Família grande, dessas que outrora requeriam Kombi, tinha lá suas vantagens, entre elas a de encher uma fotografia, povoando-a de gente em três ou mais camadas. Havia, é verdade, um monte de inconvenientes, como ter de ouvir de outro frangote, na rua ou no colégio, uma declaração do tipo “pô, seu pai trabalhou bem!”, proferida entre o admirativo e o malicioso, tão logo o interlocutor se inteirava de que você fazia parte de uma prole numerosa.
Longe de ser ofensivo, o verbo “trabalhar” não deixava de fazer sentido, num universo de famílias quase obrigatoriamente católicas, nas quais o sexo parecia ter função exclusivamente reprodutiva. Dez filhos? Então dez vezes, nem mais nem menos, trabalhou seu pai. Quantas vezes Deus mandasse, e Deus, naquele tempo, mandava bem. Do sexo recreativo, não se falava abertamente, ou não se falava nunca - toda a informação, nesse departamento dos países baixos, costumava remeter mais à botânica do que à zoologia, em graves e cautelosos textos, prenhes de eufemismos, aos quais, fossem eles orais ou escritos, nunca faltava a palavra “sementinha”, como a sugerir que em se plantando tudo dá, e vice-versa.
Ninguém, muito menos o padre confessor, contava a você que aquilo era também uma fonte de prazer, esse mesmo que você, menino ou menina, instintivamente procurava, servindo-se, em sua trancada intimidade, daquilo que, em mais de um sentido, estava à mão. (Conheço um camarada que, maravilhado, julgou ter inventado a coisa enquanto folheava uma enciclopédia farta em reproduções de estátuas gregas.)
Sozinho ou acompanhado? - interrogava o padre, mal você se punha de joelhos no confessionário, soturna caixa de madeira escura dotada de treliça pela qual vazava, direto às narinas do confessante, um bafo que parecia ser modalidade olfativa de penitência. Sozinho, admitia você, com uma ponta de humilhação e o arrependimento adicional, nada cristão, de quem não cuidou de ser minimamente gregário naquele ramo de atividade.
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Mas eu falava das vantagens de ter nascido em família numerosa - fenômeno que se verificou também na casa ao lado, numa comprovação, quem sabe, de que nosso bairro era especialmente fértil quando se tratava de determinado tipo de sementinha, pois o tio João Antônio, irmão da mamãe, e a tia Yedda, com suas onze crias, não trabalharam menos que o dr. Hugo e a d. Wanda. O primo caçula, aliás, no auge da contestação adolescente, certa vez houve por mal recriminar o pai, cujo ímpeto reprodutivo lhe pareceu ter ido além da conta, mesmo para os padrões das Minas Gerais daquele tempo - e sobre ele recaiu a ironia inigualável do tio João Antônio: “Tem razão, meu filho, eu deveria ter parado no décimo filho...”
Quais vantagens, afinal? Vistas de longe, são elas numerosas, e nenhuma é tão bem-vinda quanto o fato de que, naquela extensa tribo, você podia passar razoavelmente despercebido, pois não existe pai e mãe que possam dispensar a cada um de seus rebentos os cuidados não raro sufocantes que consideram indispensáveis. Já contei que, número 2 por ordem de chegada ao mundo, lá em casa eu pertencia, pertenço ainda, a uma entidade batizada “Os Três Mais Velhos”. Ou, no dizer cáustico de uma das irmãs, “os filhos do primeiro casamento”, pois na sua vez, quase no fim da fila, já se havia dissolvido, num processo que não cessa de me emocionar, o rigor com que nosso pai tratou “Os Três Mais Velhos”. À semelhança dos carros (usava-se mais o substantivo automóvel) daquela Idade Média, também os pais zero km, para bem funcionarem, requeriam um período de amaciamento. Requeriam? Melhor botar o verbo no presente.
Não estou reclamando se disser que fui criado num pacote em que, por cima das características individuais, Rodrigo, Humberto e Otávio eram tratados da mesmíssima forma - o que, aliás, aconteceu também com os demais irmãos, quase todos eles, para efeito de gestão, organizados em outros pacotinhos.
Para começar, éramos vestidos com o mesmo guarda-roupa, o qual, para as chamadas ocasiões especiais, não dispensava calças curtas, camisas e meias três-quartos, tudo isso branco como deviam ser as nossas almas, combinando com o azul-marinho dos cintos, suspensórios e sapatos. Idêntico era também o corte de cabelo, a cargo do Seu José, um barbeiro - e põe barbeiro nisso! - com cara de Geppetto que ia atender em casa e que reiteradas vezes perpetrou em nossos cocos, ao desmatá-los à la ministro Sales, aquelas moitinhas de pelos que décadas mais tarde o Ronaldo Fenômeno ameaçou botar em moda. Não adiantava a mamãe protestar ante o fato consumado, quando se deparava com aquelas três marmotas, pois o Seu José, impassível por detrás dos ‘oclinhos’ redondos, tinha pétrea opinião formada: “É o corte que lhes assenta, d. Wanda!” Hoje, mais do que as moitinhas pilosas, me impressiona a colocação do pronome. (Fosse o Seu José o autor desta frase, você teria lido “impressiona-me”.)
Umas tantas vezes por ano, pousava lá em casa a Noésia costureira, com a missão de pilotar, por não menos de uma semana, a Singer da mamãe, na qual, entre risadas de gordo em paz com suas banhas, produzia pilhas e mais pilhas de roupas, cuja matéria-prima a d. Wanda ia comprar nos atacadistas da Rua dos Caetés. Não esqueço uma peça de linho cinza-azulado que rendeu, para “Os Três Mais Velhos”, umas prodigiosas calças, capazes de espichar-se, ao longo do tempo, muito mais que eles em sua fase de impetuoso crescimento. Lá de casa, a Noésia saltava para a do tio João Antônio e da tia Yedda, ou da tia Bethinha e do tio Fernando, ou de qualquer outra do nosso sangue. Por pouco, não ficou fazendo parte da família.
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A divisão da prole em blocos não era, é claro, exclusividade do clã da Padre Severino 178. Tenho na memória um casal cujos filhos, para todos os efeitos, sociais, inclusive, eram divididos em dois blocos. Os convites de aniversário que lá chegavam orientavam os pais para que mandassem “Os Três Mais Velhos”, ou “Os Três Mais Novos”. Tudo estaria muito bem, se entre os dois times não houvesse nascido um quarto filho, o qual, por boas razões, ninguém queria convidar.