quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Gaúcho gosta de homem - Martha Medeiros

Ainda nem comecei o texto e você, que é gaúcho, já está me odiando, mas me dê um parágrafo de vantagem para explicar. O assunto aqui não é sexo. Não tem nada a ver com homossexualidade. Eu sei que você gosta de mulher. Ou talvez goste de homem mesmo, no sentido sexual. Mas o assunto é outro. É sobre com quem preferimos partilhar ideias, experiências, piadas - não lençóis.

Conversando num bar com uma turma mista de amigos (todos nascidos no RS), chegamos à conclusão de que o gaúcho, em geral (com exceções, você é a prova), não gosta de mulher. Ele gosta de futebol, de churrasco, de posto de gasolina, de atividades em que possa estar com outros homens suando a camisa, palitando os dentes, discutindo política, à vontade com a própria rudeza. Ele gosta dos seus parceiros: do Carlão, do Gringo, do Marco, do Valdo. É entre eles que sua identidade é confirmada, é com eles que se sente mais livre e mais autêntico. Mas ele quer namorar e casar como todo mundo, e aí precisa de uma mulher, sendo hétero, e então namora, casa e tem filhos, sem nenhum esforço. E está resolvida essa questão da mulher na vida dele. Bora jogar uma pelada com a rapaziada.

Homem que gosta de mulher é homem que admira todas elas, mesmo apaixonado por uma em particular. Torna-se amigo delas sem segundas intenções. Gosta de conversar com elas, de ir a livrarias com elas, de ir a shows com elas, de viajar com elas, de se aconselhar com elas - sejam bonitas ou não. Ele valoriza o universo feminino, se sente enriquecido pelo modo como as mulheres enxergam o mundo. Talvez tenha tido a sorte de, na infância, ter convivido com muitas primas e tias, de ter recebido uma educação que não se baseou em conceitos ultrapassados, então cresceu sabendo que mulheres são companhias inteligentes, divertidas, perspicazes. Se, além disso, forem atraentes, é um bônus, não uma prioridade.

Durante a minha conversa com a turma, reconhecemos, claro, que as coisas estão mudando, que o desprezo pela mulher era mais evidente em outros tempos. Meninos evitavam brincar com as meninas na escola para não sofrer bullying dos colegas. Hoje as relações avançaram, mas aí o papo no bar já estava rendendo gargalhadas e logo começamos a estereotipar, fazendo um mapeamento geográfico da nossa teoria. O nordestino, por exemplo, gosta de mulher. O carioca adora. O gaúcho atura. No fundo, gosta mesmo é de um bom clube do Bolinha, mesmo que seja para falar de mulher o tempo inteiro.

Talvez seja esta a razão de, anos atrás, a turma do Casseta e Planeta ter propagado a história de que todo gaúcho é gay. Uma bobagem, óbvio, mas a provocação visava desestabilizar os guetos de virilidade que ainda resistem. O gaúcho bronco continua não vendo muito sentido em se aproximar das mulheres se não for para cantá-las. As trata bem porque a civilidade exige, mas gostar de mulher da mesma forma que ele gosta de homem, sem chance. Não é por deformação de caráter nem nada, simplesmente ele não vê que função, afora a sexual, uma mulher possa ter na vida dele.

A não ser sua mãe, mas mãe não é mulher.

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