terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

A porta da cozinha - Fabrício Carpinejar




Há duas portas para entrar em casa: a da sala e a da cozinha.

Quem eu não conheço muito bem recebo com a formalidade da porta da frente. Pisará no capacho bonito, com a tabuleta de boas-vindas. Existe um gancho para pendurar o casaco e um porta guarda-chuvas por perto. Enxergará o espaço organizado do sofá, ornado de estátuas e da estante de livros. Convidarei para sentar, devo cruzar as pernas e oferecer café em jogo completo de xícaras e bandeja de metal. Questionarei: açúcar ou adoçante. Colocarei música ambiente e abrirei as janelas, controlando o fluxo do ar.

Apesar do extremo acolhimento, não estarei à vontade. Pensarei com cautela cada palavra dita e jamais falarei mal de alguém. As visitas ganham o melhor da residência e o pior do anfitrião.

Já quem eu amo entra pela porta da cozinha, no meio da bagunça das panelas e dos jornais espalhados. É o umbral secreto do afeto, simples e despojado, sem tapete, com os perfumes dos temperos e dos alimentos descongelando.

Se está chovendo, levo o guarda-chuva pingando, correndo, como um paciente para o tanque da lavanderia. Não haverá cerimônia nenhuma. Casacos são dobrados na cadeira mais próxima.

Eu sou um abrindo a porta da frente e outro totalmente distinto abrindo a porta de trás. Na frente, vou de roupa social. Aperto a mão em firme cumprimento.

No acesso secundário, apareço de calção, regata e chinelo. Abraço para quebrar os ossos. A alma também muda. Falo gritando, com a passionalidade de um cortiço, não medindo as confissões e as fofocas. Não me arrumo ou calculo as frases.

Nem me preocupo com a expectativa de agradar, eu tenho o outro como parte do lar.

Tampouco serei garçom. Pergunto se quer algo e digo para se servir. Acomodamos-nos por ali mesmo, empurrando o que há na mesa com os cotovelos, assistindo à louça suja empilhada na pia e ao detergente soberano de escolta.

A porta que beira o fogão e a geladeira é da intimidade. Dos risos e das implicâncias. Do choro apressado e do conforto do pano de prato. Quem não limpou as lágrimas no pano de prato ainda não foi fundo na tristeza.

Só entregamos a nossa pobreza para aqueles em quem confiamos inteiramente.





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