Olhe em torno e repare: há coisas que, de tão incorporadas à nossa vida, a gente pode achar que sempre existiram, sem que tenham sido inventadas por alguém.
Era esse o assunto em nossa mesa de boteco (falar nisso: quem foi que inventou a mesa?), naquela altura da noite em que, já sem motivo consistente para estar ali, mas sem ânimo para os arremates, você vai remanescendo. E tome papo sobre inventação.
Alguém sacou, como exemplo de coisa que sempre teria existido, o escorredor de arroz - mas não, disse outro alguém, nosso especialista em miudezas, o escorredor foi bolado sim, e mais, por uma brasileira, a dona de casa Beatriz de Andrade, no início dos anos 1960. Além de alcançar o singelo objetivo inicial, o de lavar arroz, dona Beatriz conseguiu engordar sua conta bancária, pois uma indústria comprou a patente, o que lhe garantiu porcentual nas vendas. Mais lucrativo, só um dispositivo de lavar dinheiro.
Alguém sacou, como exemplo de coisa que sempre teria existido, o escorredor de arroz - mas não, disse outro alguém, nosso especialista em miudezas, o escorredor foi bolado sim, e mais, por uma brasileira, a dona de casa Beatriz de Andrade, no início dos anos 1960. Além de alcançar o singelo objetivo inicial, o de lavar arroz, dona Beatriz conseguiu engordar sua conta bancária, pois uma indústria comprou a patente, o que lhe garantiu porcentual nas vendas. Mais lucrativo, só um dispositivo de lavar dinheiro.
Tanto quanto o escorredor de arroz, o item seguinte na conversa também contrariou a tese de que vários componentes de nosso cotidiano existem desde sempre. O mesmo especialista em insignificâncias nos esclareceu que a toalha de praia, sim, aquele retângulo de tecido sobre o qual, egressos das ondas, depositamos nossos úmidos bumbuns, teve, pelo menos no litoral carioca, seu inventor, um cavalheiro de nacionalidade britânica. A informação, ficamos sabendo, está devidamente estribada em bibliografia, o delicioso livro de Ricardo Boechat sobre o Copacabana Palace.
Interrompa aí a leitura dos poetas gregos para se inteirar do relevante fato de que, correndo o ano de 1902, passou pela então quase erma praia de Copacabana o barbeiro Wallace Green, o qual, vindo de escanhoar as bochechas de um freguês, resolveu dar um mergulho. Sentindo falta de algo em que se esticar na areia, recorreu Green à sua toalha de fígaro - iniciativa que não tardou a ser macaqueada por banhistas nativos, abrindo caminho para que na esteira viesse, além da canga, a esteira de praia propriamente dita.
*
A lembrança daquela profícua noitada cultural de bar me veio há pouco, ao ser informado do falecimento, em Poços de Caldas, do Sr. Moacyr de Carvalho Dias. Não o conhecia, e soube então que era tio de um querido amigo, o Teodoro.
Na internet e nos jornais, deu-se destaque ao fato de ter sido o Sr. Moacyr o criador de um dos itens mais arraigados no dia-a-dia dos brasileiros, o requeijão em copo.
Compreendi, de imediato, por que tanta gente viera dar-me notícia do passamento do industrial mineiro. Voltou-me, em detalhes, uma história que, faz uns 15 anos, me valeu doses iguais de satisfação e aborrecimento.
Tendo uma revista feminina me pedido uma crônica, tive, à falta de assunto menos prosaico, a ideia de escrever sobre o copo de requeijão, objeto que, àquela altura, me pareceu simbolizar os descuidos e malfeitos que podem pôr a pique uma relação amorosa.
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A lembrança daquela profícua noitada cultural de bar me veio há pouco, ao ser informado do falecimento, em Poços de Caldas, do Sr. Moacyr de Carvalho Dias. Não o conhecia, e soube então que era tio de um querido amigo, o Teodoro.
Na internet e nos jornais, deu-se destaque ao fato de ter sido o Sr. Moacyr o criador de um dos itens mais arraigados no dia-a-dia dos brasileiros, o requeijão em copo.
Compreendi, de imediato, por que tanta gente viera dar-me notícia do passamento do industrial mineiro. Voltou-me, em detalhes, uma história que, faz uns 15 anos, me valeu doses iguais de satisfação e aborrecimento.
Tendo uma revista feminina me pedido uma crônica, tive, à falta de assunto menos prosaico, a ideia de escrever sobre o copo de requeijão, objeto que, àquela altura, me pareceu simbolizar os descuidos e malfeitos que podem pôr a pique uma relação amorosa.
Imaginei um dos membros do casal pedindo ao outro um copo d’água, e essa água vindo, não no melhor cristal, como no início do romance, mas num copo de requeijão. Algo de preocupante, observei, talvez irreversível, havia se passado para que a vulgaridade se insinuasse naquele par; e convinha estar atento ao fato de que, tal como no alcoolismo, nunca se fica no primeiro copo.
Sentencioso, fui em frente: ninguém compra o copo, compra o requeijão, mas, esgotado o conteúdo, o continente vai ficando, até por inércia - como, aliás, um pessoal no bar em fim de noite. E, ao contrário dos recipientes de cristal, raramente se quebra. No espólio de um casamento, ninguém briga por ele; e se a separação não dá certo, nem para um brinde serve, pois entre dois copos de requeijão não há tim-tim possível, só um chocho tec-tec.
Sentencioso, fui em frente: ninguém compra o copo, compra o requeijão, mas, esgotado o conteúdo, o continente vai ficando, até por inércia - como, aliás, um pessoal no bar em fim de noite. E, ao contrário dos recipientes de cristal, raramente se quebra. No espólio de um casamento, ninguém briga por ele; e se a separação não dá certo, nem para um brinde serve, pois entre dois copos de requeijão não há tim-tim possível, só um chocho tec-tec.
Eu não sabia que, com a minha filosofice de guarda-louça, estava cutucando um vespeiro. Se várias leitoras concordaram com o judicioso cronista, a maioria despejou sobre ele, não copos, mas baldes de desaforos, de “elitista” para baixo. Só faltou quem me tocaiasse na rua com uma saraivada de recipientes de requeijão cremoso, acrescentando a eles mais uma utilidade.
Do alto do organograma de uma grande fábrica de artigos de vidro, um executivo farejou “ofensa” e enviou à redação uma diatribe que chegou às minhas mãos e ainda guardo. “Como o copo de requeijão não fala nem escreve”, reagiu o missivista, “e, portanto, não pode se defender, nós, que fabricamos milhões deles por ano, vamos fazê-lo.” E fê-lo, diria o Temer: “O autor foge do tema, que é a deterioração da vida a dois, e parte para a agressão ao copo de requeijão, pobre coitado que está, creiam, trabalhando direitinho e cumprindo bem o seu papel.” Quem duvidaria?
Tantos anos depois, talvez seja hora de baixar a bola e liberar o vítreo vilão de qualquer responsabilidade no naufrágio da mais vacilante das uniões conjugais. A melhor prova de que fui injusto seria o próprio Sr. Moacyr, visto que o criador do copo de requeijão, me conta o sobrinho Teodoro, viveu um casamento de quase 70 anos, não só feliz como frutificado em copiosa descendência.
Do alto do organograma de uma grande fábrica de artigos de vidro, um executivo farejou “ofensa” e enviou à redação uma diatribe que chegou às minhas mãos e ainda guardo. “Como o copo de requeijão não fala nem escreve”, reagiu o missivista, “e, portanto, não pode se defender, nós, que fabricamos milhões deles por ano, vamos fazê-lo.” E fê-lo, diria o Temer: “O autor foge do tema, que é a deterioração da vida a dois, e parte para a agressão ao copo de requeijão, pobre coitado que está, creiam, trabalhando direitinho e cumprindo bem o seu papel.” Quem duvidaria?
Tantos anos depois, talvez seja hora de baixar a bola e liberar o vítreo vilão de qualquer responsabilidade no naufrágio da mais vacilante das uniões conjugais. A melhor prova de que fui injusto seria o próprio Sr. Moacyr, visto que o criador do copo de requeijão, me conta o sobrinho Teodoro, viveu um casamento de quase 70 anos, não só feliz como frutificado em copiosa descendência.
Estado de São Paulo 7/2/2016
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