum papel na concepção ou no destino de Jesus. Protesto.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Aves que ali gorjeavam - Humberto Werneck

Influenciado com certeza pela memória do avô paterno, cirurgião famoso que não cheguei a conhecer, houve um dia, ali pelos 10 anos de idade, em que decidi enveredar pela medicina. Suponho que meus pais me deram força, pois durante um tempo, nas manhãs de sábado, um deles me levava até a casa do tio-avô Henrique, o grande professor Marques Lisboa, veterano da equipe de Oswaldo Cruz, para com ele tomar aulas de ciências. 
Muito aprendi ali, mas devo ter achado que não convinha ficar apenas na teoria, pois em algum momento resolvi iniciar sem mais delongas aquilo que sem dúvida haveria de ser a minha fulgurante carreira de cirurgião. Mais um pouco, talvez pensasse, e já não seria precoce, como costumam ser os verdadeiros vitoriosos nesta vida. 
Sem me dar conta do sadismo em que estava incorrendo, realizei então uma série de “cirurgias” em pardais, pacientes escolhidos por estarem mais à mão, bastando armar nos fundos da casa um dos alçapões de meu pai passarinheiro. O dr. Hugo nunca soube, mas tornou-se meu fornecedor também de anestésico, sob a forma de pequenas ampolas que eu surrupiava em seu consultório dentário. 
Influenciado com certeza pela memória do avô paterno, cirurgião famoso que não cheguei a conhecer, houve um dia, ali pelos 10 anos de idade, em que decidi enveredar pela medicina. Suponho que meus pais me deram força, pois durante um tempo, nas manhãs de sábado, um deles me levava até a casa do tio-avô Henrique, o grande professor Marques Lisboa, veterano da equipe de Oswaldo Cruz, para com ele tomar aulas de ciências. 
Muito aprendi ali, mas devo ter achado que não convinha ficar apenas na teoria, pois em algum momento resolvi iniciar sem mais delongas aquilo que sem dúvida haveria de ser a minha fulgurante carreira de cirurgião. Mais um pouco, talvez pensasse, e já não seria precoce, como costumam ser os verdadeiros vitoriosos nesta vida. 
Sem me dar conta do sadismo em que estava incorrendo, realizei então uma série de “cirurgias” em pardais, pacientes escolhidos por estarem mais à mão, bastando armar nos fundos da casa um dos alçapões de meu pai passarinheiro. O dr. Hugo nunca soube, mas tornou-se meu fornecedor também de anestésico, sob a forma de pequenas ampolas que eu surrupiava em seu consultório dentário. 
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Nos meus procedimentos cirúrgicos, num canto de quintal, eu contava com a assistência da prima, vizinha e sobretudo parceira Sílvia, minha indispensável companheira de infância e adolescência. A ela cabia, no caso, anotar os passos da operação, conforme eu lhe ditava: “1. Depena-se o paciente” - e ia por aí a coisa. Não tardava o registro, como simples “observação”, de que “o paciente morreu” - o que de forma alguma punha termo à cirurgia.
Não ficamos nisso. No mesmo afã científico, decidimos um dia misturar tudo quanto fosse medicamento líquido da farmácia doméstica, e forçamos uma galinha a ingerir aquela poção, administrada a esguichos de conta-gotas. Como a paciente, no instante seguinte, caísse de lado, estertorante e com o bico aberto, a emitir cacarejos inauditos, julgamos prudente apagar os traços do malfeito - e atiramos a coitada num terreno baldio, na esperança de que ali morresse sem levantar suspeitas contra nós. Mas qual!
Dois dias depois, a empregada da nossa avó, cuja casa confinava com aquele ermo, descobriu ali a infeliz, ainda viva e cacarejante, agora duplamente penosa. Ninguém, no universo dos adultos, teve dúvida de quem seriam os autores do involuntário, digamos, galinhicídio. No meu currículo, a malsinada paciente ficaria sendo um dos dois galináceos que abati nesta já longa vida. O outro teve o azar de ser alvo da única flechada certeira que disparei em toda uma esquecível carreira de arqueiro, pois nas demais a seta se obstinava em partir com a ponta para o alto ou para baixo - mas isto já contei. 
*
Mais sorte tiveram outras aves lá de casa, milagrosamente a salvo do cirurgião e sua diligente auxiliar. Era o caso das dezenas de passarinhos que meu pai capturava em vários cantos de Minas Gerais, de Goiás, do Espírito Santo, sei lá de onde mais, para criar em gaiolas ou num viveiro que ele mesmo, competente carpinteiro amador, construiu no fundo do quintal. Muitas outras aves faziam ali um transitório pouso, pois seu destino, desde o início, era diverso: integravam um solitário, paciente, quixotesco projeto de repovoamento de aves imaginado e executado pelo dr. Hugo.
Espalhador de Passarinhos, como o chamei numa crônica, ele fazia catas onde houvesse fartura de determinadas espécies, para em seguida libertá-las em lugares onde sua extinção já fosse um fato consumado, ou quase. Jamais comprou ou vendeu uma só ave - mas cansou-se de recusar dinheiro gordo por seu inigualável bicudo Juvenal, tido entre os ornitólogos da época como o melhor das Minas Gerais. Lembro-me de um milionário, amigo seu, que sacou teatralmente o talão de cheque e perguntou quanto ele queria por aquele fenômeno canoro. Meu pai, de bate-pronto, encerrou o assunto com outra pergunta: como é o canto do seu cheque? Algum tempo depois, sem qualquer alarde, simplesmente soltou o Juvenal numa quebrada de Cristalina, em Goiás.
O Juvenal, exatamente, foi protagonista lá em casa de uma história divertida. Sua gaiola ficava pendurada na quina de um portal, na copa, e era ali que desatava a cantoria, tornada insuportável, às vezes, pela acústica exacerbada do ambiente. Mas podia também emudecer - “afinar”, no jargão paterno -, se alguém passasse nas proximidades com um guarda-chuva, ainda que fechado. Na copa ficava também o único aparelho telefônico da casa, preto e de parede, como então se usava - e quando o bicudo estivesse “rachando o bico” (assim dizia meu velho), não havia como conversar. Para as quatro meninas, chegava a ser problemático iniciar um trote ou paquera telefônica, sob o risco permanente de o papo ser sabotado a qualquer momento pela goela solta do Juvenal, decididamente um caso radical de bicudo que não se beija. 
A mamãe, habitualmente serena, certa vez se exasperou por não conseguir levar adiante um telefonema; catou um guarda-chuva e o abriu, fragorosamente, duas, três vezes, em direção ao Juvenal, que “afinado” ficou por alguns dias.
A dona Wanda, como este seu filho, tinha pelos bichos um amor não mais que platônico - também ela poderia ter ouvido, como ele na infância, de um empregado da fazenda, que não tinha “vocação pra animal”. Deve ter sofrido com a fartura de gaiolas que o marido espalhou pela casa. Um dia ela telefonava quando um passarinho, na gaiola a poucos palmos de sua cabeça, resolveu tomar um banho na xícara de água, e em seguida sacudir jovialmente as penas, promovendo uma chuva sobre a dona da casa - a qual, sob gargalhadas da família, foi lentamente enfiando a cabeça entre os ombros, sem uma palavra. 
Tinha talento histriônico, a minha mãe, e a ele recorreu quando um dos filhos veio informar que a araponga, tão cara a nosso pai, tinha escapado do viveiro. Foi para o quintal – e, para pasmo e gáudio gerais, se pôs a arremedar a batida seca, metálica, altíssima de uma araponga. Só não esperava que a fugitiva atendesse ao seu caricato téim! téim! téim e, deixando o muro onde pousara, baixasse de volta ao quintal, disposta a se entregar. Era o que me faltava, disse a dona Wanda, ser confundida com uma sedutora de araponga...

O espião da Lituânia - Luis Fernando Verissimo

Todos no bar já estavam cansados de ouvir a história do Josef, mas, de vez em quando, aparecia alguém novo no bar, alguém que não conhecia nem Josef nem sua história, e aí era a turma do bar que pedia para Josef contar sua história. Até o ajudavam, temendo que ele se perdesse na narrativa, ou esquecesse algum detalhe importante da história.
– Josef, conte o que seus pais vieram fazer no Brasil.
Josef mudava de voz quando começava a contar sua história. A voz ficava mais solene. Mais grave.
– Meus pais, Ianis e Grupa, vieram ser espiões da Lituânia no Brasil.
– Espiões?!
– Espiões. 
– Mas... O que eles espionavam? 
– Tudo que acontecia aqui. Nossa política. Nossos costumes. O movimento nos portos. Movimentos suspeitos nas ruas, que aqui chamavam de carnaval. O que os jornais brasileiros diziam da guerra. Tudo que pudesse interessar ao comando militar lituano. Meus pais usavam um transmissor de rádio escondido no porão para mandar seus relatórios. Era perigoso. Um dia...
Josef parou de falar. Aquele “um dia” ficou suspenso no silêncio do bar, até Josef retomar a narrativa, agora com a voz ainda mais grave.
– Um dia bateram na porta. Ficamos assustados. Eu era uma criança. Grupa, minha mãe, procurava um lugar para me esconder. Bateram na porta com mais força. Papai gritou “Quem é?”. Uma voz feminina respondeu “Estamos vendendo rifas para o baile no clube”. Não era a polícia. Papai e mamãe nunca foram descobertos. Espionaram para a Lituânia até morrerem. 
– De que lado estava a Lituânia, na guerra?
– Eles nunca ficaram sabendo. Todas as semanas transmitiam seu relatório pelo rádio, e todos os meses, sem falha, entrava um dinheiro, mandado da Lituânia, na conta deles, no banco. Era o dinheiro que pagava nossas contas. Foi o dinheiro que pagou minha educação. É o dinheiro que me sustenta até hoje.
– O quê? Você recebe o dinheiro que vinha da Lituânia para os seus pais?
– Todos os meses, sem falha.
– E não se sente culpado por receber dinheiro sem trabalhar?
– Quem diz que eu não trabalho? Trabalho muito.
– Fazendo o quê?
– Espionando. Todas as semanas mando um relatório do que está acontecendo no Brasil. Quando meus pais morreram perguntei se era para continuar mandando os relatórios e eles disseram para continuar mandando. Que os relatório são publicados com grande sucesso desde os tempos da Segunda Guerra Mundial, apesar de ninguém acreditar que o que eles contam seja verdade. Uma frase que dizem muito é “e a gente pensava que a Lituânia era um país improvável...”.
– E você não inventa o que conta nos seus relatórios?
– E precisa? 

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Ovo hoje ou galinha amanhã? - Contardo Calligaris

Domingo, voltando a São Paulo, assim que o avião tocou o solo, minha vizinha de poltrona retirou da bolsa e reanimou o celular que ela nunca tinha desligado –contrariando a ordem expressa de apagar totalmente qualquer aparelho eletrônico.
Naquele exato momento, a aeromoça pediu que os celulares fossem ligados só quando o avião estivesse de porta aberta. Minha vizinha, já nos seus e-mails, procurou minha cumplicidade: "Não dá para esperar, hein?".
Se você tem simpatia pela minha vizinha e, a esta altura, pensa que o mundo merece ser de quem não quer esperar, é bom lembrar que o famoso teste do marshmallow diz o contrário.
Proponha esta alternativa a crianças de cinco anos: você pode comer um marshmallow (ou outra guloseima preferida) agora mesmo ou, então, esperar até eu voltar, e aí você terá direito a dois marshmallows. Acrescente que, se a criança não aguentar e chamar antes de você voltar, você aparecerá imediatamente, mas ela ficará com um doce só.
Essa experiência foi realizada numa creche da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, no começo dos anos 1960. Em tese, o teste explorava os meios pelos quais as crianças conseguiam resistir à tentação imediata (ou, ao contrário, as estratégias que as levavam a desistir rapidamente).
A pesquisa se tornou um clássico décadas depois, quando seu autor, Walter Mischel, reencontrou as crianças testadas originalmente para ver como elas tinham evoluído.
Ao longo dos anos, as crianças que tinham sido capazes de esperar e ganhar dois marshmallows se deram muito melhor do que as outras: nos estudos, no equivalente ao vestibular, na profissão que escolheram, na estabilidade das uniões afetivas etc.
Mischel, hoje professor de psicologia na Universidade Columbia, em Nova York, acaba de publicar "The Marshmallow Test" (ed. Little, Brown & Co.). No livro, ele expõe a história do teste (e de seus derivados, dos anos 1960 até hoje) e medita sobre os resultados e suas eventuais consequências pedagógicas.
Mischel, que é também um clínico e bom leitor de Freud, não tira conclusões apressadas da experiência que o tornou famoso. Mesmo assim, é frequente que os resultados do teste do marshmallow sejam interpretados como a demonstração do fato de que a exigência de satisfação imediata e a incapacidade de controlar os apetites prometeriam o fracasso social.
Moral aparente da história: os que não sabem esperar (e preferem um marshmallow já) acabam mais facilmente nas prisões do que nas pós-graduações. Na fábula de La Fontaine, quem se dá bem é a formiga, não a cigarra.
Cuidado, essa conclusão é duvidosa. Os resultados do teste do marshmallow não prometem um futuro tenebroso aos que procuram o prazer. Ao contrário, a criança que consegue esperar e que terá mais sucesso na vida é a que se controla em vista de um prazer maior (dois marshmallows), e não em nome dos méritos que ela adquiriria por se privar de um prazer.
O que é bom não é saber se privar, mas saber obter uma recompensa maior. Desse ponto de vista, o crente que se comporta de modo a ganhar o paraíso não é diferente dos libertinos de Sade que suspendem sua ejaculação na esperança de encontrar um receptáculo no qual seu gozo será maior.
Mas voltemos a outro "detalhe", crucial na hora de perguntar como fazer com que nossas crianças saibam merecer o segundo marshmallow.
No teste (e na vida), uma criança só consegue se controlar e esperar que o adulto volte com a condição de acreditar em sua palavra, ou seja, com a condição de confiar nele.
Se presumo que o adulto seja um mentiroso que não voltará, melhor comer meu marshmallow agora –pois quem garante que, no fim, alguém chegará com dois marshmallows?
Não sei se o teste do marshmallow foi repetido no Brasil. Se foi (ou se for), não seria surpreendente que as crianças brasileiras pareçam mais "imediatistas" do que as americanas ou as europeias.
Mas que ninguém conclua que os brasileiros seriam mais hedonistas –quem sabe, pela herança de uma colonização que preferiu saquear a apostar no futuro. Antes disso, melhor considerar que os brasileiros, desde a infância, têm boas razões para não confiar nos "adultos" (no caso, leia-se: em quem os governa).
E, obviamente, se os "adultos" são ladrões e mentirosos, melhor comer já o marshmallow que está na mesa.


Folha de São Paulo: 13/02/2015

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Por que gente com cabeça no lugar engrossa a cruzada contra as artes? – Bernardo de Carvalho


Ninguém acusa a ciência de elitismo. A não ser o populista que, no lugar da educação, e apoiado pelas elites econômicas mais oportunistas e inconsequentes, oferece a Terra plana ou o “design inteligente” como solução para a ignorância.

Então, por que gente com a cabeça aparentemente no lugar continua a engrossar a cruzada de demagogos contra as artes? Por que insistem em confundir exceção com “elitismo cultural”? Afinal, o que esperam da arte? Que confirme crenças, gostos, consensos e hegemonias? Que não seja uma forma de reflexão e conhecimento?

Se fosse assim, praticamente nada do que consideramos artisticamente excepcional existiria. Não haveria Herman Melville e o maior romance americano; não haveria Kafka nem Clarice Lispector. Também não haveria Godard, autor da máxima que, apesar de surrada, continua a deitar luz pelo caminho: “A cultura é a regra; a arte é a exceção”.



Ao contrário do que pretende o projeto ideológico bolsonarista (com o apoio de elites ignaras e suicidas), arte não tem nada a ver com ideologia. Tem a ver com a força e a vulnerabilidade da contradição como resistência à criação de consensos. Tem a ver com a produção de diferença, com a exceção como condição de possibilidade do pensamento e da reflexão, na contramão de crenças e sofismas.

Vem daí a urgência de fomentar e proteger, como um bem social de todos (e não de “elites culturais”), a arte que não se vende nem se paga, aquela que não agrada nem serve ao mercado. Isso não significa que ela seja necessariamente boa ou ruim, apenas que a arte que serve ao mercado não precisa da proteção do Estado. Como podem explicar os economistas liberais, ela se autorregula.

Ao contrário das aparências mais rasteiras, a Terra não é plana. É difícil para quem nunca tirou os pés do chão contrariar suas impressões diárias e imediatas. Mas será essa dificuldade justificativa suficiente para se contentar com o conforto do erro (e suas consequências)?

Num dos seus textos mais misteriosos (“O Ovo e a Galinha”), Clarice Lispector escreve sobre a impossibilidade de ver o ovo pela primeira vez. Só vê o ovo, e o entende, quem já o viu, e isso já não é entender, é reproduzir o erro, a inércia ou a “naturalidade” de uma função irrefletida. Como é que se vê o ovo pela primeira vez? É com essa dificuldade que lida a arte de verdade ou de exceção. Ela não quer ser representação de consensos nem ilustração do que queremos ver. Ela não é confirmação de nada.


Nem crença nem função, nem ideologia nem moral, essa arte encara a dúvida, a contradição e o desconforto de não entender, como condição fundamental do próprio conhecimento, da descoberta e da ampliação do entendimento do mundo.

Sem dúvida e sem contradição não há conhecimento. Mas dúvida e contradição não costumam produzir prazer —pelo menos não à primeira vista. Nada nelas é natural e confortável. E por isso precisam ser fomentadas e defendidas. Não porque correspondam ao que queremos crer, mas justo pelo contrário, porque nos confrontam com a diferença, com o outro, o que não tem nome, com o que nos causa repulsa, o que não podemos ver em nós.

Quando Bolsonaro diz que “cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós”, não está apenas exprimindo um racismo abjeto mas também, na sua miséria intelectual, o projeto suicida de erradicação da diversidade cultural.

Homogeneização e extinção —autoextermínio, para surpresa dos “agentes homogeneizadores”— costumam andar de mãos dadas. A natureza é inequívoca: a sobrevivência das espécies está ligada à diversidade. A monocultura empobrece o solo. Um corpo sem anticorpos não sobrevive fora de bolhas estéreis.


Poeta e cineasta excepcional, Pier Paolo Pasolini também foi um combativo adversário do fascismo, em especial daquele que se manifesta onde menos se espera, com outros nomes. Em sua última entrevista, horas antes de ser assassinado, Pasolini falava do perigo de um sistema cultural e educacional consumista, capaz de fazer todo mundo desejar as mesmas coisas, e assim matar o desejo.

O maior desafio da cultura é fomentar o outro, a exceção. E é esse o paradoxo de um projeto ideológico uniformizador como o do bolsonarismo, não só para a cultura mas para o país. Combater o outro (na educação, na ciência e nas artes) é estrangular-se. É criar um país fraco, vulnerável, monotemático, infértil, para corresponder à miséria do pensamento do seu líder. É esse, aliás, o projeto ao qual os fascismos estão condenados inadvertidamente. Mas é isso o que desejamos para nós?

domingo, 9 de fevereiro de 2020

Steiners - Luis Fernando Verissimo

O crítico e ensaísta George Steiner morreu, há dias, com 90 anos de idade. Não duvido que tenha morrido trabalhando. Sua produção era enorme, ninguém da sua geração intelectual foi tão prolixo e publicou tanto. Ele escreveu sobre a alta cultura ocidental e suas contradições, e foi quem melhor examinou, com perspicácia e horror, o grande paradoxo desta civilização ao mesmo tempo sublime e genocida. Para Steiner o grande embate era entre a linguagem como a suprema criação humana e o silêncio da tirania, o silêncio dos fornos de Auschwitz quando os gritos cessavam. 
Steiner, nascido na França, era judeu e, segundo alguns, a parcialidade religiosa às vezes interferia nas suas opiniões. Mas nunca o bastante para invalidar a crítica ao desumano que foi sempre o centro do seu pensamento, ou negar o alcance das suas posições muitas vezes surpreendentes, além da sua criatividade e da sua erudição. Steiner nem sempre era uma leitura fácil. Você precisava estar disposto a acompanhá-lo em seus saltos estonteantes de Sócrates a Beckett num mesmo parágrafo, por exemplo, ou resignar-se a apenas saborear a prosa. De qualquer maneira, não estaria perdendo seu tempo.
Numa entrevista há alguns anos, Steiner descreveu a leitura como um engajamento moral, como o compromisso com uma visão que nos impede de passar pela barbárie sem vê-la, ou num silêncio cúmplice. É a linguagem que nos impele não apenas para compreender o mundo, mas para fazer dessa compreensão uma forma de escolha moral, uma opção pelo racional e pelo humano mesmo que a escuridão nos puxe para o outro lado.
Digressão tipo nada a ver: lembra de A Doce Vida do Fellini? Marcello Mastroianni é um jornalista entregue às doçuras da vida em Roma. Suas amizades são todas das altas rodas e do mundo frívolo das celebridades, com uma exceção, um intelectual chamado Steiner que Marcello admira e com o qual tem um convívio inteligente. O Steiner do Fellini poderia ser o George Steiner da nossa admiração, alguém com quem conversar e que nos ilumine. No filme, a notícia do suicídio de Steiner, depois de matar os filhos, choca o Marcello e choca a plateia. Felizmente, o George Steiner nos deixou 90 anos de inteligência acumulada, para continuar nossa conversa contra a escuridão. 

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Um copo sem cólera - Humberto Werneck

Olhe em torno e repare: há coisas que, de tão incorporadas à nossa vida, a gente pode achar que sempre existiram, sem que tenham sido inventadas por alguém.
Era esse o assunto em nossa mesa de boteco (falar nisso: quem foi que inventou a mesa?), naquela altura da noite em que, já sem motivo consistente para estar ali, mas sem ânimo para os arremates, você vai remanescendo. E tome papo sobre inventação.
Alguém sacou, como exemplo de coisa que sempre teria existido, o escorredor de arroz - mas não, disse outro alguém, nosso especialista em miudezas, o escorredor foi bolado sim, e mais, por uma brasileira, a dona de casa Beatriz de Andrade, no início dos anos 1960. Além de alcançar o singelo objetivo inicial, o de lavar arroz, dona Beatriz conseguiu engordar sua conta bancária, pois uma indústria comprou a patente, o que lhe garantiu porcentual nas vendas. Mais lucrativo, só um dispositivo de lavar dinheiro.
Tanto quanto o escorredor de arroz, o item seguinte na conversa também contrariou a tese de que vários componentes de nosso cotidiano existem desde sempre. O mesmo especialista em insignificâncias nos esclareceu que a toalha de praia, sim, aquele retângulo de tecido sobre o qual, egressos das ondas, depositamos nossos úmidos bumbuns, teve, pelo menos no litoral carioca, seu inventor, um cavalheiro de nacionalidade britânica. A informação, ficamos sabendo, está devidamente estribada em bibliografia, o delicioso livro de Ricardo Boechat sobre o Copacabana Palace.
Interrompa aí a leitura dos poetas gregos para se inteirar do relevante fato de que, correndo o ano de 1902, passou pela então quase erma praia de Copacabana o barbeiro Wallace Green, o qual, vindo de escanhoar as bochechas de um freguês, resolveu dar um mergulho. Sentindo falta de algo em que se esticar na areia, recorreu Green à sua toalha de fígaro - iniciativa que não tardou a ser macaqueada por banhistas nativos, abrindo caminho para que na esteira viesse, além da canga, a esteira de praia propriamente dita.
*
A lembrança daquela profícua noitada cultural de bar me veio há pouco, ao ser informado do falecimento, em Poços de Caldas, do Sr. Moacyr de Carvalho Dias. Não o conhecia, e soube então que era tio de um querido amigo, o Teodoro.
Na internet e nos jornais, deu-se destaque ao fato de ter sido o Sr. Moacyr o criador de um dos itens mais arraigados no dia-a-dia dos brasileiros, o requeijão em copo.
Compreendi, de imediato, por que tanta gente viera dar-me notícia do passamento do industrial mineiro. Voltou-me, em detalhes, uma história que, faz uns 15 anos, me valeu doses iguais de satisfação e aborrecimento.
Tendo uma revista feminina me pedido uma crônica, tive, à falta de assunto menos prosaico, a ideia de escrever sobre o copo de requeijão, objeto que, àquela altura, me pareceu simbolizar os descuidos e malfeitos que podem pôr a pique uma relação amorosa.
Imaginei um dos membros do casal pedindo ao outro um copo d’água, e essa água vindo, não no melhor cristal, como no início do romance, mas num copo de requeijão. Algo de preocupante, observei, talvez irreversível, havia se passado para que a vulgaridade se insinuasse naquele par; e convinha estar atento ao fato de que, tal como no alcoolismo, nunca se fica no primeiro copo.
Sentencioso, fui em frente: ninguém compra o copo, compra o requeijão, mas, esgotado o conteúdo, o continente vai ficando, até por inércia - como, aliás, um pessoal no bar em fim de noite. E, ao contrário dos recipientes de cristal, raramente se quebra. No espólio de um casamento, ninguém briga por ele; e se a separação não dá certo, nem para um brinde serve, pois entre dois copos de requeijão não há tim-tim possível, só um chocho tec-tec.
Eu não sabia que, com a minha filosofice de guarda-louça, estava cutucando um vespeiro. Se várias leitoras concordaram com o judicioso cronista, a maioria despejou sobre ele, não copos, mas baldes de desaforos, de “elitista” para baixo. Só faltou quem me tocaiasse na rua com uma saraivada de recipientes de requeijão cremoso, acrescentando a eles mais uma utilidade.
Do alto do organograma de uma grande fábrica de artigos de vidro, um executivo farejou “ofensa” e enviou à redação uma diatribe que chegou às minhas mãos e ainda guardo. “Como o copo de requeijão não fala nem escreve”, reagiu o missivista, “e, portanto, não pode se defender, nós, que fabricamos milhões deles por ano, vamos fazê-lo.” E fê-lo, diria o Temer: “O autor foge do tema, que é a deterioração da vida a dois, e parte para a agressão ao copo de requeijão, pobre coitado que está, creiam, trabalhando direitinho e cumprindo bem o seu papel.” Quem duvidaria?
Tantos anos depois, talvez seja hora de baixar a bola e liberar o vítreo vilão de qualquer responsabilidade no naufrágio da mais vacilante das uniões conjugais. A melhor prova de que fui injusto seria o próprio Sr. Moacyr, visto que o criador do copo de requeijão, me conta o sobrinho Teodoro, viveu um casamento de quase 70 anos, não só feliz como frutificado em copiosa descendência.


Estado de São Paulo 7/2/2016

Fofo - Luis Fernando Verissimo

No dia em que completaram 35 anos de casados, Valdir perguntou a Eunice:
– Posso lhe pedir uma coisa?
– Claro, fofo. – Não me chama mais de fofo. – Ai, fofo! Por quê?
– Porque eu não quero mais. – Mas fofo... – É ridículo.
– É um apelido carinhoso. Por que você nunca reclamou antes?
Era verdade. Todos aqueles anos sendo chamado de fofo, desde o tempo de namorados, e Valdir nunca se queixara. E agora aquela rebelião.
– É o efeito cumulativo, entende? – disse Valdir, sem certeza se ”cumulativo” estava certo. – Não quero mais.
– Mas todo mundo chama você de fofo.
– Chamam porque você chama. É gozação. Devem rir muito de nós, nas nossas costas. Devem pensar que eu também chamo você de fofa, na intimidade. Para eles, somos “os fofos”.
– Você nunca me chamou de fofa.
– Porque nós não somos fofos, Eunice. Somos de uma raça cheia de defeitos, condenada ao desespero e à morte, sem nada que nos salve. Nosso caráter é inconfiável, nosso destino é trágico, somos tudo menos fofos.
– Valdir, eu nunca vi você amargo assim!
– Pois agora está vendo como eu não sou fofo. Ninguém é fofo.
– Mas você não acha que a gente deveria... deveria...
– Deveria o que, Eunice?
– Deveria viver como se fôssemos fofos? Pelo menos um para o outro?
– Você quer dizer viver uma mentira?
– Não, mas também não desistir. Se fingir de fofos para não acabar desse jeito, amargos como você, depois de trinta e cinco anos.
– A vida é um absurdo, e nada faz sentido.
– Viu só como você ficou, fofo? – Fofo, não.
– Como é que eu posso chamar você, então?
– Dico. – Dico?! – Era como a minha mãe me chamava...
– Dico. E olha aí, você ficou comovido! Que fofura.

Estado de São paulo - 7/2/2016

De SP pro RJ pra SP pro RJ pra... - Antonio Prata

Quando li a enésima notícia de taxistas espancando motoristas do Uber, em SP, chamei imediatamente um Uber e falei: “Toca pra Ipanema!”. Em Ipanema, o recepcionista do hotel disse que não conseguia encontrar minha reserva online, mas que se eu o ajudasse a ajudar-me ele poderia estar me ajudando a ajudá-lo, o que compreendi que significava lhe dar duzentão ali mesmo, de modo que entrei num táxi e falei: “Toca pro Santos Dumont!”.
O taxista fez Ipanema – Santos Dumont passando por Belford Roxo, Niterói, Quixeramobim, Lima e Bogotá. Chegando ao aeroporto, 11 meses depois, vendi pela internet meu carro, minha alma e um poncho de alpaca comprado no Peru, paguei a corrida de R$ 189 mil e embarquei para São Paulo.
Chovia em SP, Congonhas estava fechado, pousamos em Cumbica, seis e meia da tarde, aluguei um carro e depois de nove semanas e meia parado na Marginal Tietê entre um ônibus da Mancha Verde e uma SUV com adesivo do Russomano, tive um ataque de pânico, larguei o carro no acostamento, cruzei o Tietê escalando uma adutora da Sabesp e peguei uma carona pro Rio, do outro lado.
Sentei no Bar Lagoa, chamei o garçom, ele não veio. Chamei de novo. Ele não veio. Depois de sete horas chamando, ele veio: disse que eu não podia ficar ali sem consumir e me botou pra fora. A sede era tanta que fui andando até um bar na Oscar Freire, em São Paulo.
Os vallets ficaram desorientados ao ver um cliente chegando a pé, o segurança consultou o gerente para saber se era permitida a entrada de pedestres, mas como sou branco e tenho cabelo liso, acabaram me sentando. Sete garçons me atenderam. Vestiam camisa de seda, gravata, sapato italiano, mas não eram registrados, não recebiam horas-extras nem os 10%, que ficavam pro dono. Eu ia pagar a conta e fugir pro Rio numa bicicleta do Itaú, mas um chope mais couvert deu R$ 489 e para não acabar no Serasa precisei arrumar um emprego.
Consegui um trabalho na Berrini. Minha patroa anoréxica não via o filho há dois anos por causa de um job top que estava managing alinhada com uns coworkers numa joint-venture de um fund com uma kickstarter de apps para incubadoras, o estagiário de 19 anos já tinha rugas e cabelo branco, almoçavam shake de proteína e injetavam Redbull na jugular. Fiz uma asa-delta com clipes e post-its e saltei do alto do prédio.
Ia pousar em Copacabana, mas fiquei apavorado com 200 paparazzi fotografando a vice-miss bumbum 2011 de bruços na areia (“Bunda na nuca!”, seria a legenda do Extra), fiz meia volta pra SP, ia pousar na Paulista, mas fiquei apavorado com 200 PMs espancando praticantes de Tai chi chuan (“adeptos da técnica ninja black bloc”, seriam as aspas do capitão), peguei um vento leste, subi acima das nuvens e tô pensando se tento um pouso em BH ou se sigo o rumo do padre dos balões -- um homem que, à época, todos julgamos lunático, mas que agora me parece apenas um visionário à frente do seu tempo.
* Texto descaradamente chupado de N.Y.C. to L.A. to N.Y.C. to L.A., ad infinitum, de Cirocco Dunlap, publicado na revista New Yorker, 1/2/16. Pela sugestão do texto e do plágio, agradeço ao amigo cariolista (ou paulistoca?) Charly Braun.

Folha 7/2/2016

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Gaúcho gosta de homem - Martha Medeiros

Ainda nem comecei o texto e você, que é gaúcho, já está me odiando, mas me dê um parágrafo de vantagem para explicar. O assunto aqui não é sexo. Não tem nada a ver com homossexualidade. Eu sei que você gosta de mulher. Ou talvez goste de homem mesmo, no sentido sexual. Mas o assunto é outro. É sobre com quem preferimos partilhar ideias, experiências, piadas - não lençóis.

Conversando num bar com uma turma mista de amigos (todos nascidos no RS), chegamos à conclusão de que o gaúcho, em geral (com exceções, você é a prova), não gosta de mulher. Ele gosta de futebol, de churrasco, de posto de gasolina, de atividades em que possa estar com outros homens suando a camisa, palitando os dentes, discutindo política, à vontade com a própria rudeza. Ele gosta dos seus parceiros: do Carlão, do Gringo, do Marco, do Valdo. É entre eles que sua identidade é confirmada, é com eles que se sente mais livre e mais autêntico. Mas ele quer namorar e casar como todo mundo, e aí precisa de uma mulher, sendo hétero, e então namora, casa e tem filhos, sem nenhum esforço. E está resolvida essa questão da mulher na vida dele. Bora jogar uma pelada com a rapaziada.

Homem que gosta de mulher é homem que admira todas elas, mesmo apaixonado por uma em particular. Torna-se amigo delas sem segundas intenções. Gosta de conversar com elas, de ir a livrarias com elas, de ir a shows com elas, de viajar com elas, de se aconselhar com elas - sejam bonitas ou não. Ele valoriza o universo feminino, se sente enriquecido pelo modo como as mulheres enxergam o mundo. Talvez tenha tido a sorte de, na infância, ter convivido com muitas primas e tias, de ter recebido uma educação que não se baseou em conceitos ultrapassados, então cresceu sabendo que mulheres são companhias inteligentes, divertidas, perspicazes. Se, além disso, forem atraentes, é um bônus, não uma prioridade.

Durante a minha conversa com a turma, reconhecemos, claro, que as coisas estão mudando, que o desprezo pela mulher era mais evidente em outros tempos. Meninos evitavam brincar com as meninas na escola para não sofrer bullying dos colegas. Hoje as relações avançaram, mas aí o papo no bar já estava rendendo gargalhadas e logo começamos a estereotipar, fazendo um mapeamento geográfico da nossa teoria. O nordestino, por exemplo, gosta de mulher. O carioca adora. O gaúcho atura. No fundo, gosta mesmo é de um bom clube do Bolinha, mesmo que seja para falar de mulher o tempo inteiro.

Talvez seja esta a razão de, anos atrás, a turma do Casseta e Planeta ter propagado a história de que todo gaúcho é gay. Uma bobagem, óbvio, mas a provocação visava desestabilizar os guetos de virilidade que ainda resistem. O gaúcho bronco continua não vendo muito sentido em se aproximar das mulheres se não for para cantá-las. As trata bem porque a civilidade exige, mas gostar de mulher da mesma forma que ele gosta de homem, sem chance. Não é por deformação de caráter nem nada, simplesmente ele não vê que função, afora a sexual, uma mulher possa ter na vida dele.

A não ser sua mãe, mas mãe não é mulher.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

O pai e a mãe do porco-espinho - Humberto Werneck

Não garanto nada, mas acho que estou curado da mania que tive, quando menino, de sair usando palavras e expressões que acabara de ouvir ou ler pela primeira vez. Com o risco, já contei, de provocar pasmo ou gargalhadas entre os circunstantes - como no dia em que, tendo ouvido meu pai dizer “o diabo a quatro”, tratei de passar adiante, crente que estava abafando, o que a meus ouvidos chucros soara como “diabo aquático”. O demo, já pensou?, a dar braçadas no seu caldeirão fervente...
O desastre vocabular me fez cauteloso, levando-me a frequentar mais amiúde os dicionários que tínhamos em casa, o Caldas Aulete e o Laudelino Freire. Em nenhuma parte, porém, encontrei explicação para a ameaça inusitada que ouvi de meu pai, no dia em que chegou ao seu conhecimento a estripulia que um de nós havia perpetrado no colégio: “Eu te mando pro Acre!”, bramiu o velho, na verdade mal chegado aos 40 anos.
Só fui decifrar o enigma quando, já marmanjo, li sobre as centenas de moradores do Rio de Janeiro que, por seu envolvimento nas revoltas da Vacina e da Chibata, em 1904 e 1910, foram condenados ao degredo no mais remoto rincão do país, aquele que, em alusão aos campos de trabalhos forçados da União Soviética, alguém chamou de “a Sibéria do Brasil”.
Imagino que o papai tenha ouvido a expressão dos lábios do pai dele - do qual, além do prenome, Hugo, herdou asperezas de macho que a vida haveria de aplainar. Não era brincadeira o dr. Hugo Furquim Werneck, falecido 10 anos antes de minha chegada ao mundo, avô cujos verdadeiros traços fui conhecer não nos relatos hagiográficos de meu pai e tios, mas no retrato que dele pinta, em copiosas páginas de Beira-Mar, o ex-aluno Pedro Nava. Pouco menos que um verdugo, aquele Hugo: diretor da Escola de Medicina de Belo Horizonte, quis expulsar o Nava a poucos meses de formar-se.
Órfão aos 16 anos, meu pai foi uma das raspas do enorme tacho reprodutivo - 13 filhos - do Dr. Hugo e Dona Dora. Décimo primeiro a chegar, até por isso terá penado menos que os mais velhos sob o rigor de um homem em quem a correção de caráter convivia com espinhenta severidade no trato com o semelhante.
Ao contrário dele, falecido cedo, aos 56, meu pai teve tempo e condições de, como os antigos automóveis, amaciar com o uso, tendo para isso contribuído, e muito, a delicadeza de minha mãe, com quem viveu por mais de meio século. Tolerante com os filhos mais novos, com os mais velhos foi bem duro - ao ponto de os felizardos que o pegaram já amaciado se dizerem frutos de um segundo casamento dos mesmos Hugo e Wanda.
Reconheço no meu pai uns traços fortes que terá herdado do meu avô. Não chegou a nos mandar para o Acre, mas recorreu com frequência a um arsenal de punições digno do professor de Pedro Nava. Vistos de hoje, quando já não doem nem revoltam, os castigos que o papai nos aplicava tinham um quê de homeopatia, pois em geral guardavam relação com o malfeito. Que nem o pai dele, que, tendo apanhado um filho com cigarro aceso, lhe fez fumar o maço inteiro, que por isso ficou sendo o último.
Um dia, ao se dar conta de que eu, discretamente, ia dizimando uma garrafa de Old Parr, meu pai me fez beber o resto. Com é que o que o nosso ébrio gosta de beber uísque?, ironizou. Com leite, respondi no mesmo tom - e paguei o intragável preço de sorver, de cara boa, uma beberagem morna cuja lembrança ainda hoje me nauseia.
Em outra ocasião, na minha ausência, mandou jogar fora meia garrafa de cerveja preta - munição de minha mãe para incrementar a amamentação - e abastecê-la com outro tanto de café gelado e salgado, mistura da qual um gole ávido e gordo chegou a me descer pela garganta antes de voltar estrepitosamente à luz.
Uma das meninas, durante a refeição, brincava com a argola do guardanapo, desafiando a proibição paterna? Diante da mãe e dos irmãos, que não podiam rir, teve que encaixar na boca a argola de ebonite e assim permanecer por uns minutos, chorando um choro cilíndrico de vergonha e raiva.
Um dia, chegando em casa, dei com um dos irmãos pendurado no flamboyant do jardim, qual presunto em viga de armazém, como penitência por ter dado uma de Tarzan no galho em que o pai enganchara uma gaiola. Outro, por ter fuçado numa pilha de materiais de construção, foi sentenciado a passar longos minutos com os braços abertos e um tijolo em cada mão.
Mais uma. Na ausência dos pais, eu e um dos irmãos encenamos uma missa, para a qual fizemos hóstias de miolo de pão, uma recheada de sal, outra de pimenta, que demos em comunhão a duas das meninas. Não me lembro se sobrou para mim, mas não esqueço do meu coroinha a esguichar lágrimas desencadeadas por uma colherada de pimenta braba.
*
O que ficou da pedagogia rude de um pai que a humildade, o tempo e os filhos se encarregaram de adoçar, fazendo dele uma pessoa bem melhor que as encomendas? Virou conversa boa de família, historinhas em que ele próprio achava graça. Provar de seu “veneno” - não era assim também que funcionava seu esquema educativo? De minha parte, nada ficou de mágoa nem ressentimento. Nenhuma sombra em meu amor por ele. Foi às vezes duro? Muito mais sofreu a mãe do porco-espinho - dito que aprendi com um gaiato no colégio e, claro, tratei de usar na primeira oportunidade, antes mesmo de saber o que foi que se passou com a desditosa genitora do ouriçado roedor em questão.





A porta da cozinha - Fabrício Carpinejar




Há duas portas para entrar em casa: a da sala e a da cozinha.

Quem eu não conheço muito bem recebo com a formalidade da porta da frente. Pisará no capacho bonito, com a tabuleta de boas-vindas. Existe um gancho para pendurar o casaco e um porta guarda-chuvas por perto. Enxergará o espaço organizado do sofá, ornado de estátuas e da estante de livros. Convidarei para sentar, devo cruzar as pernas e oferecer café em jogo completo de xícaras e bandeja de metal. Questionarei: açúcar ou adoçante. Colocarei música ambiente e abrirei as janelas, controlando o fluxo do ar.

Apesar do extremo acolhimento, não estarei à vontade. Pensarei com cautela cada palavra dita e jamais falarei mal de alguém. As visitas ganham o melhor da residência e o pior do anfitrião.

Já quem eu amo entra pela porta da cozinha, no meio da bagunça das panelas e dos jornais espalhados. É o umbral secreto do afeto, simples e despojado, sem tapete, com os perfumes dos temperos e dos alimentos descongelando.

Se está chovendo, levo o guarda-chuva pingando, correndo, como um paciente para o tanque da lavanderia. Não haverá cerimônia nenhuma. Casacos são dobrados na cadeira mais próxima.

Eu sou um abrindo a porta da frente e outro totalmente distinto abrindo a porta de trás. Na frente, vou de roupa social. Aperto a mão em firme cumprimento.

No acesso secundário, apareço de calção, regata e chinelo. Abraço para quebrar os ossos. A alma também muda. Falo gritando, com a passionalidade de um cortiço, não medindo as confissões e as fofocas. Não me arrumo ou calculo as frases.

Nem me preocupo com a expectativa de agradar, eu tenho o outro como parte do lar.

Tampouco serei garçom. Pergunto se quer algo e digo para se servir. Acomodamos-nos por ali mesmo, empurrando o que há na mesa com os cotovelos, assistindo à louça suja empilhada na pia e ao detergente soberano de escolta.

A porta que beira o fogão e a geladeira é da intimidade. Dos risos e das implicâncias. Do choro apressado e do conforto do pano de prato. Quem não limpou as lágrimas no pano de prato ainda não foi fundo na tristeza.

Só entregamos a nossa pobreza para aqueles em quem confiamos inteiramente.





Quando se trabalhava bem - Humberto Werneck

Família grande, dessas que outrora requeriam Kombi, tinha lá suas vantagens, entre elas a de encher uma fotografia, povoando-a de gente em três ou mais camadas. Havia, é verdade, um monte de inconvenientes, como ter de ouvir de outro frangote, na rua ou no colégio, uma declaração do tipo “pô, seu pai trabalhou bem!”, proferida entre o admirativo e o malicioso, tão logo o interlocutor se inteirava de que você fazia parte de uma prole numerosa. 
Longe de ser ofensivo, o verbo “trabalhar” não deixava de fazer sentido, num universo de famílias quase obrigatoriamente católicas, nas quais o sexo parecia ter função exclusivamente reprodutiva. Dez filhos? Então dez vezes, nem mais nem menos, trabalhou seu pai. Quantas vezes Deus mandasse, e Deus, naquele tempo, mandava bem. Do sexo recreativo, não se falava abertamente, ou não se falava nunca - toda a informação, nesse departamento dos países baixos, costumava remeter mais à botânica do que à zoologia, em graves e cautelosos textos, prenhes de eufemismos, aos quais, fossem eles orais ou escritos, nunca faltava a palavra “sementinha”, como a sugerir que em se plantando tudo dá, e vice-versa. 
Ninguém, muito menos o padre confessor, contava a você que aquilo era também uma fonte de prazer, esse mesmo que você, menino ou menina, instintivamente procurava, servindo-se, em sua trancada intimidade, daquilo que, em mais de um sentido, estava à mão. (Conheço um camarada que, maravilhado, julgou ter inventado a coisa enquanto folheava uma enciclopédia farta em reproduções de estátuas gregas.) 
Sozinho ou acompanhado? - interrogava o padre, mal você se punha de joelhos no confessionário, soturna caixa de madeira escura dotada de treliça pela qual vazava, direto às narinas do confessante, um bafo que parecia ser modalidade olfativa de penitência. Sozinho, admitia você, com uma ponta de humilhação e o arrependimento adicional, nada cristão, de quem não cuidou de ser minimamente gregário naquele ramo de atividade. 
*
Mas eu falava das vantagens de ter nascido em família numerosa - fenômeno que se verificou também na casa ao lado, numa comprovação, quem sabe, de que nosso bairro era especialmente fértil quando se tratava de determinado tipo de sementinha, pois o tio João Antônio, irmão da mamãe, e a tia Yedda, com suas onze crias, não trabalharam menos que o dr. Hugo e a d. Wanda. O primo caçula, aliás, no auge da contestação adolescente, certa vez houve por mal recriminar o pai, cujo ímpeto reprodutivo lhe pareceu ter ido além da conta, mesmo para os padrões das Minas Gerais daquele tempo - e sobre ele recaiu a ironia inigualável do tio João Antônio: “Tem razão, meu filho, eu deveria ter parado no décimo filho...”
Quais vantagens, afinal? Vistas de longe, são elas numerosas, e nenhuma é tão bem-vinda quanto o fato de que, naquela extensa tribo, você podia passar razoavelmente despercebido, pois não existe pai e mãe que possam dispensar a cada um de seus rebentos os cuidados não raro sufocantes que consideram indispensáveis. Já contei que, número 2 por ordem de chegada ao mundo, lá em casa eu pertencia, pertenço ainda, a uma entidade batizada “Os Três Mais Velhos”. Ou, no dizer cáustico de uma das irmãs, “os filhos do primeiro casamento”, pois na sua vez, quase no fim da fila, já se havia dissolvido, num processo que não cessa de me emocionar, o rigor com que nosso pai tratou “Os Três Mais Velhos”. À semelhança dos carros (usava-se mais o substantivo automóvel) daquela Idade Média, também os pais zero km, para bem funcionarem, requeriam um período de amaciamento. Requeriam? Melhor botar o verbo no presente.
Não estou reclamando se disser que fui criado num pacote em que, por cima das características individuais, Rodrigo, Humberto e Otávio eram tratados da mesmíssima forma - o que, aliás, aconteceu também com os demais irmãos, quase todos eles, para efeito de gestão, organizados em outros pacotinhos. 
Para começar, éramos vestidos com o mesmo guarda-roupa, o qual, para as chamadas ocasiões especiais, não dispensava calças curtas, camisas e meias três-quartos, tudo isso branco como deviam ser as nossas almas, combinando com o azul-marinho dos cintos, suspensórios e sapatos. Idêntico era também o corte de cabelo, a cargo do Seu José, um barbeiro - e põe barbeiro nisso! - com cara de Geppetto que ia atender em casa e que reiteradas vezes perpetrou em nossos cocos, ao desmatá-los à la ministro Sales, aquelas moitinhas de pelos que décadas mais tarde o Ronaldo Fenômeno ameaçou botar em moda. Não adiantava a mamãe protestar ante o fato consumado, quando se deparava com aquelas três marmotas, pois o Seu José, impassível por detrás dos ‘oclinhos’ redondos, tinha pétrea opinião formada: “É o corte que lhes assenta, d. Wanda!” Hoje, mais do que as moitinhas pilosas, me impressiona a colocação do pronome. (Fosse o Seu José o autor desta frase, você teria lido “impressiona-me”.)
Umas tantas vezes por ano, pousava lá em casa a Noésia costureira, com a missão de pilotar, por não menos de uma semana, a Singer da mamãe, na qual, entre risadas de gordo em paz com suas banhas, produzia pilhas e mais pilhas de roupas, cuja matéria-prima a d. Wanda ia comprar nos atacadistas da Rua dos Caetés. Não esqueço uma peça de linho cinza-azulado que rendeu, para “Os Três Mais Velhos”, umas prodigiosas calças, capazes de espichar-se, ao longo do tempo, muito mais que eles em sua fase de impetuoso crescimento. Lá de casa, a Noésia saltava para a do tio João Antônio e da tia Yedda, ou da tia Bethinha e do tio Fernando, ou de qualquer outra do nosso sangue. Por pouco, não ficou fazendo parte da família.
*
A divisão da prole em blocos não era, é claro, exclusividade do clã da Padre Severino 178. Tenho na memória um casal cujos filhos, para todos os efeitos, sociais, inclusive, eram divididos em dois blocos. Os convites de aniversário que lá chegavam orientavam os pais para que mandassem “Os Três Mais Velhos”, ou “Os Três Mais Novos”. Tudo estaria muito bem, se entre os dois times não houvesse nascido um quarto filho, o qual, por boas razões, ninguém queria convidar.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Carona - Luis Fernando Verissimo

O George Soros anunciou em Davos que vai doar alguns dos seus milhões a universidades que se comprometam a combater o que ele vê como um pendor direitista, no mundo atual e na academia. Soros é daquelas personalidades que valem a pena acompanhar de perto, se possível em mesas de bares, para ouvir o que ele tem a dizer sobre como salvar o capitalismo de si mesmo. Com a certeza de que ele, pelo menos, pagará os chopes para todo mundo.
Há outra razão para tentar se aproximar de Soros e entrar na sua “entourage”, como dizem na Mooca, nem que seja só para carregar a merenda. Como se sabe, a Terra, nossa velha e boa Terra, está chegando ao fim. Talvez demore, mas, do jeito que vai, e do jeito que nós a maltratamos, é certo que o fim da Terra virá: pelo aquecimento global, pelo crescimento das águas até que a Estátua da Liberdade dê um último abano e naufrague, por choque com asteroide ou simplesmente por enfarte. Amigo meu se declarou um otimista, disse que não sabe se há vida depois da morte, mas, por via das dúvidas, vai levar um cartão de crédito. Mas os otimistas estão cada vez mais raros. O fim está próximo, e ninguém faz nada a respeito.
Errado. Tem gente – ou bilionários, uma pequena subdivisão de gente – planejando a fuga antes que o mundo acabe. Você pode apostar que os bilionários estão tomando medidas. Estão construindo arcas em estaleiros camuflados na Nova Zelândia, por exemplo, na esperança de que algo sobreviva ao dilúvio final. Estão fazendo reservas na primeira classe de foguetes que serão disparados para bases na Lua e em Marte. Bases que já existem, ou você pensa que os programas espaciais do Primeiro Mundo até agora eram só por interesse científico, e não a construção secreta de colônias para bilionários?
Você e eu, que não somos bilionários, teremos que contar com o bom coração de alguém que nos assegure uma carona na fuga final. E falou bilionário de bom coração, falou Soros, um filantropo conhecido. Procure Soros. Tente convencê-lo de que você daria um bom garçom na viagem para Lua ou Marte, e um bom limpador de piscinas quando chegassem à colônia. Se não conseguisse convencer Soros a lhe dar carona, paciência. Você pelo menos tomaria uns chopes na conta dele. 

Macho Alfa - Antonio Prata

  ilustração: Adams Carvalho Anteontem, vejam só, meu pneu furou. Todos aqueles que, como eu, estão neste rolê desde as últimas décadas do s...